A democracia brasileira saiu fortalecida e consolidada do longo e legítimo processo que levou ao impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, apesar do imbroglio político e jurídico criado com a manobra de fragmentação do artigo 52 da Constituição. Todo o contrário do apelo retórico, descabido e exagerado da ex-presidente na sua defesa no Senado anunciando a “morte da democracia” caso fosse aprovado o seu impedimento. A democracia sairia fortalecida independente mesmo do resultado e totalmente ao contrário da insistente e impertinente narrativa de golpe. Depois de nove meses de análise, discussão, amplo direito de defesa, mobilizações de rua, várias votações nas duas casas do Congresso e que culminou com uma votação expressiva no Senado (bem mais que os 2/3 requeridos), Dilma e o seu partido já não podiam questionar o processo e o rito definido pelo Supremo Tribunal Federal e confirmando as regras constitucionais. A própria presidente afastada legitimou o processo quando se apresentou no Senado para a sua defesa. Mas, afirmam (ela, seu advogado de defesa e seus aliados) não houve crime de responsabilidade. Mas, a quem cabe julgar se ela cometeu ou não um crime de responsabilidade? Basta que ela se declare inocente e que seus advogados argumentem que não houve crime? A Constituição brasileira define que cabe ao Senado Federal, depois de todos os procedimentos democráticos, julgar se houve ou não crime de responsabilidade. E por mais de 76% dos senadores, o Senado julgou que houve sim crime de responsabilidade. Ah! O Senado não é legítimo? Como não? Foram eleitos da mesma forma que a ex-presidente e têm entre as suas missões o controle do executivo incluindo o afastamento da presidente quando considerem que ela cometeu crime de responsabiliade; se ela insiste em dizer que recebeu 54,5 milhões de votos, os 81 senadores da República receberam juntos quase 80 milhões de votos. O resto são falácias. A democracia brasileira foi exercitada e vivenciada na sua plenitude, nas instituições e nas ruas. Agora, encerrado este processo que paralisou o país, o Brasil precisa de medidas drásticas e responsáveis para sanear as finanças públicas, reformas estruturais profundas para destravar a economia, e políticas orientadas para oferta de serviços públicos de qualidade.
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Editorial sensato e esclarecedor quanto as contradições dos argumentos usados a pretexto de defesa da Dilma.
Meus caros amigos da Será!
Depois de passada a tormenta, venho dar minha opinião sobre o Editorial da Revista e, no mesmo momento, declarar meu voto sobre a candente questão do “golpe”. Para o editorialista, “cabe ao Senado Federal […] julgar se ela [Dilma] cometeu ou não um crime de responsabilidade”. Está no art. 86, caput, da Constituição. Assim, não houve “golpe”. Perfeito.
Será?…
Devo inicialmente dizer que, por temperamento, gosto de ficar na mal-afamada posição conhecida por “em cima do muro”. Há maneiras mais elegantes e mais nobres de qualificar o que sou: um “intelectual tradicional”, como diria Gramsci; um “intelectual flutuante”, como diria Mannheim; ou, para não citar apenas esquerdistas, um sujeito que tem “a ciência como vocação”, como diria Max Weber.
Pois bem. Assim que começou essa história de impeachment, escutei de um colega simpático a Dilma a afirmação peremptória: “É golpe, porque não há crime de responsabilidade!”.
Com meu jeito de ser, disse algo como: “Vamos ver. A Constituição prevê o crime de responsabilidade para casos que atentem contra a lei orçamentária, e prevê que o Senado a julgará. É o caso. Ela é acusada de atentar contra a lei e o Senado vai julgá-la. Por enquanto não vejo golpe.”
E veio o processo, e vieram as intermináveis discussões, e os “peritos” travestidos de testemunhas etc. etc. Enfim, tudo isso a que o país cansou de assistir nos últimos nove meses.
A partir de um determinado momento formei minha convicção. Ei-la.
De um lado, um julgamento por crime de responsabilidade, feito numa casa senatorial, é diverso de um julgamento feito numa corte de justiça. Trata-se de um julgamento, no final das contas, político. Inevitável e normal. Mas, por outro lado, tem de se assentar num fato jurídico que configure crime. É um julgamento, por assim dizer, jurídico-político. Uma vez configurada a existência de crime, os senadores são livres para, sobre ele, exercerem seu julgamento.
Ora, o problema todo é que não é inquestionável que as chamadas “pedaladas” e os famosos “decretos” configurem crime no sentido jurídico do termo: uma ação claramente definida como tal que, uma vez cometida, não enseje discussões sobre sua ilicitude. Tem-se, por exemplo, argumentado que as “pedaladas” equiparam-se a operações de crédito vedadas pela lei. Essa equiparação, contudo, assenta-se num raciocínio por “analogia”. Ora, julgamentos por analogia apoiam-se numa interpretação “extensiva” do texto legal, operação que, em matéria penal, é expressamente condenada pelo que os juristas chamam de “melhor doutrina”, segundo a qual, nesse tipo de julgamento, a interpretação tem de ser “restrita”. É o universalmente conhecido e acatado (pelo menos desde a cultura iluminista do século XVIII) “princípio da reserva legal” (nullum crimen sine legem), absorvido pela Constituição Brasileira no inciso XXXIX do seu art. 5º, verbis: “Não há crime sem lei anterior que o defina”.
Em resumo: cheguei, faz algum tempo, à conclusão de que a ação em curso era um “golpe”, sim. Claro, nada a ver com golpes armados à la 64. As equiparações são indevidas extrapolações retóricas. Um sujeito como eu não pode concordar com isso. Filio-me à tese do “golpe parlamentar”, estranho ao sistema presidencialista de governo. Golpe porque, só depois de aquilatada, inequivocamente, a existência de crime, no sentido jurídico do termo, é que o parlamento poderia, sobre isso, emitir seu julgamento político.
É isso.
Isso dito, continuo em cima do muro.
Não acho que Dilma deveria continuar à frente da presidência da república! Move-me, neste raciocínio um tanto esquizofrênico, uma “ética de responsabilidade”, oposta a uma “ética de convicção”, para retomar Weber. “Fiat justitia et pereat mundus” (que o mundo pereça, mas que se faça justiça), diz um princípio kantiano de justiça. No mundo da política, seus resultados podem ser terríveis. Nesse campo, não o subscrevo. Não é fácil, doutrinariamente, defender essa “ética miúda”. Mas qual a alternativa?
Sejamos sensatos: a “esquerda” ocupou o poder por dezesseis anos, e agora o poder foi empalmado pela “direita”. São as áleas da democracia.
Cabe a quem, como eu, continua mantendo o que chamaria, sem maiores aprofundamentos (porque explicar tudo seria muito longo…), de sensibilidade de esquerda, situar-se no lugar que agora é o seu, o da oposição, e continuar a “invenção democrática” (Claude Lefort), que é sem fim.
E la nave va…
Luciano Oliveira
Caro Luciano
Passei o dia tentado a responder seu comentário ao Editorial da Revista Será. Mas achava que não devia mais tratar do assunto. Já se falou demais sobre isso, inclusive nesta mesma revista e ninguém vai mudar de opinião, principalmente quando declara ter convicção da sua posição. Acho difícil resistir a uma arenga politica e intelectual quando abordada com elegância, respeito e argumentação, tudo que percebo no seu comentário.
Ocorre que tanto na resposta ao seu comentário que preferi transformar em um artigo (até porque seus argumentos são mesmo gerais) que pretendo publicar no próximo número da Revista Será. É um convite pra continuar a briga. Em todo caso, quero antecipar aqui uma questão. Quando, no último parágrafo, você fala da sua sensibilidade de esquerda parece um derradeiro apelo ideológico: se nenhum argumento for aceito para confirmar um golpe, que fique claro que a direita tomou o poder. Como se devêssemos (os brasileiros) perdoar eventuais crimes de responsabilidade desde que praticados pela esquerda. Assim, não se trataria mais de julgar o processo, aceito como legítimo, e nem mesmo o mérito da cassação do mandato da presidente, passando a definir, em última instância, a posição a partir da distinção ideológica do réu e dos juízes. E segundo a “sensibilidade de esquerda”. Assim, meu caro amigo, você não está indo na direção contrária da proposta de Lefort de “invenção democrática”?
Caríssimo Sérgio!
O convite para continuar a briga está aceito… desde que não haja briga!
Como sabe, também detesto a lógica de trincheira: eu dou um tiro daqui, e o outro dá um tiro de lá, e nenhum dos dois se aproxima do outro.
A única coisa que estranhei no seu comentário foi a dedução de que deveríamos perdoar crimes de responsabilidade desde que praticados pela esquerda!
Aí, realmente, acho não me fiz entender…
Simplesmente acho que, do ponto de vista jurídico, não houve crime de responsabilidade praticado por Dilma. Ao mesmo tempo, assumi uma espécie de esquizofrenia ao opinar no sentido de que ela não deveria mais continuar à frente da presidência da república.
Por fim, amigo, para ver como tenho apreço pelo estado de direito (ênfase em direito), acrescento uma nota que não tem nada a ver com o nosso debate, mas mostra como me esforço para não me deixar levar por minhas preferências nesses assuntos: achei que aquele fatiamento na pergunta que foi feita aos senadores afronta o que o parágrafo único do art. 52 da Constituição literalmente diz.
Luciano Oliveira
Luciano, interpretei mal seu texto. Peço desculpas. Mas fui enganado pela forma você como deu o fecho no seu argumento de golpe da direita, recorrendo à sua “sensibilidade de esquerda” e, confundindo com o discurso dominante e recorrente do PT e de Dilma tentando comparar o impeachment ao golpe de 64 e insistindo em forçar uma polarização direita-esquerda.
Luciano
Se golpe constitui a quebra de regras legais e constitucionais (com maior ou menor grau de violência) para beneficiar alguém, você deve concordar que esta alteração da Constituição foi um golpe. Para mudar a Constituição são necessárias duas rodadas de 2/3 nas duas casas do Congresso e, no entanto, a manobra cavilosa manipulada pelo ministro do STF que presidia a sessão “mudou” a Constituição numa única sessão do Senado e por maioria de pouco mais de 1/3. Acho que isto sim foi um “golpe parlamentar”. Lewandowsky chegou a afirmar que a decisão do STF em 1992 – no caso de Collor – jurisprudência da mais alta corte, não servia como padrão porque teve a participação de três juízes do STJ convidados para substituir os que se sentiam impedidos. Ora, ele questiona então a decisão tomada no caso Collor? E, mesmo com convidados, deixou de ser o Supremo Tribunal Federal? Manobra cavilosa, não acha?
Caro Luciano,
É a minha vez de comentar o seu texto, e complementações, agora no aspecto jurídico.
É a vontade que impele a razão para as suas conquistas, como conferi no livro de Sérgio P. Rouanet (A Razão Cativa), citando ele um filósofo clássico, acho que Aristóteles. Só isso explica, “datíssima vênia”, a sua convicção de que não houve fundamento legal para o impeachment de Dilma. Se não bastasse a autoridade insuspeita dos promotores do processo – Hélio Bicudo e Miguel Reale Júnior, juristas renomados – ninguém mais qualificado para tipificar os crimes da presidente do que o procurador do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União e o Auditor do TCU, que prestaram o seu depoimento: ambos desvinculados de partidos políticos, focados apenas em sua responsabilidade profissional. Por outro lado, o advogado de Dilma, José Eduardo Cardoso, é brilhante, mas “chicaneiro”. Exemplo: o fato de Eduardo Cunha ter aberto o processo na Câmara por vingança pessoal contra a acusada é absolutamente irrelevante, do ponto de vista jurídico, para a legitimidade do feito. E isso foi repetido à exaustão por ele, em sua defesa.
Outra coisa, já no campo de minha avaliação pessoal. Definir como “direita” os apoiadores do impeachment e como “esquerda” os defensores de Dilma me parece uma simplificação. O grupo, em boa parte heterogêneo, que vinha tomando conta do país e levando-o à bancarrota, é na verdade, no meu modesto juízo, usurpador e traidor do ideário da Esquerda. Da Esquerda como deve ser entendida hoje, após a queda do muro de Berlim e a dissolução da URSS, tão bem definida e caracterizada nos artigos do Senador Cristovam Buarque. Há muitos esquerdistas desse naipe, vários egressos do PT, e me situo, humildemente, entre eles.
Abraço.
Meu caro Clemente,
O debate é realmente sem fim…
Acho que Miguel Reale Júnior (malgrado o tic de viver literalmente “mordendo a língua”…) é um jurista respeitável, tanto quanto Hélio Bicudo (que, aliás, se retraiu…), por quem tenho, pessoalmente, uma enorme admiração e o país todo deve uma impagável gratidão: afinal, nos anos 70 processar e querer enviar para a cadeia um bandido como Sérgio Fleury não é para qualquer um! Já Janaína e aqueles desempenhos de pomba-gira…
Bem, passemos.
Não há discordância no nosso julgamento sobre as alegações de Cardozo acerca das motivações políticas de Eduardo Cunha ao instaurar o processo de impeachment: elas não têm nenhuma relevância jurídica.
A destituição de Dilma foi um ato político sobre o qual, como já disse mais de uma vez, não adoto a postura fácil de denunciar como “golpe”. Mas acho que foi um julgamento jurídico-político meio perneta, porque continuo achando que, juridicamente, o crime de responsabilidade não ficou, para além da “dúvida razoável” (como dizem os americanos), demonstrado. Ela foi destituída, como se diz, pelo “conjunto da obra”. E acho que você, tanto quanto eu, Sérgio e praticamente todas as pessoas sensatas, concorda com isso.
Isso dito, a fila anda.
A “direita” está no poder, e pronto. A democracia prossegue.
Você haverá de ter notado que sempre que digo “direita”, da mesma maneira que faço quando escrevo “esquerda”, ponho aspas que me protegem de um debate sem fim…
Como você, também me situo humildemente nesse segundo naipe…
Agradecido pela atenção,
Luciano
Caríssimo Sérgio!
Nem precisava ter se desculpado.
Mas confesso que sua atitude me tocou.
Ela só aumenta a consideração que tenho por você.
Quem, dera, amigo, que todas as pessoas que participam desse debate (que dizem que no “face” [pântano onde não piso] é um horror) fossem, como você, “homens de boa vontade”, como dizem os evangelhos!
Abração,
Luciano
Caramba! O palavreado do pessoal que não está aqui nem lá é realmente de cair o queixo – incluindo o de Milton Hatum e Raduan Nassar. Aqui o comentarista, com muito jurisdiquês e muito sofisma, afirma que o impeachment foi golpe, mas ao mesmo tempo diz que a Dilma não deveria permanecer, deveria mesmo ser apeada do poder. Haja lógica!!! Acho que, de tudo o que li, esse é campeão de malabarismo e duplipensar. E de desprezo explícito pela Constituição, na medida em que se diz a favor de tirar Madame Rousseff ainda que não reconheça motivo legal para tirá-la. Não tenho mesmo a paciência dos advogados, que conseguem tanto argumento novo que conseguem transformar processos quaisquer, até de divórcio, em volumes e mais volumes de autos, que se estendem por milhares de páginas. Sergio Buarque tem realmente uma paciência de Jó. E que há escassez de pensamento lógico no Brasil já ficou claro com os resultados dessa semana, de avaliação do aprendizado de matemática no país.
Caro Sérgio!
Sim, como eu mesmo tomei a iniciativa de frisar, o “fatiamento” foi uma afronta literal ao que diz a Constituição.
Não tenho nenhum problema em subscrever, como você, a afirmação de que foi um “golpe parlamentar”. Foi uma decisão que deixou todo mundo de queixo caído, inclusive eu, que assumi minha “esquizofrenia” ao expor, com apoio na mesma Constituição e nos princípios que regem o direito penal, minha posição, que reafirmo: ao mesmo tempo que acho que Dilma não cometeu “crime de responsabilidade”, também acho que ela não deveria mais continuar à frente da Presidência da República.
Para Dona Helga Hoffmann (que no seu comentário parece querer puxar o debate para baixo – típico, segundo me dizem, do tal do “face”) isso é praticar o “dublipensamento” de Orwell. Bem, como diria Rosa, “pão ou pães, é questão de opiniães”. Para mim, por exemplo, trata-se simplesmente de não ter medo de pensar a complexidade do real, que frequentemente nos leva por um caminho que desemboca numa encruzilhada. Que “vereda” tomar? Continuo não sabendo. Mas as certezas inabaláveis não são o meu forte.
Luciano