Fernando Dourado

Capital da Macedônia by Jewish Heritage Travel.

Skopje – Capital da Macedônia by Jewish Heritage Travel.

Os ponteiros brancos do velho Swatch vermelho ainda assinalavam seis horas da tarde quando Rino teve que encerrar as anotações que tanto se comprazia em fazer, beber o último gole de chá com mel e gengibre, e se preparar para sair do pequeno hotel, sintomaticamente denominado Super 8. Isso porque logo mais embarcaria no ônibus para Sarajevo, já que desistira de ir a Belgrado. Tomar essa decisão fora a única forma que encontrara de converter a câmbio justo os mil e quatrocentos dinares macedônios que ainda trazia no bolso. Que estranho mecanismo de fazer opções era aquele, pensariam alguns. Dizer que Rino cancelara a escala prevista simplesmente porque a companhia de ônibus sérvia não lhe oferecia uma contrapartida justa por aqueles tostões era, francamente, um despautério. Mas, lá no fundo, ele sabia que o mecanismo não era de todo inédito. Isso porque, da mesma forma que o amigo Rubens não saía de casa sem um par de dados para saber se viraria à esquerda ou à direita – segundo a soma dos números desse par ou ímpar -, também era de seu estilo confiar os passos a sinais aleatórios.

Rino teria, portanto, uma viagem de doze horas de ônibus pela frente – ao menos era esta a estimativa inicial -, mas sabia que, caso se mantivesse relaxado, esta poderia ser uma noite bastante prazerosa. É claro que, em parte, teria preferido viajar com a luz do dia para desfrutar das paisagens, mas a escuridão também tinha lá suas vantagens. Dormiria mais facilmente ao abrigo do branco leitoso do inverno e o frio embalaria um sono certamente entrecortado pelas paradas, mas povoado de fantasias ambientadas naquela zona de tantas conflagrações. Na verdade, ele passara a última noite em claro às voltas com o noticiário do mundo e suas anotações sem fim. Depois do café da manhã, subira para um cochilo, mas este foi curto, quase inexistente, mesmo porque logo lhe sobreveio um leve refluxo, caminho mais curto para desistir de intimidades com o travesseiro. O melhor do dia fora até então a baklava que comera num quiosque, uma sobremesa otomana que fazia bela escolta ao chá. Ainda passou pela galeria e se dispôs a comprar o pequeno quadro que vira na véspera, mas a vendedora perseverava nos cem euros, o dobro de sua oferta final. Pena.

Amargando alguma frustração, comprou laranjas num beco da velha Skopje e foi visitar o museu judaico que permanecera à margem de suas andanças, localizado não longe do monumento a Alexandre, o Grande. Nele reatou com a história dos sefaradim e a chegada deles àquela parte do mundo. Por alguma razão que ele não soube explicar, se emocionou ao ver que o espanhol-antigo, ou ladino, era fartamente falado em Bitola, antes que as deportações em massa para a Bulgária desaguassem nas câmaras de gás de Treblinka. Muitos dos sobreviventes macedônios se engajariam firmemente na história da Iugoslávia, um deles tendo chegando a general do valetudinário Marechal Tito. Isso feito, Rino voltou ao hotel e se entregou a escrever. A amiga Ester, ao se inteirar do roteiro que ele fizera à tarde, lhe disse que ele teria sido um bom judeu. Ao que ele contestou com o estilo de sempre, afirmando que, se tivesse nascido judeu, era possível que estivesse alinhado aos anti-semitas moderados. E foi ruminando essa reflexão rasa que rumou para a rodoviária sombria, de estilo soviético.

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O ônibus saiu de Skopje pouco depois das oito horas e eles eram apenas uma dúzia de passageiros, o que deu a cada um pelo menos o banco ao lado de espaço extra. Foi um bom começo. Rino o ocupou com dois quilos de frutas e passou a primeira hora de viagem imaginando que conspiração maldita era aquela que os obrigava a assistir aos vídeos mais horrendos do mundo sempre que embarcava num ônibus da Europa do Leste. Em todos, um após o outro, performavam músicos de terceira. Ali, pois, na pequena tela e em todas as línguas, havia mais do mesmo: um sujeito solando, acolhendo celebridades, dominando multidões bem comportadas que, por sua vez, contavam com uma bateria de mulheres vulgares na linha de frente. Enfim, sob uma iluminação alucinante, ressoava uma imensa parafernália eletrônica, com direito a closes em saxofonistas fajutos. Sem entender como o dono do ônibus podia achar que isso distraísse alguém, Rino permaneceu prostrado. Ninguém protestava, ninguém reclamava do clarão que emanava da tela, mesmo ao final da programação, quando só restara uma luz azul, má companhia para o sono.

O fato é que, apesar do péssimo entretenimento, atravessaram a primeira fronteira duas horas depois da partida. A saída da Macedônia pode ter levado metade desse tempo, mas outro tanto foi gasto para entrarem na Sérvia. Isso feito, o motorista e o auxiliar queriam jantar. Daí resultou que, às primeiras horas da madrugada, ainda estavam em algum ponto entre Nils e Belgrado, em nova parada, enquanto uns tomavam café e todos os demais passageiros fumavam, celebrando com alívio cada escala. Ali mesmo Rino engrenou uma conversa amistosa, quase calorosa, com Tanja, a macedônica nascida perto de Düsseldorf que falava bem alemão. Terminaram cochilando colados um ao outro e só voltaram a ser despertados duas horas depois, após terem contornado o Kosovo, já dentro da zona da tríplice fronteira a partir da qual, aí sim, acessariam a Bósnia. Para fazê-lo, precisavam entrar em território croata e atingir o ponto de passagem permitido. Pelas feridas passadas, era inconcebível o tráfego direto da Sérvia para a Bósnia. Idiossincrasias dos Bálcãs, como não poderia deixar de ser desde a morte do Marechal.

A entrada na Bósnia-Herzegovina foi tranquila e, pouco depois do posto de fronteira, o motorista parou para um café, dando início ao ritual de distribuição generosa de cigarros entre os passageiros, como se isso integrasse um sinuoso código de etiqueta. Uma coisa era certa: eles sempre paravam pelo dobro do tempo com que inicialmente acenavam. Se diziam dez minutos, os viajantes deveriam esperar pelo menos uns vinte. No momento de embarcar, todos recuavam para um último cigarro. Finalmente, se fez dia e a paisagem era outra, nada tendo a ver com a da Macedônia, últimas imagens que Rino guardava da claridade solar. Predominava um perfil de mansardas de três andares de cor ocre e, aqui e acolá, havia casas detonadas por perfurações de bala de todo calibre. Para quem tinha a referência, como era seu caso, mais parecia um vilarejo sírio do Golan. Um homem – bonito, de óculos escuros, mas sem uma perna – esperava por uma encomenda e o motorista tirou-a do bagageiro do ônibus e colocou-a no carro adaptado sem que precisassem trocar uma só palavra. Pareciam obedecer a uma rotina há muito estabelecida.

Ao passarem por Srebenica, palco do maior banho de sangue da Europa desde a Segunda Guerra, eis que Rino percebeu quando o motorista buzinou e freou com todo o peso do corpo mirrado. Os pneus carecas deslizaram na pista úmida, o cheiro da borracha queimada invadiu a cabine, mas já era tarde para evitar o choque com um carrinho que aguardava a vez de entrar à esquerda. A condutora saltou atordoada e enfurecida e, pelo jeito, sentia dor na nuca. Todos os envolvidos acenderam um cigarro, inclusive os espectadores. Em dez minutos, chegou a polícia que tirou o ônibus e o carro da pista, depois de feitas as fotos e o registro num livro-ata. A mulher estava indócil. Era alva e tinha cabelo preto brilhante, quase azul. O contratempo atrasou a viagem sem fim, mas, para Rino, não havia pressa alguma porque queria ver as paisagens e, pensando bem, só poderia se registrar no hotel depois do meio-dia. A menos de cem quilômetros de Sarajevo, Tanja se despediu e caiu nos braços de um bósnio troncudo que a esperava ao lado de um velho carro russo. Chegando à rodoviária, Rino aspirou o ar fresco com volúpia. Chegara à capital, terra de sonho e pesadelo.

 

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