I
Não podia ter sido maior o susto de Doroteia ao deparar o detalhe da cena, mal o filho abriu a porta para recebê-la, munido daquele olhar esgazeado que lhe era próprio, onde as retinas mal dissimulavam o enfado de tê-la em seus domínios. Pois, precisando se submeter a consulta médica na cidade, pareceu sensato à mãe ficar hospedada na casa de Nestor. É bem verdade que a prima Teresa lhe oferecera pousada e ela quase cedera ao convite. Especialmente quando esta alegou que, de mulher para mulher, atravessariam com mais cumplicidade as quadras amargas da vida, como podia ser o caso daquela, caso o diagnóstico perverso se confirmasse. Que o bom Deus a livrasse, mas “homens não são equipados para esses momentos, Doró. E aqui, minha filha, não falo só de Nestor, não. Falo de todos eles“. Mas, por dever de coração, Doroteia apenas agradeceu. Insistiu em ficar com o filho ainda que mais não fosse porque o apartamento onde ele vivia lhe pertencia, ora bolas, e, querendo ou não, seria uma maneira de ver de perto seu dia a dia, e estreitar algum laço remanescente.
Nestor era o único varão que a vida lhe dera, já se iam bons quarenta anos. Se ele ia gostar da intromissão, isso era o que menos importava. Não se deixaria intimidar por cara feia e, tão logo estivesse instalada, iria ao supermercado fazer compras pela simples razão de que precisaria comer. E bem sabia que o regime alimentar do filho era espartano, para definir petição de miséria com alguma elegância. Ademais, a última coisa que toleraria seria que ele estalasse muxoxos casa afora por conta de gastos extras, apesar de estar lhe devendo dinheiro de trabalho suado já há muitos anos. Pinçado pelo orgulho patológico dos fracassados, contudo, Nestor fazia malabarismos hercúleos para passar ao largo do tema, quando pressentia que ela poderia abordá-lo. Agora, no apartamento escuro e mal ventilado, impregnado de um bolor que se fazia quase palpável, Doroteia esperava que ele terminasse aquela conversa telefônica sem fim e parasse de zanzar pela sala. Ao fim do que, pelo amor de Deus, que ele explicasse o que vinha a ser aquela espécie de descanso de copo em crochê que usava no cocuruto, preso por um grampo aos cabelos, igual a uma gente que ela já vira na televisão. Será que, no desespero de uma vida sem propósito, ele abandonara a fé católica? Ou aquilo era só mais uma das tantas esquisitices que abraçava periodicamente? Só de presenciar a cena, já tinha valido impor sua presença.
II
“Não, mãezinha, presta atenção pois não é nada disso que você está pensando. Isso aqui é só uma kipá. Isso mesmo, são os judeus que a usam, geralmente em festas, enterros e cerimônias religiosas. Para quem se diz ignorante das coisas do mundo – e aqui louvo sua autocrítica pertinente -, você quase acertou na mosca. Mas muitos também a usam no dia a dia, como traço identitário de pertencimento. Isso vai do fervor e do respeito à tradição de cada um. Calma, eu chego lá. Seguinte: como o dinheiro anda fugindo de mim desde que nasci – afinal, tive que arcar com o ônus de você e meu finado pai serem rematados pobretões -, agora estou usando esse adereço sempre que trabalho em casa. É uma forma de trazer bons fluidos, boa energia, mãezinha. Ninguém está me vendo entre essas três paredes, é de graça e mal algum não pode fazer. Pergunto: por que não haveria de imitar os judeus no que posso? É tão simples. Pois até lá de seu grotão – nosso, aliás -, você certamente sabe que eles vão muito bem, obrigado, não é? Pelo menos financeiramente. Qualquer judeu minimamente articulado mora nos melhores endereços e dirige carros de grife. E já nem falo dos que dominam a televisão e o mundo do entretenimento. Estes – do tipo Bial, Leifert, Abravanel, Justus, Huck – já viraram milionários. Pois bem, acho que está explicado meu pequeno e inofensivo rito. Isso não quer dizer que virei adepto da cabala. Desde que Madona aderiu, aliás, os cursos ficaram muito caros. Pronto, a kipá já está aqui guardadinha na gaveta e só será acionada quando eu tiver outro telefonema relativo a dinheiro, o que, infelizmente, não deverá acontecer por alguns dias, salvo se for um cobrador”.
Cortando com um gesto brusco a tentativa materna de dizer alguma coisa, Nestor emendou com outra ladainha: “Agora presta atenção ao que vou te dizer. Desde meu aniversário, eu me impus um programa radical de corte de despesa. Sim, isso mesmo, mais um e, por favor, não faça essa cara. Como dizem os maiores cervejeiros do mundo, sempre haverá custos a cortar. Sempre. Assim, como essa burguesia torpe e metida não quer abrir a carteira e vive me dando calote após calote, só me resta fazer minha parte aqui na minha trincheira e economizar no que der. Para que você tenha ideia, mãezinha, até fio dental está medido. São três centímetros ao dia e basta. O papel higiênico – esse detalhe para você eu posso dizer – pode ser usado em até quatro faces, dependendo da forma de dobrá-lo. É infalível. Eu sabia que a geometria euclidiana me serviria de alguma coisa um dia. Detalhe: se o dedo sair premiado com uma sujeirinha, é só lavá-lo na pia do banheiro com água fria e dar uma esfregada rápida das pontas no sabão de coco. Quanto ao banho quente, ele está restrito aos dias em que a temperatura cai abaixo de quinze graus e, mesmo assim, não pode passar de dois minutos. Em rapidez, é padrão lava-jato curitibano mesmo. Descarga, por favor, só em caso de número dois, entende? A economia não poupa nada nem ninguém. Até o peixinho Harpagon já foi para o além. Vinha comendo demais, não fez jus ao nome, paciência. Na cozinha, falando nisso, tem um resto de pó de café e vou comer a banana da fruteira logo mais ao meio-dia. Aliás, o supermercado continua no lugar de sempre. Você já tem a passagem de volta, mãezinha? O seguro saúde vai cobrir a consulta com um especialista? Olha lá, hein. Quem muito procura, termina achando.”
III
Ao cabo do segundo dia, tendo voltado para casa já ao escurecer, Doroteia sentiu a noite cair com acentuado desânimo. As notícias médicas não eram de todo alarmantes, considerando os precedentes de amigas de geração, algumas delas precocemente falecidas. Nesse contexto, o que lhe dissera Dr. Paulo foi quase tranquilizador e ela enfrentaria o tratamento com a determinação dos que sabem que têm um bom prognóstico. O genro já lhe prevenira que, se confirmada a malignidade, era melhor encarar a doença como uma companheira crônica e saber que viveria com ela por anos a fio. Se a cabeça se mantivesse boa, morreria até de outra coisa. A modorra interior vinha toda daquela cidade trepidante e cansativa, cuja beleza ficava escondida na sensaboria dos domínios de Nestor que, por sua vez, não fazia o mínimo esforço para tornar a vida mais respirável. No fundo, talvez, Doroteia se sentisse um pouco culpada por ter sido rígida na educação financeira que dera ao filho, tentando desde cedo incutir um mínimo de respeito pelo dinheiro. Não seria do pai que ele tiraria o bom exemplo, sendo este o rematado celerado que foi. Então coube a ela louvar a parcimônia que, segundo a tradição em que crescera, integrava a boa norma doméstica. Tanto quanto tirar um diploma ou cumprimentar as pessoas. Mas, queria lhe parecer, errara na medida. Por outro lado, Patrícia fora criada segundo o mesmo receituário e obedecendo àqueles valores. E, no entanto, era uma moça feliz e de bem com a vida, mãe de um filho lindo e a caminho do segundo, casada com um homem afável e bemsucedido. Logo, a patologia de Nestor podia estar ligada ao sangue degenerado do pai, o que, francamente, não chegava a ser consolo para uma mãe digna do nome. De uma coisa estava certa: mesmo que chovesse dinheiro na varanda do filho, nada mudaria. A avareza chegara ao ponto de não lhe permitir um gesto de largueza e o convívio humano se tornara para ele um palco de extorsão em que só se realizava, mesmo que por alguns minutos, se tivesse a sensação de que levara alguma vantagem decorrente da esperteza.
Fosse como fosse, não se conformava com o ódio que crescera no coração do filho contra a irmã. Dela dizia os piores horrores, e mais ainda do cunhado – o único genro a que Doroteia teria direito. Medindo bem as palavras para não lhe ferir ainda mais a suscetibilidade de enferma, Patrícia lhe contara como se deu o entrevero que gerou o rompimento de ambos. Nestor vinha se insinuando para fazer a contabilidade da clínica de Nemer, médico de fama na cidade onde viviam. A filha não gostou dos canais cruzados de negócios com a vida em família, mas o marido a tranquilizou dizendo que isso não seria problema desde que ele fizesse um bom trabalho. Como libanês de origem, pensava: por que não prestigiar o tio de seu filho? O que podia haver de mais importante do que os laços afetivos? Por não se tratar de serviço interno, Patrícia ficara mais tranquila. Até o segundo mês, tudo corria bem e Nestor chegava a lhe telefonar – sempre a cobrar – para saber do sobrinho e comentar amenidades. Até que um dia apresentou à clínica uma conta que era um despropósito. Não somente pedia reembolso de pequenas despesas de deslocamento e refeições indecentes, como ainda sugeriu que queria receber um porcentual correspondente à diferença entre os impostos a pagar do exercício passado e o do atual, dizendo que merecia um tal “bônus de performance”. Nemer explodiu diante de tamanha má fé pois nada daquilo fora combinado. Nestor passou a chamá-lo de “balconista de esfirra”, “açougueiro de Beirute” e coisas piores. Nunca mais se viram e o nome dele foi banido naquele ramo da família. Como lhe tirar a razão se Nestor se tornara um proscrito por onde passara? Doroteia corava de vergonha quando pensava no papelão do filho frente ao genro probo e, na penumbra, afundava no sofá. Noite dessas, tendo se encharcado de bebida em alguma boca livre, Nestor lhe dissera que, para ele, uma prostituta e a irmã se equivaliam, pois, ambas se vendiam. Pela primeira vez, Doroteia considerou que ele vivo, valia tanto ou menos quanto morto. E que não o estapeara porque, de fato, estava cansada e a doença a fragilizava. Ademais, era seu filho e seus deveres para com ele eram bíblicos. Ponto.
IV
“A senhora me coloca numa situação difícil, francamente. Mas mãe é mãe e o que eu vou contar é menos o que eu vejo e mais o que escuto falar. A senhora imagine só, aqui na portaria ficamos sabendo de tudo, não é mesmo? Quase todo mês, seu Nestor tem uma discussão com a síndica que, para ser sincero, já nem leva em conta o que ele diz. De primeiro, queria uma redução no condomínio, se prometesse que não iria mais usar o elevador. Quando o pedido foi negado, xingou todo mundo de oportunista e veio com a solicitação de um abatimento no rateio da água, alegando que passa dois fins de semana por mês visitando a senhora lá no interior. E que, quando está aqui, se contenta com a piscina pública. Daí usar menos água do que a média dos moradores. Francamente, prefiro minha pobreza, dona Doroteia? Tempo desses, já era alta madrugada, botou para fora de casa uma mulher de idade por conta de dinheiro, alegando que a velha – me desculpe falar assim – não queria pagar a ele o que tinham combinado. Acho que a balbúrdia se deveu a medicamento com bebida, mas D. Guita, a síndica, disse que da próxima vez chamará a polícia porque pode ser droga. Depois disso, seu Nestor ficou mais de um mês sem dar um bom dia a ninguém, sequer a mim, acho que por vergonha. Não vou dizer que ele seja má pessoa. Aliás, é o que pensam os moradores em geral. Ele bem que tenta dar certo na vida, é estudado, mas as coisas não acontecem. Talvez seja por essa mania de querer cobrar até pelo ar que as pessoas respiram”.
Vendo que Doroteia parecia beber cada uma de suas palavras, ele continuou: “Pois bem, quando ele está de bom humor, se percebe logo por causa da música. D. Guita faz vista grossa para o volume nas alturas depois das dez horas porque, no fundo, diz que é melhor assim. Às vezes ele desce até aqui e fica na portaria enquanto eu vou pegar um cafezinho pra nós dois. Quando eu abro o embrulho do sanduíche que minha mulher prepara para eu atravessar a madrugada, ele arregala aqueles olhos verdes com tanta vontade que eu toda vez lhe dou a metade, pois fico com dó mesmo. Então eu rio quando ele diz: “Denílson, é você que está oferecendo, eu não estou pedindo nada, viu?” Então eu digo, tudo bem, seu Nestor, está claro que o senhor está só sendo gentil e me fazendo um favor. Ai de mim se o sanduíche for de queijo. Ele bota defeito na hora. Prefere pernil ou mortadela, já pensou? Ele é assim. No fundo, talvez ache mesmo que as pessoas caem nessa inversão que tenta fazer pra manter o orgulho. Muitas vezes sei que ele passa fome e não é por outra razão que está só pele e osso. Segundo ele, jejuar faz bem às ideias. Será? Acho que tudo poderia mudar se ele tivesse uma mulher, se a senhora me permite dizer. Ou alguém, sei lá. Não faz muito tempo que ele disse invejar a vida do cachorro do 132. “Além de viver com uma gostosa, ainda come sem botar a mão no bolso”, foi o que ele falou. Na hora eu ri, mas depois fiquei com pena. Como pode um homem sadio e formado invejar um cão? É pedir um castigo. Se ele ao menos tivesse um trabalho fixo, não é? Mas toda vez que aconteceu, não durou. Isso é da pessoa, não tem jeito. Seu Kaufman, morador do 112, tem horror a ele. Convidou-o uma vez para tomar uma cerveja, mas seu Nestor só saiu do bar depois de se empanturrar com comida e caipirinha. Para o velhote, trata-se de um aproveitador nato. Para mim, não. Seu Nestor é só um azarado que perde muito por achar que os outros são idiotas. A senhora pediu, eu falei. Desculpe alguma coisa”.
V
À medida que os três dias inicialmente previstos foram se transformando em dez, Doroteia se apercebia de que as máscaras do filho começavam a cair. Chegou até a desconfiar que o propósito de um comportamento tão destrutivo não era outro senão o de desestruturá-la e, talvez, conseguir que ela pedisse socorro ao “ladrão fenício” ou mesmo à prima Teresa, com quem trocava confidências naqueles dias de pouca luz e penumbra. Temendo que Nestor a repudiasse de vez em sua pior hora, o que seria fazê-lo incorrer em pecado mortal, Doroteia houve por bem deixar duzentos reais na mesa de cabeceira com um bilhetinho: “Meu filho, Sou meio noveleira e vou abusar da televisão nesse período mesmo porque essa primeira quimioterapia me debilitou muito e não tenho disposição para sair. Desculpe se lhe invado assim a privacidade. Aqui está um dinheirinho extra para a conta de energia e para você ir ao cinema com uma amiga. Beijos de sua Mãezinha“. Mal sabia ela que logo se arrependeria amargamente do pequeno gesto.
Isso porque, brandindo as quatro cédulas de cinquenta reais entre os dedos, Nestor chegou a assustá-la quando despertou-a na sala com um indignado “posso saber o que é que isso significa?” Quando Doroteia lhe explicou que tudo estava dito no bilhete, ele arregalou os olhos, coçou a incipiente barba arruivada e, escandindo as silabas, bradou que não vivia de migalhas: “Você acha que essa cidade dá alguma coisa de graça a alguém, senhora dona Doroteia Maria? Vamos lá: supondo que eu aceite seu óbulo e que também acate sua sugestão de ir ao cinema, você acha que vai me sobrar alguma coisa depois? Some dez reais de combustível, vinte de ingresso e vinte de estacionamento. Para garantir sua tranquilidade, digamos que eu coma a mais ordinária das pizzas na sequência, o que significa outros quarenta reais. Pois bem, se cair na besteira de chamar alguém para me acompanhar, conforme sua intrusiva sugestão, adicionemos pelo menos mais uns cinquenta. Está me acompanhando ou sua aritmética só funciona em favor de sua esperteza de doentinha? Ora, com o aumento da conta da luz por causa de suas sessões coruja, não há dúvida de que, já no próximo mês, o medidor acusará uns cento e trinta reais, talvez mesmo cento e cinquenta. Pergunto: o que eu ganho com seus duzentos reais, portanto? Um filmeco que, cedo ou tarde, eu veria de graça na televisão aberta? Obrigadíssimo, mas minha honra não vale tão pouco“. E bateu a porta com força.
Doroteia não sabia o que dizer e engoliu em seco. Mais uns dias, teria a segunda aplicação e depois poderia voltar para casa por um mês inteiro. Já deitada, tentando esquecer o episódio, Nestor surgiu na soleira da porta e, por um momento, ele teve medo do que poderia acontecer. Estaria ele armado? “Bem, para que você não diga que sou ingrato e para não parecer mal-agradecido, vou aceitar sua caridade. Mas é pelo seu bom sono, ouviu? Não por mim. Anote aí, ficou me devendo mais uma“. Ela fez um gesto e adormeceu imediatamente. Graças à filha, porém, conseguira mais uma pista indicativa que, no dia seguinte, tentaria explorar. Tivesse diante de si vida longa ou curta, queria de uma vez por todas entender o que pudera ter feito de tão errado com Nestor. Atribuir o mau caratismo à pobreza, era insultá-la vilmente. Menos mal que ele fazia terapia em grupo. Segundo Patrícia, o grupo “Sempre às quintas-feiras” se voltava para combater compulsões suicidas.
VI
“Sou o Nestor e me chamam de Capixaba. Em português claro, eu já pensei em me matar, daí minha presença hoje. Estou aqui também porque é um investimento barato. Mesmo podendo, eu não pagaria por terapia individual. O que me motiva a viver é a perspectiva de um dia ficar rico e calar a boca dessa gentinha medíocre que vive em lugares da moda. Mas antes de sonhar com a solução – que já tenho -, falemos do problema. Como o Poli disse para ser direto, vou ao fato. Dizem que sou um baita sovina, um mão fechada. Essa atitude, segundo minha irmã, é doentia e sabota o que a vida teria de bom para me dar. Será? Não sei. Parafraseando um intelectual, ela diz que eu sei o preço de tudo e o valor de nada. Mas é só o meu jeito de ser. Se me dão um presente, vou logo verificar o preço. Nasci assim. Por exemplo, esses salgados que seu Francisco trouxe, desencadeiam em mim todo um pensar financeiro. É um condicionamento, se quiserem. Os risoles são de uma padaria conhecida e custam seis reais e cinquenta a unidade. Ora, ele trouxe uma bandeja com quarenta e três. Dá uma média de mais de três unidades para cada um aqui. Então, penso: se eu como meus três e, discretamente, levo mais dois no bolso, economizo o jantar. Por outro lado, concluo: se isso foi a sobra da festa, significa que ele gastou na padaria uns mil reais. Tirando outro tanto de bebidas, o patamar financeiro dele é mais alto do que o meu. Mas não tão elevado quanto o da oradora que me antecedeu. Quer farejar o dinheiro? Olhe os acessórios como cinto, sapato e relógio. Rico só usa dos bons. O que mais? Há muito tempo não tenho namorada porque nada que acarrete despesa me interessa. Nem sendo Gisele Bündchen. Tampouco quero ser gigolô, até por princípio. Não bebo – nem de graça – e deixei de fumar porque é um vício caro e o governo não merece meus impostos. Uns dizem que eu valorizo muito o pouco que dou e desconsidero o muito que recebo. Mas, enfim, os bares estão cheios de psicólogos vazios. Essa é velha, desculpem. Vamos ao refrãozinho? O suicídio pode esperar, só a vida é para já. Satisfeitos? Sem aplausos, por favor”.
Epílogo
“Meu filho, Hoje Teresa me conseguiu uma carona para a terrinha e resolvi antecipar em um dia meu regresso, o que imagino vá lhe proporcionar algum alivio. Ao menos assim, quando os cabelos começarem a cair, estarei perto de nossa vidinha, o que vai me dar a energia necessária para tocar adiante a luta, estando o hospital local apto a seguir os protocolos. Sua irmã já está avisada de minha partida e confirmou que pretende passar o Natal comigo, o que significa que você é bem-vindo para aparecer no Ano Novo. Vão fazer uma festa na churrascaria e pode deixar que eu pago a entrada para você. Mas se quiser ficar em casa também, pode ser uma boa ideia. Nunca é demais agradecer a hospitalidade que você me proporcionou e pedir desculpas pela invasão, especialmente no meu estado atual em que sou um peso morto. Chegando lá, vou fazer um depósito de quinhentos reais na sua conta para que você tenha um fim de ano mais tranquilo. Quanto àquela sua ideia de um crédito consignado para ajudá-lo no tal investimento, confesso que não estou à vontade e fui desaconselhada. Não me queira mal. É melhor irmos passo a passo, não pode haver negócio que compense esses juros, pelo menos foi isso o que me disseram. Peço que continue com sua terapia e mande seu currículo para empresas sem discriminar nenhum ramo. Não importa que seja fora de suas preferências. Você tem uma cabecinha que voa muito alto e não é recomendável que fique desocupada por tanto tempo. Não posso negar que voltei um pouco preocupada porque com hereditariedade não se brinca. Seu pai foi um homem de muitos erros e pagou caro por eles. Mas nunca se meteu a manipular os outros e, coitado, teve vida curta como difamador. Que o bom Deus o abençoe. Fico no aguardo de notícias. Um beijo de sua Mãezinha“.
Viiixxxxeeeeee! Confesso que vim aqui ler o Fernando Dourado de curiosidade: que será que o homem terá inventado essa semana? Pois é incrível como ele consegue inventar algo cada 14 dias, p’ra Será? Pois achei esses personagens um horror e uma desgraceira, um nojento e outro conformado, prova de que Fernando escreve bem e sabe criar um personagem.
Helga,
Que alegria tê-la aqui a acompanhar as vicissitudes da pobre Doroteia e de Nestor, o biltre. Sim, efetivamente dou tratos à bola para me sair com uma história original, o que não se dá por milagre. Elas ficam decantando na cabeça por dias e quando vou para o computador, tomam forma rapidamente. Fico feliz em ver que você começa a embarcar nessas narrativas com menos preocupação quanto à verossimilhança dos fatos. Mesmo porque, a essa altura, está claro que a realidade vai sempre superar a imaginação dos escritores mais inspirados. Feliz 2017 e um abraço.
Fernando, feliz 2017. Mas eu não questionei a verossimilhança porque achei verossímil, ora essa. Eu conheci uma pessoa, um estudante de doutorado em Cambridge, que beirava o doente como esse, a se preocupar com tostões (chegou a “levar” escondido umas bananas, ao fazer compras no supermercado), foi viver com uma mulher linda e rica (que apesar de pão duro extremo algum charme ele tinha), e ficava infernizando a vida dela em cada centavo gasto, até da luz acesa e da água do banho (e isso que o dinheiro era dela!!!! uma loucura, ela me contava). E mãe que aceita passiva as maiores barbaridades dos filhos tem é muito!
Helga, tenha também um feliz 2017. Efetivamente, não há limite quando se trata de despencar no despenhadeiro da mesquinharia e da sovinice. O mais difícil é que os acometidos por essa patologia se deem conta de que, no frigir dos ovos, são eles os grandes perdedores no jogo da vida. Engraçado, só depois de reler o que tinha escrito me ocorreu matutar sobre a palavra que meu pai usava para se referir a esses pessoas. Não era unha de fome nem mão de vaca, como é comum no Nordeste. Chamava-os de “miseráveis”, o que tem uma vaga conotação de Victor Hugo que nunca me ocorrera associar.