Ivanildo Sampaio

Deuses e deusas do Olimpo são testemunhas de que nunca gostei muito do cantor Roberto Carlos. Nos áureos tempos da “jovem guarda”, minha fidelidade às raízes da Música Popular Brasileira me levava a olhar com certo desprezo aquele movimento que surgia e que empolgava grande parte de minha geração. Entre o violão de Baden Powell e a guitarra de Erasmo Carlos, eu era cem vezes mais o primeiro. Entre o sacolejo estrepitoso de Wanderléa e a voz pequena e intimista de Nara Leão, eu ficava com a musa da Bossa Nova. Noel Rosa, Pixinguinha, Cartola, Nelson Cavaquinho, da Velha Guarda; e Chico, Tom, Vinicius, Caetano, Gil , Vandré, João Bosco e outros tantos que integravam uma  geração  mais nova, compunham a minha coleção de LP’s – onde não havia um único disco  daquela “patota” que dirigia os calhambeques da vida.

Os tempos passaram, assim como passaram os Festivais da Record e a brilhantina Glostora, a ditadura caiu, algumas estrelas da chamada “Jovem Guarda” sumiram, envolvidas pelo manto da própria mediocridade. Na MPB tradicional, também houve perdas e deserções. Lamentou-se aqui e além a morte de Tom Jobim, de Baden Powell, de intérpretes como Nara Leão e Elis Regina, o desvio de rota de Chico Buarque, – cada desaparecimento desses deixando a nossa cultura mais triste e mais pobre. Roberto Carlos sobrevivia – vendendo cada vez mais discos e se tornando, a cada milhão amealhado, menos solidário e mais egoísta.

Nunca me conformei com o fato de que o filho de “Lady Laura” tenha apelado para a Justiça e retirado de circulação uma sua biografia escrita pelo jornalista Paulo César de Araújo, muito mais louvatória do que crítica, embora aqui ou ali falasse de alguns desvios de conduta praticados por Roberto, Erasmo e Wanderléa, o trio mais representativo do movimento musical que empolgava parte da juventude de então. Nunca aceitei que, nos anos mais duros da ditadura militar, Roberto Carlos se mantivesse absolutamente silencioso diante da censura, das prisões, dos sequestros, das mortes nos porões das delegacias e dos quartéis militares. Quando quebrava o silêncio, compunha uma nova canção dedicada a Nossa Senhora – revelando sua carolice primitiva.  Roberto não parecia um ser humano como todos nós.  Quando alguém viu, alguma vez, uma foto de Roberto Carlos brincando com o filho, que na sua megalomania batizou de “Roberto Carlos Segundo”, ou “Segundinho”, para os muito íntimos? Ou visitando um abrigo de idosos? Ou participando de algum tipo de campanha de solidariedade que não fossem aquelas patrocinadas pela emissora de TV que o acata e o acolhe?

A censura do livro de Paulo César Araújo, com prejuízos financeiros para o jornalista, não satisfez ao senhor dos ternos brancos.  Li, recentemente, numa revista de circulação nacional, outro episódio que empobrece ainda mais o criador do bordão “ é uma brasa, mora!”. Ele conseguiu levar à falência um conterrâneo, trabalhador e probo, que teve a infelicidade de também ser batizado como o nome de Roberto Carlos, por uma dessas coincidências da vida.

Pois bem, esse outro Roberto Carlos, corretor de imóveis em Vila Velha, no Espírito Santo, dono de sua pequena empresa, trabalhava sossegadamente na “Roberto Carlos Imóveis” quando recebeu a indesejável visita de um oficial de justiça, com ordem de fechar seu negócio, desativar o site, recolher seus cartões de visita. Decisão da Justiça, a não ser que o cidadão se chame Renan Calheiros, é para ser cumprida. O corretor Roberto Carlos Vieira, por um processo movido pelo cantor Roberto Carlos Braga, fechou seu negócio, tirou uma filha da Faculdade e colocou outra numa escola mais barata, baixou seu padrão de vida, passou a atrasar o pagamento de seus compromissos. Em resumo: foi à falência. Por que? Porque o cantor registrou, em todo o país, o próprio nome para exploração de qualquer atividade de negócio – ainda que jamais, em sua vida, tenha pensado em abrir uma empresa imobiliária. É justo isso? Como a justiça acata um pedido de bloqueio de um nome de fantasia para impedir que ele seja utilizado, por todos os séculos sem fim? Como se permite que um cidadão honrado vá à falência para cumprir o desejo e os caprichos megalômanos de alguém?

Fico feliz por nunca ter gostado do artista Roberto Carlos. Mas fico triste quando me deparo com a insensibilidade de um cantor que ao longo de meio século de carreira amealhou muitos milhões de reais, sem que se conheça dele um gesto de solidariedade humana, de ajuda aos mais necessitados, de uma obra social que sobreviva à sua presença aqui na terra.

Ivanildo Sampaio é jornalista