Negócio com morto – “Mário Leão Ramos estava empolgado com seu novo sócio, um químico italiano. Pretendiam construir uma fábrica para produzir sabores artificiais, sintéticos. “Caio, o italiano é capaz de sintetizar até gosto de pitomba”. E contou que o sócio tinha sido fuzilado pelos fascistas na Guerra, jogado na vala comum de um campo de concentração e dado como morto. Caio interrompeu o amigo. “Mário, você não pode confiar numa pessoa que já morreu”. Caio estava certo. O italiano não tinha rigorosamente nenhum caráter”. Em Pano Rápido, do cronista Joca Souza Leão.
Prólogo
O ano estava perto do fim. Atravessamos de carro o interior da Polônia rumo à Cracóvia. Por sorte, a rodovia estava seca, o que nos permitiu manter boa velocidade e chegar ao destino no começo da noite. Instalados no apartamento que alugáramos à beira do rio Vístula, caminhamos até a praça do Mercado para esticar as pernas. Embora o Natal já tivesse ficado para trás, a tradicional feira da época ainda resistia e oferecia aos frequentadores vinho quente com gengibre e canela, enormes pães de grãos, além de farta gama de salsichas e defumados. Carentes de aconchego, não nos animamos a comer em praça pública e resolvemos nos presentear com um jantar de carnes cozidas com cerveja, naquela que parecia ser a melhor taverna do centro histórico. Taline se surpreendia com o excelente nível de compreensão que lhe ficara do português, depois de passar um mês no Brasil. Já o marido se paramentava a cada quinze minutos para sair e fumar um cigarro ao ar livre, a zero grau. Voltava do frio exalando tanta nicotina que mais parecia ter fumado um maço inteiro. Quanto a Letícia, mantinha a curiosidade discreta de sempre. Ora fotografava pratos e adornos, ora me chamava a atenção para um detalhe do ambiente acolhedor. Quanto a mim, vez por outra ficava alheio àquilo tudo. Isso porque, sem me aperceber, remoía a historinha sobre um certo italiano que eu lera em Varsóvia, da pena do cronista recifense. Será que se tratava da mesma pessoa?
I
Quando eu tinha onze anos, se tanto, fomos passar a manhã do feriado de Tiradentes na casa que a família Aragão tinha em Piedade, então uma referência distante, já que localizada ao sul de Boa Viagem, praia nacionalmente conhecida. Mamãe deixou que meu irmão e eu acompanhássemos nossos amigos e, por uma vez, não fez as recomendações redundantes de praxe, pois se tratava de gente querida e em cujos critérios de responsabilidade ela confiava plenamente. O mar bravio da praia de Jaboatão dos Guararapes – onde se dizia que um tubarão já comera a perna de um padre – não a preocuparia sobremodo. Ademais, voltaríamos cedo, possivelmente a tempo de almoçar, porque D. Rosita pretendia tão somente hibernar a residência depois da chamada temporada de veraneio. Isso consistia em tomar providências práticas até o Natal seguinte. Assim rezava o rito do Recife dos anos 1960 e dantes. Dessa forma, brincaríamos na areia com os dois filhos do casal enquanto os adultos encobririam móveis com lençóis para evitar o acúmulo de poeira; recolheriam objetos de algum valor; acorrentariam o bujão de gás e, sobretudo, trariam de volta consigo bicicletas e eletrodomésticos, presas fáceis para arrombadores das herdades de veranistas em retirada. Por volta de uma hora da tarde, portanto, chegamos de volta ao sobranceiro edifício Capibaribe, a meia distância entre as pontes Princesa Isabel e Limoeiro, na rua da Aurora . E por aí o dia modorrento poderia ter ficado.
II
Crianças são assim. Basta que passem juntas bons momentos para que os queiram reeditar até que uma briga as aparte por um tempo. Não era incomum que os pais daquela época recomendassem alguma distância. Segundo diziam, servia para não enjoarmos da companhia uns dos outros nem perder o respeito mútuo. Fato é que, depois de comermos às pressas, logo revimos Jorge e Zé Antônio Aragão para jogar futebol na área de recreação, que ficava incrustada entre os dois blocos de vinte andares. O da frente, onde eles moravam, assumia um tom róseo com o sol do entardecer. O de trás, o nosso, de matiz azulado, se debruçava sobre o bulício da fábrica de bebidas Antarctica, dezesseis andares abaixo. A tal área – duas na verdade -, sem ter veleidades de ser um playground, consistia em dois raquíticos pátios de cimento áspero, separados por uma passarela que dava acesso aos dois apartamentos do primeiro andar. Assim sendo, ambos ficavam num plano elevado do térreo. Certo mesmo é que a imaginação infantil fazia com que aqueles espaços se prestassem plenamente para quase todas as brincadeiras. À guisa de barra de futebol, tínhamos uma escadinha de três degraus, que levava à passarela. A trave adversária, que loucura, ficava enviesada, a 90°, de frente para uma janela, providencialmente protegida por grades, na altura do terceiro quarto do morador. A cancha áspera que nem lixa tinha, portanto, o formato da letra “ele” e nos convinha maravilhosamente bem.
III
Naquela tarde de 21 de abril, então, às voltas com nosso pioneiro experimento de realidade virtual, jogávamos na quadra que estava protegida do sol, longe das crianças de colo e das babás de uniforme imaculadamente brancos. É claro que aquele futebol em pleno feriado não era do agrado geral, mas a maioria o tolerava. Meninos criados em apartamento gozavam então de certo indulto social. Numa cidade onde predominavam as casas, mesmo na orla, os adultos nos olhavam com alguma piedade, fazendo vista grossa para os ânimos exaltados e afetando indiferença à trilha sonora daquela algaravia. Quem mais se insurgia contra as brincadeiras era D. Edite, companheira de Dr. Pandolfi, ambos moradores do rés-do-chão. Ele era um homem austero e respeitado. Professor da Faculdade de Medicina, diziam que era temido pelo rigor. Corria a história de que ficara ainda mais severo depois que uma filha falecera. Filha esta que não tivera com nossa algoz, e sim com a esposa. Vá entender. Ele trajava ternos de um branco alvíssimo, da cor do cabelo algodoado, tinha o rosto vermelho e o nariz roxo. Era D. Edite, portanto, que, ameaçando prestar queixa a nossas mães, pedia para que não fizéssemos barulho, por conta do sacrossanto cochilo do amado, a quem era devotada. Longe de ser má pessoa, lhe partia o coração nos proibir a diversão que tínhamos à mão, mesmo porque gostava muito de mamãe e de D. Nilda, esposa de Dr. Augusto Wanderley, também morador de uma das torres. Tínhamos, contudo, que lhe entender o zelo excessivo de primeira suplente.
IV
Fora um tio de D. Edite que casara meus pais, lá pelo Carnaval de 1957. Chamado por ela de “tio-padre”, se tratava de ninguém menos do que Monsenhor Callou, uma as figuras de proa do conturbado clero de Garanhuns do pós-Guerra. Já o vizinho cuja porta ficava à esquerda de quem subia rumo aos elevadores, bem, este vinha de longe, e a bondosa senhora se benzia à sua passagem. Mas logo chegaremos a ele. O inconveniente de se jogar bola ali decorria das construções que cresciam nos terrenos ao lado. Um chute mais forte na bola, e eis que levava dez minutos até que alguém a fosse resgatar, e a trouxesse de volta das entranhas do que viria a ser o edifício Alfredo Bandeira. A caça à bola se dava entre os operários, escavadeiras, bate-estacas, serras elétricas, escorpiões, bombas de drenagem e sucção, e perigosas tábuas com parafusos que valeram a mais de um de nós uma sangrenta perfuração na sola do pé, e corridas apressadas ao pronto-socorro para tomar uma injeção anti-tetânica. Ocorria de os próprios pedreiros devolveram-na, mas não num feriado. Bem, o tal morador vizinho de D. Edite era um italiano, químico da Maguary, fábrica de sorvetes então localizada na avenida Cruz Cabugá, ali pertinho. Temperamental – forma como os adultos costumavam se referir às pessoas estouvadas – era, além do mais, um “neurótico de guerra”, na acepção geral. Mal passados vinte anos do fim do banho de sangue, esses tipos não eram incomuns, inclusive entre pracinhas brasileiros, apesar da aura heroica que se lhes dava.
V
Dele, portanto, eu não sabia quase nada. Mas como os nomes dos moradores eram afixados num enorme painel à entrada, eu costumava lê-los em voz alta, especialmente os dos estrangeiros, o que já traía uma vocação de linguista que, infelizmente, não se espraiou por tantos domínios quanto a princípio me parecia possível. No caso dele, era Gianluigi Rosso. Segundo diziam, costumava beber muito – característica incomum nos meridionais – e treinava artes marciais em casa. Para tanto, envergava um quimono e, aos gritos, socava e chutava enormes sacos de areia. Que melhor fonte para trazer à baila essas pérolas de informação do que Sérgio Wanderley, recentemente falecido, uma espécie de Homem Aranha avant la lettre, sempre a escalar grades e penetrar basculantes à cata de um ângulo bom de onde pudesse ver uma vizinha nua. Falando nisso, a esposa do italiano era triste e recuada, mais parecendo viver num burgo de seu país natal. Sempre de roupa escura, tinha uma melena preta que lhe caía sobre a testa e os filhos nos pareciam ser as crianças mais infelizes do mundo. Ele, que mais tarde saberia ser genovês, tratava com aspereza os filhos que, a seu turno, não tinham sequer direito a brincar conosco. Mas fato é que jogar bola em seus domínios não era tão arriscado quanto na corte de D. Edite e seu médico-rei. Isso era o que achávamos até aquela tarde. Isso também porque podem ser bem imprevisíveis os que, como ele, já foram dados por mortos.
VI
Pois bem, eu não sei ao certo o que se passou às três da tarde daquele vinte e um de abril dos anos 1960. Certo é que alguém chutou a bola com força demasiada e o vento a levou até a área vizinha, e lá fui eu pegá-la. Nesse intervalo, dizem os meninos que a italiana se queixara do barulho. Meu irmão, então encantado com a sonoridade das palavras – e muito novo para lhes saber o significado – parece que, diante do que lhe pareceu uma repressão, tê-la-ia insultado de filha da puta. Ora, quando eu cheguei com a bola resgatada, pronto para recolocá-la em circulação, como diziam os radialistas, me deparei com o italiano. Estava nu da cintura para cima, tinha o cinturão desabotoado – pois enfiara a roupa nas carreiras, premido pela fúria – e, me percebendo o mais alto do grupo, se virou para mim e perguntou: “Quem é filho de quem?” E é essa a frase que me martela até hoje. Não tanto porque mal formulada, mas porque, ato contínuo, no cheiro das emanações de uísque que eu bem conhecia, ele me sapecou uma tapa na bochecha – ou deveria por fim assumir que foi “na cara” – enquanto as demais crianças escapavam. Pegando a bola, chutou-a em direção ao canteiro do edifício Iemanjá, então em construção, e essa ninguém foi resgatar. Segundos depois, reinava um silêncio apavorante no local. A correr tudo segundo a tradição, não havia escolha. Ou o italiano morria, ou minha juventude se acabara aos 11 anos. O futuro mostraria qual das duas teses vingaria.
VII
Chegamos em casa esbaforidos. Aturdidos, na verdade. Meu irmão, nem tanto. Em minutos, já estava entretido com a caixa de brinquedos, animando uma guerra entre índios e soldados, atores preferenciais de um mundo fechado. É possível que nem se desse conta das consequências do que dissera. Embora isso pouca coisa mudasse, ainda hoje me pergunto se não teria sido Jorge Aragão a formular os insultos. Não faz lá muita diferença e, certamente, jamais saberemos. Só sei que tudo foi muito rápido. Eu, vergado pela responsabilidade que me caberia doravante – era um homem humilhado pois levara uma tapa no rosto -, não via como ocultar aquela história de mamãe. Ela percebeu sem demora que algo de errado ocorrera. Diante de meu relato, e se valendo de que papai estava viajando, em dois tempos urdiu uma estratégia de defesa. Com medo de que o marido alvejasse com arma de fogo o italiano, como já fizera anos antes em Garanhuns, em plena feira, num sujeito que, segundo ele, lhe ferira a honra, ela resolveu abafar o caso. Nada mais do estilo dela do que essa conduta, apesar de ser, para todos os efeitos, uma mulher valente. Telefonou para as mães dos presentes na hora do incidente, e disse que se papai soubesse, crivaria o italiano de bala, o transformando numa peneira – era bem esta a expressão – e que o melhor era que o assunto morresse. Poderia contar com as amigas? Sim, responderam em uníssono. Ela fingiu que acreditou.
VIII
Ingênua, desatenta aos meandros da psicologia infantil até hoje, posto que criada pela avó, empedernida esteta para quem a manutenção da fachada é um credo de vida, ou um simulacro de passaporte para a felicidade, mamãe achou que as aparências estando bem, todo o mais também estaria. Depois de passar o mesmo briefing para os empregados do prédio, me fez um afago e disse que a vida seguia adiante. “Pronto, já passou, meu filho. Evite aquele pústula e faz de conta que isso não aconteceu”. Para ela, era do interesse geral evitar vazamentos. As vicissitudes da natureza humana contavam pouco. Para aquela senhora de 36 anos, tudo se resumia a que, em consideração a ela, as pessoas cumpririam o prometido. A crença na força da palavra ainda é um traço marcante de sua personalidade, quase cinco décadas passadas. Ademais, se isso teria consequências emocionais em mim e se minha auto-estima saísse arranhada, era questão de somenos. Compraríamos uma roupa nova e tomaríamos um sorvete. Tudo para ela era melhor do que um escândalo que poderia virar tragédia, senão vergonha. Quem era eu para julgar? Àquela altura, ainda não soubera do incidente da feira de Garanhuns e dos matutos em carreira, fugindo das balas que zuniam. Mas já então, porém, talvez umas trinta pessoas soubessem do que ocorrera na área de recreação. Na hora do jantar, elas já seriam cem. Mamãe só aprendera o que era uma progressão geométrica para florear a retórica.
IX
Quando o assunto deixou de ser um tema quente, duzentas pessoas estavam inteiradas do sucedido. Uma amostra do pequeno inferno que se construiu ao meu redor, foi dada quando o sapateiro – um pobre diabo que purgava na cachaça a dor da perna que perdera num acidente – chegou lá em casa bastante embriagado e pediu dinheiro a mamãe, indiretamente cobrando pelo silêncio. Meu ódio fez com que quisesse lhe quebrar a muleta solitária. Mamãe insultou-o, mas contemporizou. Tempos antes, eu contara um episódio de valentia na escola – é incrível como as brigas começavam a se tornar comuns – e Terezinha, a empregada, me olhou com desdém e disse: “Besteira, menino, apanhaste na cara lá embaixo e até hoje tudo ficou por isso mesmo”. Era verdade. Prestaria queixa a minha mãe, como costumava fazer meu irmão sob qualquer pretexto? Não, ela tinha razão e nada mudaria os fatos. Tentaria sim seduzi-la, era melhor. E foi o que fiz. O menino fora humilhado; o rapazinho estava limpo, não fora maculado. Logo, pensava, tratemos de enterrar a criança, essa maldita. Sim, a verdade é que minha infância se evaporara aceleradamente naquele famigerado 21 de abril, feriado que me ficaria para sempre. É claro que o episódio um dia haveria de transbordar. E como se tratou de um dia cheio de sentimentos intensos e ambíguos, registro o que a fase intermediária assinalou até que cheguemos aos cruciais dias de junho com que fecharei a história.
X
Ora, se algum adulto condenou mamãe por agir daquela forma – e desconfio que alguns o tenham feito -, custo muito a perdoar tanto ela quanto nossos inúmeros parentes e amigos que, moradores do prédio, não tomaram uma medida para colocar o guizo no gato e contar as coisas de peito aberto a meu pai, quaisquer que fossem as consequências. Que ele avaliasse bem o que iria fazer, mas isso era problema dele, não nosso, muito menos meu. E foda-se, pelo menos eu não teria ficado com isso dentro de mim, com esse horrendo sentimento de toxicidade que me impregnaria boa parte da vida, e que decretara o fim de minha meninice. Na verdade, morria de medo que a história chegasse ao colégio. Se condeno mamãe, condeno também tios e tias que ali viviam e que poderiam ter tomado iniciativas mais frontais. Fosse na linha de forçar a mudança do italiano; fosse para sensibilizar meu pai de que eu já sofrera um bocado e que não seria vê-lo preso que mudaria esse quadro. Mas, não. Todos se acovardaram feiamente e, adulto que sou, jamais os perdoei. Eu teria agido diferente e de imediato. Eu teria pulado todas as salvaguardas e desnudado o rei porque não era certo fazer uma criança incubar um sentimento terrível daquele. Uma humilhação que poderia ter trazido consequências funestas para a vida adulta, se é que não trouxe. Mesmo com o sucedido em 28 de junho de 1972, a chaga ainda não cauterizaria de todo. Mas o que aconteceu nessa data?
XI
Hoje, quando vejo a boa relação que desenvolvi com a Itália, me surpreendo com os mecanismos da superação. Pois por alguns anos, a Península se me ficou como um recôndito de gente maldita. Fato é que um evento haveria de dar um novo curso aos acontecimentos. Era junho e tínhamos uma animada quadrilha nas Graças, na rua Jacobina, um local por nós conhecido como o sítio de Zeca. Sendo o Colégio de Aplicação minúsculo, encravado na rua Nunes Machado, de frente para uma fábrica de refrigerantes, nessa época ensaiávamos a quadrilha e a dançávamos em fins de junho naquele local tão aprazível, debruçado sobre o rio. O proprietário, pai de nosso colega, era ninguém menos que o notável jurista José Paulo Cavalcanti. Pois bem, naquele dia, fôramos passear em família à tarde. Ao voltar, devido à falta energia elétrica, levávamos todos garrafas de água mineral nas mãos. Na frente do edifício Capibaribe, Dr. Augusto Wanderley, professor cassado da Escola de Engenharia e homem cultíssimo, além de síndico, dava as instruções de como resolver o problema e restaurar pelo menos a energia o mais rápido possível. Fazia-o a seu estilo, gesticulando muito e falando em altos brados. Ri intimamente. Amante da ópera e profundo conhecedor de inúmeros enredos, a teatralidade estava enraizada na alma daquele homem atormentado, afastado da cátedra pela ditadura militar. Mal imaginava que o libreto do dia jogaria em meu desfavor.
XII
Entre o instante em que fomos estacionar o carro mais adiante e voltamos à entrada carregando garrafas e outras compras, eis que um incidente estava se produzindo. A exaltação de Dr. Augusto não era à toa. E quem vi ao lado dele? O satanás. Ora, o italiano, embriagado das carraspanas do sábado, resolvera estacionar bem em cima da calçada. Se esse procedimento era muito comum em sua Gênova natal, fato é que ele quase atropelou os operários da Celpe que se esforçavam para fazer o serviço. Quando muito pouco, passou por cima dos cabos elétricos tinindo de novos, o que causou indignação ao professor. Forte e truculento, Dr. Augusto pegou-o pela beca e travaram um combate aguerrido, segundo contaram. Quando o carro da polícia chegou, todos testemunharam contra o italiano e este, cabisbaixo e ébrio, foi algemado e instalado no banco traseiro do carro da rádio-patrulha. Diante da cena insólita, e vendo o estado do amigo que admirava – e com quem eu jogava xadrez -, papai interpelou-o sobre o sucedido e escutou um surpreendente: “Esse filho da puta jogou o carro para cima da gente. Foi ele, aliás, Fernando, quem deu um tapa na cara de seu filho”. Transido pelo estupor, meu pai, pálido, virou-se para minha mãe e perguntou: mas que história é essa, Lucy? Como é que você escondeu isso de mim? A farsa de conveniência que Lucy forjara, ruía abaixo três anos, dois meses e dois dias depois de lançada. Durara 1157 dias e quase tanto de noites.
XIII
Eu apertava as garrafas com as pontas dos dedos e por pouco que não as arremessei contra o vidro do carro para atingir o italiano. Mas não iria corrigir uma covardia com outra, nem tampouco pretendia desencadear um linchamento. Que festa de São João mais aflitiva seria aquela. Sabendo que era um evento que eu adorava, meus pais ignoraram meu estado de alma e ainda me deixaram no Sítio de Zeca. Devem ter voltado para casa na sequência. Imagino que ele tenha driblado o infarto com doses de “100 Pipers” e suponho que ela tenha usado da verbosidade para camuflar o erro monstruoso que cometera. O italiano estava preso naquela noite. Meu par na quadrilha por certo se deu conta de que algo de grave me afligia. A festa foi das mais animadas, mas a cabeça estava focada estritamente no que viria depois. Eu sabia que a coisa não ficaria barata e que, até pela forma teatral que Dr. Augusto dera ao fato, não restaria a meu pai fazer mais nada senão tomar medidas e acertar contas com o italiano. Pouco se me dava como ele o faria. Talvez os anos que passáramos no Rio de Janeiro, no rastro dos tiros que ele disparara contra um biltre em Garanhuns, lhe tivessem ensinado a refrear os impulsos. Mas eu ainda não conhecia esse episódio. Eu só sei que aquele homem me amava com todas as suas forças e que não haveria de deixar de graça uma afronta daquela magnitude. O que nos esperava? No fundo, torcia pela prescrição. Por outro lado, estava aliviado.
XIV
Na festa que se seguiu, a angustia se apoderou de mim. No dancing da sala, na sequência da quadrilha, enquanto um colega abraçava uma de minhas musas mais caras sob a luz negra que arroxeava nossos dentes brancos, eu sapequei um beijo numa garota do Rio de Janeiro. Ela era uma das filhas de militares que, apesar de não serem muito bem vistas, podiam ser atraentes. Caíam de pára-quedas no Colégio de Aplicação sem ter que passar pelo concurso draconiano que então nos era imposto, ao passo que os irmãos tinham acesso franqueado ao Colégio Militar. Todas tinham vivido uns anos em Resende, Rio de Janeiro, onde seus pais tinham cursado a Academia de Agulhas Negras. Não eram muito mais liberais do que as nossas meninas, mas estavam um ou dois anos na frente no terreno dos costumes. Além de falar com o sotaque que eu associava ao das putas, fato deveras estimulante. Esse beijo atabalhoado, cuja importância eu tentaria negar, me valeu dias depois uma acareação vexaminosa na frente de algumas amigas. Não, aquele dia nascera para ser riscado do calendário. Ou não? Como seria o próximo despertar? Eu não perderia por esperar. Certamente estava na hora de pagar um preço por 1157 dias de omissão e farsa. Chegando em casa, encontrei a sala mergulhada em escuridão profunda. Meu pai dormia e minha mãe, fumando mais um cigarro, tentou me tranquilizar. Tudo estaria bem. Mas só enquanto o italiano estivesse preso.
XV
Acordei com os toques da campainha da sala. Abri a porta sem entender porque ninguém tinha se apresentado para fazê-lo. Constatei então que era muito cedo. Daí imagino o estado de alerta em que fora dormir. Pois bem, lá estavam papai e o italiano. O primeiro, bem barbeado, como se o dia já tivesse começado há muito tempo. O italiano, meio amarfanhado. Ele fora liberado da delegacia logo cedo e papai o tocaiara no térreo. Mamãe certamente ainda dormia e meu irmão devia estar entretido com a caixa de brinquedos, se é que também não estava na cama. Aquilo não lhe dizia respeito – era o que sua atitude denotava. Papai não tinha podido abrir a porta com a chave porque tinha uma mão ocupada com o revólver e, acautelado, não podia se distrair. “Foi esse filho da puta que deu uma tapa em você? Agora pode pegá-lo, estou esperando. Se não agir, eu o mato. Vamos ver se ele é esse homem todo”. O italiano estava aflito, é lógico, mas não estava desesperado. Mais parecia que já vivera coisas piores “Signore, por favor. Eu nunca vi este rapaz. Tenho due bambini. Desculpe se aconteceu alguma coisa”. E falou, falou, falou. O tom era suplicante, teatral, insincero. Mas ele tentava se persignar, salvar a pele, falando um patuá desencontrado, típico de quem ficou a meio caminho entre as duas línguas. Eu estava contente porque meu pai me dera a chance de arbitrar a situação. Competiria a mim desempatá-la, segundo as regras toscas do psicodrama. Naquele intervalo de mais de 1000 dias, eu perdera minha infância, é verdade, mas ganhara maturidade e confiança. E não estava nem um pouco abalado por ter diante de mim o cara que me aterrara. O mal se banalizara.
XVI
Meu mundo experimentara uma expansão constante apesar de tudo, e não seria aquele infeliz que o encolheria. Agora eu o tinha ali, com o revólver a uma distância prudente, a continuar a fazer juras e repetindo o discurso humilhante. “Não dê valor ao que não merece, papai. Isso é um covarde. Um cachaceiro de ponta de rua. Não vá gastar sua saúde e uma bala com um lixo desse. Os filhos dele merecem pena, mal saem de casa”. Então papai lhe disse para ir embora e viver em outro lugar. Talvez aliviado, repetiu que ele deveria se considerar um homem de sorte porque saíra de casa disposto a matá-lo. Não o fizera naquela hora em consideração a meu pedido. Então, de novo a sós, agiu como se o fato ocorrido no passado explicasse uma mudança de conduta que ele não captara na totalidade. Pudera. Propôs que fossemos dar um passeio. Queria saber como fora a festa de São João. Ele enterrou o assunto para todo o sempre. Passou dias me tratando com extremo carinho e não saberia dizer se algo mudaria dali em diante, mas era possível. Com um gesto, ele, tido como a entidade monstruosa que trituraria Gianluigi Rosso e implodiria nossa pequena família, foi justamente o homem equilibrado que reduziu o impacto terrível causado pela estultice de uns e inadmissível omissão de outros que, durante anos, tinham acobertado o episódio insidioso. Mais do que tudo, papai me deu a primazia de arbitrar como é que eu queria que o jogo acabasse. Se apertaria o gatilho ali, não sei. Mas prefiro achar que sim.
Epílogo
No terceiro dia, nos levantamos cedo e fomos de carro para o complexo Auschwitz-Birkenau, dessa vez muito mais cheio de visitantes do que em qualquer outra das oportunidades em que lá estive. Indiferente às temperaturas negativas e aos longos descampados, só tive olhos para Letícia e a força contida de sua indignação. Como é que se colocavam cem pessoas de pé num pequeno vagão de gado por dias e dias ao longo da Europa? Como é que se admitia o fuzilamento de uma pessoa pelo simples fato de querer cobrir a pele com uma segunda camada de tecido, para se proteger das lufadas polares e constantes? Em Lodz, a caminho de Varsóvia, paramos para jantar e nenhum de nós quatro queria grande conversa. Quando alguém perguntava alguma coisa, a resposta só vinha dois minutos depois e, mesmo assim, quase monossilábica. Já na véspera do Ano Novo, fui ver a caixa postal e lá encontrei um e-mail de Joca. Não, o italiano parece que não era o mesmo, não. A tal sociedade com o químico peninsular aconteceu no Rio de Janeiro. Mas o amigo do pai dele perdera bom dinheiro com as patranhas do sintetizador de suco de pitomba que voltara vivo dos Campos de Concentração. Tão sinistro quanto o outro, o meu italiano tinha um histórico de turbulências e pusilanimidade. Isso eu percebi no suor que porejava das costeletas e na tensão que emanava de seu tronco miúdo. Quase meio século depois, contudo, ainda ressoa a frase insólita que precedeu o bofete que poderia ter mudado o rumo da vida. Como saldo, nunca aprendi, afinal, se tapa é substantivo masculino ou feminino.
* * *
Caro Fernando,
Pela primeira vez me identifico com os seus relatos, tão vivos e agudos.
Estive duas vezes na Polônia, visitei Auschwitz, morei um ano no edifício Iemanjá, vizinho ao Capibaribe, que tem uma “área de verão” semelhante, onde meus filhos brincaram. E subi várias vezes no Capibaribe, seja para telefonar para João Pessoa, num posto telefônico que havia no último andar, seja, bem depois, para visitar meu amigo Fernando José de Barros Correia, um gênio solitário que morava lá. E co-nheci, ligeiramente, Augusto Wanderley, que nunca superou a amargura da proscrição imposta pela ditadura militar.
Só um reparo, além dos meus cumprimentos: o tubarão não comeu apenas a perna do padre, comeu o padre todo, no início dos anos 60. Era o guardião da igrejinha de Piedade. Muitos anos depois, li no jornal o depoimento de um cidadão que testemunhou o padre sendo arrastado pelo tubarão.
Prezado Clemente,
Só o fato de sabê-lo por uma vez identificado com um texto meu, já terão valido os esforços de colocar para fora essa história pungente e dolorosa. Efetivamente, havia no alto do bloco B uma estação telefônica e folgo em saber que você tenha se avistado com Dr. Augusto Wanderley, um homem de quem eu gostava muito, apesar de protagonista do amargo pedaço relatado acima. Abraço
Li até o fim, apesar de comprido, porque o autor armou um suspense. Nos textos de Fernando Dourado que a “Será?” põe sob a rubrica “literatura”, fui desistindo ao longo do tempo de separar fato e ficção. Ainda mais depois de toda a discussão deste ano sobre se o que fez o Prêmio Nobel de Literatura 2016, Bob Dylan, é literatura. E alguém já disse que memória sempre é ficção, pois a memória de uma emoção já não é a mesma emoção. Fato ou ficção, o que me assustou mesmo foi essa noção do que é “tornar-se adulto”. O que aprendi na minha infância e adolescência, em Santos SP, é que a gente se torna adulto quando não depende mais dos pais para a sobrevivência, quando o seu ganha-pão vem do seu próprio trabalho. Mas pelo menos Fernando Dourado evitou que o pobre italiano morresse.
PS – A ilustração de João Rego é ótima: vira adulto o moleque que fuma seu primeiro cigarro.
Helga,
Ainda hoje não sei direito o que você considera literatura e a dimensão que ela pode ter em sua vida. Muitas vezes a vejo citar grandes poetas com naturalidade, outras tantas a vejo se abespinhar com as fronteiras entre a verdade e a ficção. Essa atitude enseja reações as mais variadas até entre os colaboradores regulares de Será?, mas isso integra seu lado iconoclasta com que venho aprendendo a conviver.
Não percorri o texto todo para saber em que trecho o “tornar-se adulto” há de ter cavado esse fosso enorme entre os valores propugnados em meu pequeno mundo e os dos desvãos da Baixada Santista de sua juventude. Num lugar ou outro, tenho certeza de que a maioria dos leitores escutou a voz interna que ditava os passos de um menino acossado. Se não consegui passar esse sentimento, falhei, e o demérito é todo meu. Obrigado pela visita.
Fernando
Fernando, você escreveu um filme de suspense, um policial, num embrulho de crônica autobiográfica.
Enfim, sabe dizer do destino do italiano?
Abraço.
PH
Perdi o rastro, deve ter ido dessa para melhor a essa altura. Era um homem explosivo, atormentado. Mas uma noite, em Gênova, há vinte anos atrás, passei horas ligando para todo mundo da família Rosso em busca do dito cujo. Mas, pela jeito, a “famiglia” era muito grande e não lhe achei as pegadas. Quando li a vinheta de Joca Souza leão, achei que poderia ter sido o mesmo.
Querido Fernando Dourado Filho,
Vamos crescendo junto com o menino você no mundo inteiro daquela cidade do Recife ancorada na memória para a qual tudo é verdade ou, ao menos, a verdade que importa porque memória. Não, não é redundância, é nova camada do sentido que se sedimenta. Vamos crescendo, crescendo, crescendo até ficar criança de novo como se as palavras desse balé mais diacrônico do que cronológico, coreografado no teu texto, fossem os pedacinhos de pão que largamos pelo caminho para guiar o retorno, sem saber que aquilo que fomos/temos e que deixamos para trás desaparece para reaparecer, transformado, na memória dos afetos. Ou não é isso o que nos dizem os passarinhos da história infantil que sabotam o retorno de João e Maria? Então, crescendo, nos vemos outra vez crianças com o menino dourado no próprio ritual de passagem. Nessa floresta, munidos de uma espécie de GPS afetivo com o filtro do tempo que (des)organiza tudo, raro deve ter sido o leitor que não se lembrou de si um dia perdido entre o que começava a ser e o que ainda era. Também raro deve ter sido aquele que não teve o coração desarrumado ouvindo o choro emudecido de cada uma das crianças extintas em Auschwitz-Birkenau, lugar onde a esperança não entrava. A pergunta de Letícia – como é possível ter havido aquilo – está grávida da resposta: é possível, apenas é. Ao escritor cuja memória do menino agredido, humilhado no homem que já irrompia, invadiu, lá do Recife, aquela reunião na Polônia, décadas depois restaurando a luz e a cor dos acontecimento, minha quase envergonhada oferta a título de gratidão: “tapa”, a agressão, é substantivo masculino; o termo empregado como feminino significa outra coisa. Deixe este comentário lá no Facebook. Um beijo, e mais um.
Ah, se todo mundo pudesse contar com uma amiga tão policrômica, sólida e ilustrada. Obrigado pelos comentários e pelas ligações ímpares, costuradas sobre a passagem de décadas.
O conheço há quase cinquenta anos, mas não sabia do caso. Entendi que ao final, tudo ficou bem. Somos primos, mas pouco sei sobre Você. Apenas uma pergunta: será possível ler o texto em 12 minutos?
Talvez os doze minutos alegados tenham sido um convite ao leitor mais preguiçoso. Se ele gostar do que lê, afinal, não se importará em gastar vinte, não é? Sim, Helinho, nos vimos pouco nessa vida que se encaminha para o outono. Mas o carinho sempre foi imenso e é sempre tempo de atualizarmos as conversas que não tivemos. Afinal, somos os mais velhos de nossas casas e sabemos o que isso representa, ademais de termos o nome de nossos pais. Isso traz melhor sintonia do que se imagina. Você não sabia? Era assunto proscrito para menores. E pasme, para maiores. Grande abraço e obrigado pela visita que tanto me honrou.
Amigo Fernando Dourado,
Como já se tornou praxe, sua pena desliza com força e magnetismo sobre o papel branco, não importando se o texto demandará 12 ou mais minutos para ser “consumido, devorado”.
Difícil – se não impossível – não nos prendermos nos detalhes e labirintos das memórias e/ou devaneios que o brilhantismo de suas palavras descrevem com um realismo tão intenso, que me vi jogando bola com você, no pátio do seu prédio.
E eu, que achava que conhecia algumas das mais significativas “passagens” de sua história, fui surpreendido com esse novo – e tão significativo – episódio.
Forte abraço do amigo que cada vez mais se encanta com sua destreza, como cronista e escritor.
Até a próxima – e que seja em breve.
Caro amigo,
Não é sempre que tenho dos Hélios como missivistas em torno de um só conto. Muito bem observado por você que com todas as décadas de convívio e amizade que nos unem esse episódio tão odioso jamais tenha sido revelado, logo a você que tudo sabe de minha vida. Meu silêncio a respeito é portanto sintomático, mas, como disse, uma hora o episódio teria que aflorar. Obrigado pela lisonja das palavras gentis.
Abraço,
Fernando