Fernando Dourado

Old hands writing.

Querida Catherine, como tenho feito cada vez mais nos últimos meses, vamos direto ao que interessa e deixemos as lantejoulas e os adereços para o final, se é que você vai ter paciência de acompanhar sua velha amiga até o fim desta carta que, prometo, nessa edição será sintética. Não tanto pelo amor à concisão (por que haveria de tê-lo depois de velha, às vésperas do grande silêncio?), mas em respeito a seus afazeres e, muito cá entre nós duas, antes que me assalte um novo surto de náuseas e de vômito como aconteceu semana passada. Isso explica em parte, aliás, porque não atendi às suas chamadas, mas registro com carinho o recebimento das flores e dos chocolates, muito embora a Dra. Susan, ao vê-los decorando minha mesinha de trabalho, agora de escasso uso, disse que eles ficavam para os netos, os garotos de Mark que têm aparecido por aqui com mais frequência do que eu gostaria. Daí ter ela instruído minha nora patética que os mantivesse longe de meus olhos – como se houvesse no labirinto desta velha casa algum recanto que eu desconhecesse. E como se a débil Sylvia tivesse um mínimo de engenho nessas lides.

Mas lá vou eu de novo…

Fui aceita no MI6 em fins dos anos 1970, quando deixei Leeds de vez e optei por morar em Kilburn. Anos mais tarde, e me perdoe aqui a vagueza deliberada, já estava vivendo em Malta com Reggie quando os russos me abordaram. A defecção de Kim Philby para Moscou a partir de Beirute, vinte anos antes, abrira um buraco em nossa autoestima. Desiludida, e nada pouco propensa a ficar do lado perdedor em qualquer hipótese, fui presa fácil para a inteligência de Moscou. Reggie nunca tentou me dissuadir de meus passos e desconfio que deles ele sempre soube muito mais do que deixava transparecer, o que me dá essa estranha sensação de estar sendo observada até hoje, tantos anos depois de sua morte. Estive ativa em ambos os lados do tabuleiro até o fim da era Maggie Thatcher, quando saímos de Chipre e voltamos para o Reino Unido. Tendo sobrevivido incólume a todas as verificações, resolvi que me tornaria uma versão feminina de David Cornwell (ou deveria dizer John Le Carré, meu vizinho de bairro?), ou de Graham Greene, amigo de Reggie. Foi aí que nossos caminhos se cruzaram. Você me ajudou muito na reinvenção de mim mesma, querida Kate.

Meu pai voltara da guerra inválido, mas só morreu em 1957. Àquela altura, eu tinha 14 anos e boa parte deles tinham sido da mais pura agonia. Minha mãe casou no mesmo ano que o levamos ao túmulo com seu melhor amigo, um oficial chamado Barry Westley, que se separou da esposa com ares de aristocrata para ficar com ela. Na época, isso não era tão comum, você sabe. Todos desconfiaram até de amor, ao que eu soube. No primeiro Natal depois do casamento, descemos para festejá-lo com a família de um irmão dele, ali entre Brighton e Eastbourne, numa encosta que estava salpicada de neve na nossa chegada. Barry era belo como um príncipe e vaidoso como um pavão. Compareceu uniformizado e cheio de condecorações à ceia, e eu achei que era para impressionar minha mãe. Naquela mesma noite, quando eu já apagara a luz na casinha dos fundos do chalé, vi quando ele entrou. Sentado na cama, ordenou que eu permanecesse deitada e começou a me acariciar os cabelos. Elogiou-lhes a sedosidade. Sim, fora um grande amigo de meu pai, dizia. Pouco a pouco, a mão dele começou a passear pelo meu corpo. Então, fechei os olhos.

Lembro que no dia seguinte fomos almoçar em Brighton, na casa recreativa do Almirantado, e ele me presenteou com uma coletânea de Somerset Maugham. “No próximo ano, vou apresentá-la à obra de Evelyn Waugh”. Mamães sorriu. Na volta a Leeds, parecíamos ser a mais feliz das famílias. Minha mãe retomara o trabalho na papelaria da família e Barry – que me pediu para chamá-lo de papai quando quisesse, sem pressa – me tinha como uma espécie de brinquedo cativo, um objeto de lazer que ele podia bolinar quando bem lhe aprouvesse. Lembro de uma vez em que ele me acariciava com uma mão, e com a outra segurava o jornal. Então disse: “Você pode imaginar isso? Dentro de muitos anos, milhões de pessoas saberão o que estavam fazendo ontem a essa mesma hora. O assassinato do presidente Kennedy é uma dessas coisas de indizível brutalidade. Que nível de bestialidade pode levar um homem a cometer uma insanidade dessas?” Juro que vi lágrimas em seus olhos pela luz que vinha da janela. Isso não o impediu de encostar sua bochecha na minha. Foi quando senti uma língua mentolada varrer minha boca com a sofreguidão de uma cobra numa cova recém-descoberta.

Ah, minha querida Kate. Devo dizer que reli sim desde o nosso último encontro o meu “Antes pelo contrário”, e entendo sua posição veemente de que deveríamos lançá-lo. Mas aqui temos a primeira contradição que quero dividir com você. Se o fizermos enquanto estou viva, Mark me esfolará, e não poderei lhe tirar de todo a razão. Se já não tenho muita pista pela frente, com que direito posso espalhar bananas de dinamite no caminho dele? Para que você não aponte esta como uma pergunta retórica, já respondo. Acho até que tenho todo o direito do mundo a tal. Muito embora moralmente isso não seja digno de aplauso. Filhos, minha cara, são do domínio moral, e não do racional. Tanto pior. O segundo óbice é mais que nada prático: a quem beneficiará minha biografia, se não terei o prazer de discutir com o público leitor alguns capítulos, e muito menos se não poderei me valer do cheque gordo que você assinará para poder ir à baía de Hualong antes de morrer? Sei que os chineses andaram poluindo-a. Mesmo assim, é tudo o que eu queria rever na Terra. A combinação de ambos os fatores me desanima e nem você – tão poderosa –  pode fazer nada a respeito. Se pudesse, sei que faria.

É claro que resta uma razão bastante forte pela qual deveria liberar o livro para publicação. Depois das oito obras que nos enlaçam, e de trinta anos profícuos de cumplicidade, seria uma espécie de presente póstumo que eu te deixaria e, com sorte, se não aparecesse à época do lançamento um desses blockbusters que abduzem o mercado, “Antes pelo contrário” venderia o bastante para que você reforçasse a herança de sua netinha, ideia que não me desagrada, apesar de entender que os jovens têm que cavar suas sendeiras com engenho, na falta de terem a ousadia que sempre nos embalou. Não é tarde demais para reconhecer que não fosse por você e pela pequena equipe da Mores, eu não teria chegado até aqui. Seria justo que eu me despedisse da vida literária e da biológica com algo que estivesse à altura dos tantos títulos que o antecederam. Daquele dia em Frankfurt até hoje, lidamos com luzes e sombras – mais com as primeiras do que com as segundas. Juntas encantamos nosso mundo. Você me apresentou a seus pares como a representação viva de seu faro e, graças a mim, trouxe nomes fortes para a Mores. Já eu, ganhei uma vida confortável. .

E no entanto, minha cara amiga, eu própria gelei à mera releitura de “Antes pelo contrário”, acredite ou não. Não sei se cheguei a dizer, mas vinha escrevendo-o ao longo dos últimos dez anos, à base de uma página por semana – com maior ou menor regularidade. Assim, jamais até então tinha me ocorrido relê-lo de um só fôlego, como fariam os leitores. Tendo a Dra. Susan estimado que eu tinha uns meses de relativa paz pela frente, e tendo eu mesma tirado da cabeça que o uso da morfina sintética me lançava impiedosamente na vala comum dos drogados que tanto abominei a vida toda, vi que reunia condições para ler o arquivo unificado que consolidara antes da cirurgia. Aproveitei então os dias de sol para revisitar passagens remotas de minha longa vida, que, aliás, jamais me pareceu tão ridiculamente curta quanto agora. Mas à medida que avançava, Kate, juro que cheguei a cogitar de apagar o arquivo e esquecer a empreitada. E, até o momento em que escrevo essas considerações que já se fazem longas (admito), não sei se vou liberá-lo ou se procederei a uma espécie de incineração virtual, reduzindo-o a um nada sem registro.

*

Retomo esta carta depois de uma pausa de quase dois dias, minha amiga. Mark esteve aqui para uma visita domingueira e, sem saber o que dizer, começou a inquirir sobre minha vida financeira, como se eu tivesse alguma conta secreta num paraíso fiscal. Percebendo que a investigação não estava levando muito longe, mudou de assunto e, envergonhado, perguntou como eu estava me sentindo. “Muito bem, meu filho, tudo o que não quero é dor ou hospital. Enquanto estiver por aqui, vendo meu jardinzinho e, ocasionalmente, ouvindo o noticiário desse mundo horrível que vai ficando para trás, estou feliz.” Em “Antes pelo contrário”, Kate, registrei tudo sobre Mark. Imagino o desespero desse pobre homem na hora que souber quem é seu pai de verdade, e no inferno em que se transformaria sua vida. Seria bem capaz de se descabelar (logo ele,um dandy) e, antes mesmo de me levar ao túmulo, abordar o advogado do espólio do pai para ver se ele ainda poderia ser acomodado na herança milionária. Na sequência, não duvido que fosse escarrar no túmulo de quem o criou, Reggie no caso, o melhor dos pais, ainda que à sua maneira.

Lembro do dia em que disse a Reginald – talvez até tentando forçar uma separação como forma de me sentir mais leve – de quem Mark era filho. “Isso não muda grande coisa, minha cara. Conosco ele estará muito bem. Eu sabia que seu retiro literário teria consequências. E não perca suas noites de sono pensando em quando me revelará que Esther, nossa linda Estherzinha, é filha de Bernard. Eu e Ada já falamos muito a respeito e sempre nos divertimos com a ideia de que formávamos uma única e original família fusional. Eu sempre soube que não poderia ter filhos, querida, e se não disse antes foi porque pensei que você também não os queria, nem que fosse pela redenção dos povos unidos. Se lhe trouxeram alegria, o que menos me preocupava era saber quem eram os respectivos pais. Vamos lá, reconcilie-se com você mesma e não pense em fazer asneiras de classe baixa.” Poucas vezes me senti tão idiota. A verdade é que o peso da revelação aos filhos ficou, a partir daquele momento, nas minhas costas. Com o passar do tempo, comprei a ideia de Reggie e passei a ver como superveniente fazer as tais revelações às crianças.  Que diferença fazia? Eu passara por pior.

Do pai natural, Mark herdou a superficialidade, a alma romântica tendente à idiotia, a incrível capacidade de se deixar ludibriar pelas pessoas e o gosto pelo gesto extravagante, talhado para entreter plateias. A diferença é que o pai tinha uma grande voz e uma presença cênica que o equiparava aos gigantes de seu tempo. Não era qualquer um que podia se gabar de ter feito duetos divertidos com Sinatra e Aznavour. E o brilho de palco abafava os vagidos do ego desmesurado. Assim são os artistas. Já esse pobre homem que se tornou Mark é um ser amorfo e sem brilho, refém de uma vaidade oca e destrutiva. Já Esther era outra história. Tinha a bonomia de Bernard, aqueles olhos cintilantes e aquosos, e um sorriso franco que jamais poderia ser meu. Algum cisco entrou na nossa relação desde cedo e nunca conseguimos nos desvencilhar dele por completo. Quando aconteceu o acidente e perdi-a bem a meu lado, parecia que uma reconstrução estava em curso, mas jamais saberei o desfecho. Tive a felicidade, ou a infelicidade, de jogar tudo na literatura. Bernard já não tinha contato conosco e me deu um abraço cheio de soluços muitos anos mais tarde em Genebra. Já Reggie sofreu muito.

Quando recebo os filhos de Mark aqui em casa, olho com desalento aquelas criaturinhas que logo tomarão posse de meu amado endereço aqui em Hampstead. Se pudesse, e olhe que até posso, atearia fogo à casa e eles receberiam o seguro. Que Mark construísse o que quisesse e onde quisesse com o dinheiro. Mas saber que eles logo estarão por aqui ao lado daquela mulher sem sal nem estilo, isso sim me entristece bastante. Se minha Esther tivesse tido filhos, sei que seriam bem diferentes dos filhos de Mark (sabe que tenho um bloqueio para lembrar dos nomes?). O principal personagem feminino que construí, e que me deu o fio condutor para segurar três livros de sucesso, foi presente de Esther. Quando falo de Pamela, é nela que penso. De Zoe, da netinha que eu poderia ter tido. Você conhece bem isso tudo, mas quero deixar um registro para que, na falta do livro, você possa um dia mandar a carta a leilão, e tomar um chá no Ritz por minha conta com seu italiano. De Mark, tirei elementos para fazer Noah, de “Arca adernada” – até hoje um de seus favoritos. De Reggie, tirei os traços físicos: o belo homem que ele permaneceu a vida toda. A quem pode interessar isso? Não me responda.

*

Estive à beira do suicídio algumas vezes. Chego a pensar que Mark percebeu minha intenção num dia de verão londrino quando tranquei todas as portas e deixei a pistola de serviço de Reggie ao alcance de minha mão, na prateleira que nem ele nem Esther conseguiam enxergar. Fazia dias que eu não dormia. Mas Mark me olhou de um jeito tão suplicante que mudei de ideia. “Pare de se odiar”, disse Reggie ao voltar do pub naquela mesma noite. Como ele sabia o que me afligia, se até eu estava perdida? Então veio o primeiro livro, que saiu por uma pequena editora sem qualquer expressão. Meses mais tarde, o telefone soou e era da Mores – assim mesmo em itálico, como você sempre fez questão de grafar até em bilhetes manuscritos. Foi graças a você, Catherine, que voltei à tona e pude reciclar o lodo da vida – tanto o aparente quanto o invisível. Na minha curta vida de profissional na área de informação, fiz um mal imenso a algumas poucas pessoas. Daí ter me sentido um pouco impostora sempre que o telefone tocou e me vi agraciada com algum prêmio. “É bom para a as vendas”, você dizia. Isso dito, Catherine, informo que deletei da nuvem “Antes pelo contrário”. Da sua, Abigail.