Frederico Toscano

O compositor austríaco Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) é uma figura ímpar na história da ópera. Outros grandes mestres, entre eles Giuseppe Verdi (1813-1901) e Richard Wagner (1813-1883), deixaram sua marca exclusivamente na ópera, mas o gênio de Mozart abarcou todo tipo de música. Todavia, ele sempre teve uma paixão especial e um talento único para a ópera. Na última década de vida, transformou o gênero de tal modo que já não parecia mais o mesmo.

Como nenhum outro compositor até então, Mozart percebeu que, explorando a força emocional do canto, poderia infundir sangue e vida nos heróis da ópera tradicional, seja ela séria ou cômica. Com suas obras-primas operísticas – Le nozze di Figaro (“As bodas de Fígaro”), Don Giovanni, Così fan tutte (“Assim fazem todas”) e Die Zauberflöte (“A flauta mágica”) – ele foi ainda mais longe. Inspirado em libretos instigantes, delineava personagens tridimensionais através de orquestração sutil, recitativos harmonicamente ambiciosos, árias memoráveis e ensembles complexos. Mozart chegou a esse apogeu com apenas 25 anos de idade.

A precocidade de seu talento foi logo reconhecida pelo pai, Leopold, respeitado músico em Salzburgo. Mas foi como intérprete que Mozart primeiro causou espanto. Antes dos 13 anos já tinha escrito óperas em latim, italiano e alemão. Com esta idade foi estudar na Itália e lá estreou maravilhas como Mitridate e Lucio Silla. Ao voltar para sua cidade natal, escreveu novas óperas, mas lá não havia nem um bom teatro, nem uma casa de ópera. Com o tempo, Mozart só pensava em deixar a cidade. Em 1781, graças a uma encomenda de Munique, ele compôs Idomeneo, sua primeira ópera madura para o palco, uma verdadeira obra-prima. A essa altura já dominava o legado musical do passado e estava pronto para gerar um novo futuro. Nesse mesmo ano deixou Salzburgo para sempre para viver em Viena.

A década seguinte o consagraria como o compositor lendário que hoje conhecemos, mas seria conturbada. Casou-se e tinha frequentes problemas financeiros e de saúde. Mozart era muito exigente consigo mesmo, compondo prolificamente e fazendo exaustivas viagens a outras cidades. Sua estreia na ópera em Viena foi um sucesso imediato com Die Entführung aus dem Serail (“O rapto do serralho”), mas a grande virada veio em 1784 quando conheceu o poeta italiano Lorenzo da Ponte (1749-1838). Mozart podia agora não só escolher o tema de suas óperas como se valer da força dramática dos ousados libretos de Da Ponte: Le nozze di Figaro, com seus criados rebeldes, faz menção à luta de classes; Don Giovanni exalta, e acaba punindo, um nobre promíscuo; e Così fan tutte dá a entender que as mulheres podem ser tão volúveis quanto os homens. Mas o que situou essas obras no centro do repertório operístico foi a música de Mozart: bela, arrebatadora, perturbadora e às vezes quase dolorosamente íntima. Sofisticados jogos de tonalidade, metamorfoses de motivo, orquestração fluente e espirituosa mostram como as óperas de Mozart foram enormemente enriquecidas pelo fato de o compositor ser também um gênio da música instrumental.

A lenda de Don Juan surgiu como um conto moral de advertência contra a vida desregrada. Foi levada ao palco em 1630 na peça El burlador de Sevilla, de Tirso de Molina (1579-1648), que inspirou a obra de Jean-Baptiste Poquelin, mais conhecido como Molière (1622-1673), intitulada Dom Juan ou Le festin de pierre (1665). Um século depois, a versão de Mozart já era encarada com mais leveza. Afinal, era a época do famoso conquistador Giacomo Casanova (1725-1798), que provavelmente compareceu à estreia de Don Giovanni em Praga, no dia 29 de outubro de 1787. O talento e a poesia de Da Ponte inspiraram a brilhante partitura de Mozart, que imprime humor e tragédia à macabra história de um sedutor compulsivo que se esquiva de todo castigo, exceto da morte. Por toda a ópera, a profunda humanidade da música reforça o drama, sendo responsável talvez por metade da interpretação.

Assim como As bodas de Fígaro, a ação de Don Giovanni se desenvolve ao longo de um único dia, e principalmente à noite. A ópera se inicia com o criado Leporello esperando o seu patrão, Don Giovanni, seduzir mais uma mulher. Perseguido por Ana, Don Giovanni sai correndo mascarado, e é desafiado pelo pai dela, o Comendador. Ana foge, e o Comendador é morto. Ela encontra o corpo e exige que Otávio, seu noivo, a vingue. Numa nova cena, Elvira lamenta seu amor por Don Giovanni, dizendo que ele a seduziu prometendo casamento. Don Giovanni se afasta impaciente e Leporello enumera para ela as conquistas do patrão num catálogo. Don Giovanni se interessa por uma nova vítima, Zerlina, e convida seu noivo, Masetto, para uma festa em seu palacete. Logo depois, sozinho com Zerlina, o conquistador começa a flertar:

Elvira adverte Zerlina sobre o dissoluto. Ana já tem certeza de que era Don Giovanni o assassino mascarado do pai, enquanto Otávio jura descobrir a verdade. Leporello relata que Elvira atrapalhou a festa, mas Don Giovanni só pensa em novas conquistas. Quando Elvira, Ana e Otávio chegam mascarados (vídeo a seguir), Don Giovanni sai com Zerlina, mas ela grita pedindo ajuda. Don Giovanni encontra Otávio empunhando uma pistola. O trio tira as máscaras e o ameaça. Mesmo abalado, Don Giovanni mantém a atitude desafiadora.

Don Giovanni troca de roupas com Leporello para seduzir a criada de Elvira. Esta ouve Don Giovanni pedir perdão e quer acreditar. Leporello, com as roupas do patrão, abraça Elvira, enquanto Don Giovanni, vestido como o criado, faz serenata para a serviçal dela. Masetto chega em busca de Don Giovanni e leva um soco de “Leporello”. Quando “Don Giovanni” foge de Elvira, é visto por Ana e Otávio e imediatamente revela ser Leporello. Otávio jura matar Don Giovanni. No cemitério, Don Giovanni graceja sobre uma mulher que o confundiu com Leporello. De repente, ouve-se uma voz advertindo que seu riso logo terá fim. Vendo a estátua do Comendador, Don Giovanni zomba da ameaça. Leporello convida a estátua a jantar com o patrão, e ela assente.

Imperturbável, Don Giovanni reúne músicos para o jantar. Aqui Mozart demonstra malícia na cena final da ceia, ao “citar” trechos de três óperas contemporâneas, entre elas As bodas de Fígaro. Reconhecendo Fígaro, Leporello observa: “Conheço muito bem essa peça.” Elvira chega nesse instante, mas é insultada; ao sair, ela grita. Surge a estátua do Comendador. Don Giovanni lhe oferece jantar, mas a estátua por sua vez o convida a jantar consigo. Leporello implora ao patrão que recuse, mas ele aceita. Apertando a mão do nobre, a estátua exige: “Arrepende-te!” “Não!” Num derradeiro grito, Don Giovanni é tragado pelas chamas:

Neste momento, segundo o musicólogo H. C. Robbins Landon, os ouvintes do século XVIII foram apresentados pela primeira vez na música à “presença do medo real – o terror”. Encerrando a ópera, os inimigos do protagonista chegam e, felizes por Don Giovanni ter enfim pagado por seus pecados, decidem recomeçar a vida.

Foi o Romantismo que reconheceu em Don Giovanni o ponto mais alto e privilegiado de toda a obra de Mozart, pois nessa ópera o Romantismo encontrou o que melhor o anunciava e aquilo de que mais tinha sede. Sua influência é percebida em obras de escritores e filósofos de relevo na história cultural europeia. O grande filósofo dinamarquês Soren Kierkegaard (1813-1855) escreveu em seu livro Enten-Eller (1843) que “entre todas as obras clássicas Don Giovanni está no topo”. Para ele “é esta vida musical de Don Giovanni, absolutamente centralizada na ópera, que lhe permite criar uma força de ilusão que nenhuma outra ópera é capaz de criar, de modo que sua vida transporta as pessoas para a vida que transcorre na peça”.

O final da ópera, no qual Don Giovanni se recusa a se arrepender, impressionou George Bernard Shaw (1856-1950) a tal ponto que o dramaturgo irlandês parodiou a ópera em Man and Superman (1903), com menção explícita da partitura de Mozart. O escritor francês Gustave Flaubert (1821-1880) classificou Don Giovanni, juntamente com Hamlet e o mar, como “as três melhores coisas que Deus havia feito”.

Na música, muitos compositores foram impactados por Don Giovanni e escreveram peças inspiradas em suas melodias memoráveis, entre eles: Beethoven, Rossini, Paganini, Schumann, Liszt, Berlioz, Offenbach, Chopin, Busoni e Nino Rota, mais recentemente. Tchaikovsky tinha especial devoção a Mozart e profunda admiração por Don Giovanni (seu “objeto musical sagrado”), que era considerada por Wagner “a ópera das óperas”. A febre pela obra no séc. XIX produziu alguns sintomas curiosos. Na década de 1850, por exemplo, uma cantora famosa da época, Pauline Viardot-García, adquiriu uma partitura da ópera autografada por Mozart. Ela imediatamente encomendou uma caixa de joias para guardá-la, depositou-a como um relicário em sua sala de música particular e convidava seus melhores amigos a se ajoelhar em sua presença.

O fato é que, das grandes óperas de Mozart, Don Giovanni é aquela em que o gênio da dramaturgia musical se mostra mais contrastado, mais apaixonado e inegavelmente mais trágico. E é igualmente aquela em que Mozart deixa extravasar aquilo que vai no mais íntimo do seu ser: o personagem de Don Giovanni parece induzi-lo a revelar suas aspirações mais irresistíveis – não no plano das conquistas eróticas, onde o compositor talvez se parecesse bem mais com o turbulento Cherubino das Bodas de Fígaro do que com o feroz caçador de todas as presas femininas, mas por aquela recusa indomável de qualquer forma de amarra que faz Don Giovanni gritar “Viva la libertà!” – e mais ainda por aquela paixão de uma vitalidade que agarra o presente para matar de imediato sua sede insaciável, por aquela bravura altiva que pressente que um fogo tão violento só pode acabar na própria ruína, mas que se nega a baixar a cabeça. E o milagre é que, graças ao caloroso círculo dos amigos que fizera em Praga, possivelmente Mozart nunca tenha estado tão cheio de vida e entusiasmo com uma composição, e tão alegre, do que quando compôs Don Giovanni, paradoxalmente a mais trágica de suas óperas.

O próximo artigo da série trará O barbeiro de Sevilha, a mais célebre ópera cômica de todos os tempos. Pura, deliciosa, efervescente, terrivelmente difícil de cantar, a obra-prima eterna de Rossini foi escrita em duas semanas com ritmos marcantes, melodias irresistíveis e situações muito engraçadas.