Teresa Sales

Praia de Boa Viagem.

Na primavera do ano passado, plantei no quintal de seu Elias, meu vizinho da frente, um coqueiro e uma castanhola. Duas árvores que apreciam a terra arenosa e salgada à beira mar. Coqueiro é coqueiro. Ou pé de coco. Já castanhola, planta mulher, também se chama amendoeira, castanheira, coração de negro… Em volta de cada uma, imitando outras plantadas por vizinhos da avenida, um pneu cortado no correr do círculo (para não juntar muriçoca), pintado de branco e com o nome do benfeitor. Lá estão escritos os nomes dos protagonistas principais de meu romance. A ver quem vai amadurecer primeiro: o livro ou os pés de coco e coração de negro.

Cada dia que saio para caminhar passo por eles. O sol forte desse verão estava maltratando o coqueiro, suas folhas secas nas pontas. Aparentemente mais forte, sofria mais que sua companheira fêmea. Pedi ao jardineiro que os plantou para colocar adubo sábado passado. Com as chuvas de ontem, pude ver hoje o coqueirinho se animando para crescer.

Por causa da chuva, desde a alta madrugada até pouco depois das 8 horas da manhã, perdi a caminhada de ontem. No meu retorno ao Recife, há pouco mais de dez anos, com olhos estrangeiros, vi três medos do recifense: tubarão, chuva, ladrão. Seria mais apropriado dizer assaltante. Mas perderia a rima. Aclimatei-me, por enquanto, ao primeiro medo. Sair de carro, no inverno, é de fato uma temeridade. Mas bem que poderia ter ido ontem tomar um banho de chuva, tão menino.

Finalmente, acabaram as festas e começou parcialmente o ano, que, em Recife/Olinda, só começa mesmo depois da quarta-feira de cinzas. É sempre assim. Esperneio, maldigo essa festa comercial em que se transformou o Natal, mas termino não resistindo. Igual a sorvete de chocolate. Comprei livros nas estantes infantis e juvenis e presenteei cinco netos de minha irmã na ceia de Natal da casa dela, já que a vida ainda não me deu netos, a não ser de quatro patas. Estes, não sabem das festas nem de livros.

Dia de Reis, sábado passado, encerrou o ciclo natalino. Dia de queimar o presépio, guardar a lapinha com o espelho imitando um lago, arrodeado de areia, os bichos, o bafo da vaquinha aquecendo o menino deus. Na roça, na Serra da Mantiqueira mineira, continua sendo o ponto alto das festas, quando retornam à roça quase todos os que emigraram para trabalhar ou montar negócio em Aparecida e outras cidades da redondeza. Perdi esse ano. Logo agora, quando pretendia ficar com a bandeira para a próxima festa. Em 2019 já tem dono: Zé Bocada e Valdete. Mesmo que ele bata as botas, pois acaba de voltar desenganado do hospital de Varginha. Quase ouço seu falar mineiro sossegado, conformado: A bandeira é nossa. É promessa.

A festa foi e será como sempre: antecedida de novenas ao menino Jesus de casa em casa, melhor dizendo, de sítio em sítio, com as rezas e a quitanda (café, bolos, broas de milho, pães de queijo); leilões, para arrecadar dinheiro para a cachaça e para receber a promessa dos leitões. Nas duas Festas de Reis que passei na roça, entrei na cozinha para experimentar a comida, antes de ser servida na extensa mesa. Um bom pedaço de leitão saído do forno com a gordura cheirosa – o melhor de todos que já comi em terras mineiras. Tutu de feijão tirado com colher de pau de cabo comprido do panelão de barro mexido com força de homem. Couve cortada fininha, refogada com muito alho. Sentada num tamborete, espiando o movimento de mulheres e homens no preparo da comida, senti-me rainha. As mulheres que me antecederam no castelo eram vegetarianas.

– Teresa é das nossas. T’aqui a cachaça. Carece. Pra derreter a gordura.

É. Carece mesmo.

Porém, mesmo longe, o compromisso já está selado: seja onde estiver no mundo em seis de janeiro de 2020, estando viva, vou voando para a Serra da Mantiqueira, e a bandeira é nossa. Pela primeira vez, as terras de Sebastião receberão o sangue dos animais sacrificados para o grande banquete, antecedido da chegada triunfal da bandeira de Reis com as inocentes cantigas imortalizadas por Milton Nascimento.

Passou Reis, chegou segunda feira, os hóspedes de minha casa regressaram às suas em São Paulo. Voltei ás minhas madrugadas. Naquele dia, o mar trouxera à praia, junto com os sargaços, belos e perigosos enfeites. Uma criança seria fatalmente atraída a pegá-los com as mãozinhas, como fez meu irmão no dia em que, comigo e a outra irmã mais nova, conhecemos o mar em São José da Coroa Grande. Conheci-os como caravelas. Ele gritava, pulava. “Mija em cima que melhora”, alguém ordenou. Parecem pequeninas bexigas ou bolas de encher em festa de aniversário. Com as cores do nascer do sol, antes de ele despontar dentro do mar: azul e rosa bebê. São lindas, irresistíveis.

Hoje ainda encontrei uma. Permaneceu, contudo, o que o mar expulsou junto às caravelas: os sargaços. Nesse quesito, o Pina ganha de longe de Boa Viagem. Aqui, em cima de pedras, ao lado, onde as águas do mar chegam apenas para molhar os pés, os sargaços formam um tapete verde musgo com um cheiro embriagador de tão bom.

Paulista detesta cheiro de sargaço. Eu amo. Só perde para o cheiro do velame. Saindo do Recife e indo pela rodovia BR 232, depois de atravessar o mar de cana, cujo cheiro de melado nada me diz, depois de atravessar a perigosa Serra das Russas, sendo o tempo das primeiras chuvas do inverno, desligue o ar condicionado e abra as janelas do carro. Você vai sentir no ar o perfume do velame, uma plantinha besta, rasteira, perdida em meio aos majestosos juazeiros, umbuzeiros, baraúnas, cajazeiras, mandacarus.

No tempo em que era socióloga, e me embrenhei pelos canaviais com seis jovens estudantes de Ciências Sociais, para a primeira pesquisa de campo que originou “Cassacos e Corumbas”, passei a associar o cheiro do canavial às relações sociais de produção que ele carrega. Cheguei a publicar algo, já não sei em que revista, onde preconizava, talvez a título de brincadeira, a solução para os problemas de Pernambuco: destruir todos os canaviais, arrancar as raízes mais resistentes, deixando apenas um ou dois morrinhos plantados, para quando João Cabral de Melo Neto quisesse vir escrever um poema. Nesse tempo, ele ainda vivia e via.