Helga Hoffmann

Lênin, conduzindo a Revolução Russa ( autor não identificado).

Será um centenário incômodo? Pouca gente parece lembrar que foi há cem anos que comunistas tomaram o poder na Rússia, no que ficou conhecido como a Revolução de Outubro.[1]

Os que ainda são comunistas preferem ignorar o experimento histórico fracassado que vai da volta de Lenin a St. Petersburg[2] no começo de abril de 1917 até a queda do Muro de Berlim em novembro de 1989. Resistem obstinados ao exame da vasta documentação sobre os destroços das utopias do século XX. Os mais velhos, talvez, enxugaram lágrimas olhando, ao vivo na TV, a bandeira da foice e do martelo sendo baixada lentamente do mastro no Kremlin ao fim do dia 25 de dezembro de 1991, enquanto Gorbatchov fazia o breve comunicado de sua renúncia e se decidia naquela noite o fim da União Soviética, enterrando formalmente algo que já estava morto desde o momento em que deixou de ser mantido à força. Ainda se ouve a Internacional ocasionalmente em manifestações. E há até mesmo quem retenha e reinterprete o conceito de “imperialismo” dos velhos comunistas do tempo da Guerra Fria com tamanha convicção que conseguiu enxergar no Juiz Sergio Moro um agente da CIA por ter estado em Harvard. Diante de fatos que se recusam a aceitar ou preferem ignorar, continuam acreditando na utopia de que será possível um dia atender a cada um segundo suas necessidades (sejam quais forem e qualquer que seja a hora). Em Marte, talvez!

Para os que deixaram de ser comunistas – observando em cada momento os fatos e dados que contradiziam as afirmações com que se construía a utopia, além das incoerências, vendo que nunca foi possível montar o quebra-cabeças até o fim, as peças ora faltavam, ora não encaixavam porque as bordas eram desconexas -, é igualmente difícil encontrar um formato adequado para uma comemoração. Comemorar o desengano? Pois que fica a dúvida: que revolução é essa, a famosa Revolução de Outubro? “Revolução”, e “gloriosa”, só porque os piores efeitos secundários, os mais escabrosos, demoraram a ser descobertos?  “Revolução” cujos efeitos colaterais benignos merecem no mínimo alguma análise contrafactual que ainda não foi feita: será mesmo que o estado do bem-estar europeu e a independência dos países africanos foram resultado benéfico da “ameaça comunista”? Será que foi mesmo uma revolução para o bem que só se corrompeu porque Lenin morreu cedo e veio Stalin? Ou foi um golpe bolchevique, que foi se ampliando e modificando e que, aos trancos e barrancos, conseguiu manter o poder durante sete décadas, de 1917 a 1989?

Os que jamais compartilharam o sonho da utopia igualitária que viram como ilusão, os que não aceitaram a “ditadura do proletariado” e que mais bem entenderam seus desdobramentos como ameaça à liberdade e como distopia, podem festejar, como já se disse ironicamente, que o comunismo é o mais longo caminho do capitalismo ao capitalismo.  Muitos deles comemoraram a liberdade e a democracia quando os jovens alemães pularam em cima do Muro de Berlim, abrindo garrafas de champanhe e falando inglês para as câmeras de TV americanas.

A ironia nem é válida: primeiro, porque há muitos “capitalismos”, o capitalismo não é homogêneo, único, e mudou muito ao longo do tempo e, segundo, porque seria preciso mostrar primeiro se o que existia na Rússia ao final da era Romanoff e no reinado de Nicolau II podia ser entendido como capitalismo. O que os historiadores que destoam da narrativa comunista têm destacado é que antes da Revolução de Outubro houve uma Revolução de Fevereiro, que levou a que comandantes militares e a Duma imperial forçassem o tsar a renunciar em 2 de março de 1917, formando-se um Governo Provisório que tinha algumas características liberais e democráticas e chegou a proclamar a república.

Os governos russos que vieram depois do desmoronamento da URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas), formalmente dissolvida em dezembro de 1991, tiveram suas dificuldades com a efeméride. O centenário do que no tempo da URSS era a principal data patriótica não será comemorado pelo governo em Moscou. Oficialmente, a razão é que a Rússia ainda está muito dividida sobre as consequências daquele ano fatídico: para alguns outubro de 1917 foi a morte de uma Grã Rússia inserida na Europa, para outros o passado soviético foi a melhor época de suas vidas. Vladimir Putin estaria buscando a unidade nacional e considerou que “quaisquer festividades promovidas pelo governo aprofundariam as divisões”.

Já antes do centenário havia ambiguidade em relação à comemoração da Revolução de Outubro, e mais importante passou a ser a data da vitória dos russos e assinatura do tratado de paz de março de 1918 com os alemães. Parece que só o Partido Comunista da Rússia, hoje um pequeno partido de oposição, pretende festejar o centenário com paradas em 7 de novembro.

Na pátria da Revolução de Outubro a comemoração está sendo acadêmica, em seminários e palestras a discutir diferentes narrativas para a “Gloriosa Revolução” e outras “revoluções” mais recentes que preocuparam o Kremlin, como na Geórgia e na Ucrânia. Não é só no Kremlin que se manifesta ambivalência em relação a 1917.

A iniciativa mais atraente é de um time de jornalistas em torno de Mikhail Zygar que está montando na Internet uma crônica do ano de 1917. É um projeto de mídia social no Facebook, Project1917, e cada dia de 1917 serão publicados os eventos que ocorreram há 100 anos como descritos pelos envolvidos naquele exato dia. As fontes são apenas diários, cartas, memórias, jornais e outros documentos. Aparecem os comentários ou pronunciamentos do dia de centenas de atores mais envolvidos, essencialmente os russos, como Lenin e o imperador Nicolau II e vários familiares, Trotsky, a feminista Alexandra Konlontai, comandantes militares, o chefe do Governo Provisório Kerensky, líderes de várias tendências, mas também cidadãos comuns. Há registro de muitos artistas, russos e estrangeiros, como os gigantes do balé, da pintura, do cinema e da música, Diaghilev, Stravinsky, Eisenstein, Mayakovsky, Kandinsky, Prokofiev, Paul Klee, Picasso, Modigliani, cientistas como Bertrand Russel e Pavlov, escritores como Gorki e Stefan Zweig. Aparecem participações políticas do exterior relevantes naqueles dias: notícias do The New York Times sobre os levantes na Rússia enquanto o jornal russo Novi Mir (14/02/1917) conta que Trotsky está nos EUA em campanha contra a guerra, ou George V, o rei inglês, que em 15 de março escreve:”… ouvi que a Duma forçou Nicky a assinar sua abdicação… estou desesperado.”

Todos os eventos dos dias do ano de 1917 até o dia de hoje há cem anos já estão postados. O grosso do material está em russo. Mas boa parte é traduzida dia a dia para o inglês e pode ser percorrida em http://project1917.com. Sempre é “há cem anos neste dia”. Um vasto e variadíssimo painel, uma grande mistura que não forma uma narrativa, nem tem essa pretensão, mas pode lançar dúvidas sobre algumas interpretações apresentadas alhures. Foi uma surpresa ler uma carta de Lenin exilado na Suíça (Zurique, 17 de fevereiro de 1917) com a frase “Que porco esse Trotsky é.” Ou um chefe militar russo declarando, em 15 de fevereiro de 1917, “a oferta de alimentos em Petrogrado já é crítica. Se não hoje, amanhã acabará o pão. Os soldados estão reclamando e não se pode confiar nos quartéis”.

São dolorosos os inúmeros depoimentos, de fontes diversas, sobre a escassez de alimentos, falta de combustível, e de revolta e motins dos soldados esgotados com a guerra que, em última instância, não permitiram que o tsar usasse a tropa em Petrogado para conter o levante operário que começou em 22 de fevereiro. Gorki em 15/02/1917: “A vida é cada vez mais um pesadelo, e especialmente difícil para quem não tem vida pessoal.” A Duma discute o abastecimento no front e na cidade em 27 de fevereiro. Engraçada, ao menos lida agora, é a reação do famoso Ivan Pavlov, o do reflexo condicionado, que registra em 15 de março de 1917, em Petrogrado: “Meu assistente chegou atrasado. Tentou explicar que a revolução parou todo o transporte urbano. Considero que uma revolução não é desculpa para estar atrasado.” No mesmo dia aparece ali um filme com dezenas de milhares andando pelas ruas, ocupando-as totalmente, levando no peito laços de fita vermelhos.  Três dias antes havia sido instalado o Governo Provisório.

E como já eram incertas as interpretações! No mesmo dia Stefan Zweig escreveu (sobre a Revolução de Fevereiro): “Este é um golpe palaciano instigado por diplomatas ingleses e franceses para frustrar a tentativa do tsar de garantir paz com a Alemanha, esta não é uma luta das pessoas que buscam paz e direitos para si.”

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A monarquia russa foi derrubada pela Revolução de Fevereiro, que levou à renúncia do tsar Nicolau II em março de 1917. No caos que se instalara, membros do parlamento imperial, a Duma, formaram um Governo Provisório da Rússia, no qual Alexander Kerensky passou a ter um papel cada vez mais relevante, chegando a Primeiro Ministro e proclamando a república em 1º de setembro. Os bolcheviques ainda não dominavam os soviets (comitês de operários e soldados em especial na capital Petrogrado e em Moscou, e comitês de operários e camponeses nas regiões afastadas do centro). Estes eram compostos de diferentes partidos e tendências. Alguns dos principais embates se davam entre os que defendiam a continuação da guerra patriótica e os que pregavam a confraternização dos soldados no front, como os bolcheviques.

A força relativa dos grupos variava e era influenciada por vitórias ou derrotas no front e pela situação do abastecimento e preços dos alimentos. Foi depois que Lenin conseguiu deixar o exílio na Suíça com a ajuda do Kaiser alemão e voltar a Petrogrado em abril que os bolcheviques foram ganhando cada vez mais militantes. Em setembro, obtiveram a maioria nos soviets de Petrogrado e Moscou, as principais cidades. Na ocasião, também beneficiados pela anistia concedida pelo Governo Provisório, outros líderes bolcheviques conseguiram voltar à Rússia, ainda que com grandes dificuldades e sujeitos a serem presos a caminho devido à situação de guerra.

O Governo Provisório não completaria oito meses. Em outubro o Comitê Central Bolchevique aprova o levante armado e o Comitê Militar Revolucionário do Soviet de Petrogrado determina que operários armados e soldados tomem os princípios prédios públicos. O Primeiro Ministro Kerensky deixa Petrogrado, e a toma do Palácio de Inverno se completa em 25 de outubro.

No dia seguinte foi formado um governo bolchevique, o Conselho dos Comissários do Povo, chefiado por Lenin. Poucos meses depois, o tsar Nicolau II, que estava em prisão domiciliar desde que abdicara, foi fuzilado junto com mulher, filhos e outros familiares, o médico e servidores domésticos no porão da casa em que havia sido instalado pelo governo. Nunca foi possível determinar se a iniciativa partiu de um comando local bolchevique mais radical, com medo da aproximação dos cadetes leais à monarquia, ou se a ordem veio da direção central e de Lenin. Os bolcheviques enfrentaram resistência, em uma guerra civil que só terminou em 1923, quando Stalin assumiu o poder. Ainda que houvesse uma oposição crescente à monarquia já antes da guerra, nunca se acentuará demais o papel que teve a I Guerra Mundial em toda a série dos eventos que conformaram a Revolução de Outubro. Três anos de iniciada a guerra, mais de seis milhões de soldados russos estavam mortos, feridos ou desaparecidos.

[1] Essa data é 7 de novembro no novo calendário gregoriano, e 25 de outubro no calendário que prevalecia na Rússia. Por isso, pode haver alguma confusão de datas, que divergem por 12 dias. Buscamos citar as datas de 1917 segundo o calendário juliano usado então somente na Rússia.

 

[2] O nome da capital da Rússia, Sr. Petersburg, foi mudado para Petrogrado depois que a Alemanha declarou guerra à Rússia em agosto de 1914, quando nomes germânicos foram alterados para ter som russo.