Sobre Proust corre a fama — não sem razão — de ser um autor de longos períodos e extensas frases. Frases à tiroir, frases que se engavetam umas nas outras, também chamadas de frases-centopeia. Mas não há por que temê-las. Uma longa frase não é necessariamente uma frase obscura. Um longo período não é necessariamente um período entediante ou confuso. Naturalmente, é preciso ser um craque na língua para se conseguir tal proeza, pois muitos que escrevem se perdem pela ânsia de tudo quererem dizer ao mesmo tempo. No afã de detalharem um pensamento mais complexo, entram em rota de colisão com a sintaxe, tornando-se primores da obscuridade.
Proust é denso, mas não é obscuro, e sendo coloquial domina até a última palavra os seus longos períodos. Como já afirmei, a Busca é uma conversa exuberante. Quando lemos trechos em voz alta, logo percebemos que se ajustam perfeitamente à oralidade. E é certo que ninguém, no entanto, encontrará na Busca a jardinagem racional de um Flaubert. Proust não é — nem quis sê-lo — um geômetra do estilo. Assim como Jules Michelet, a quem ele cita como um músico literário, Proust tem sua própria e inconfundível cadência.
Já se observou — do que pessoalmente discordo — que o estilo proustiano reproduziria, de alguma forma, a doença que o acompanhou desde a infância: a asma. Não vejo como. Pelo contrário: a sua frase é longa, mas tem ar suficiente para se enroscar, por assim dizer, nos temas e nas sutilezas que aborda. O que é notável é que Proust quer ver tudo, observar tudo, registrar tudo. Mas não — me permitam a repetição — à maneira realista. Proust quer o simbólico e, de par com este, quer nos mostrar como o real é matizado e como só podemos ver as coisas de uma forma fragmentada. Assim, seus mais belos períodos são como a paisagem de um leque que se desdobra. Daí a importância das metáforas, dos adjetivos, dos adjuntos. Daí igualmente o valor das orações subordinadas, das coordenadas, das intercalações e das locuções conjuntivas. O nosso autor, ao agir por acumulação, busca ser exaustivo e preciso.
Num ensaio pioneiro intitulado Marcel Proust, o crítico alemão Ernst Robert Curtius percebeu com argúcia e poder de síntese que “O estilo de Proust é um instrumento de precisão a serviço do conhecimento”, observando que ele tende “à mais exata reprodução dos estados anímicos”. É o que ocorre na Busca, conferindo-lhe, ao mesmo tempo, brilho, poesia e estranheza.
“O estilo é uma questão de visão.”, escreveu Proust. Além de uma epifania teórica, essa frase por si mesma nos diz muito sobre o estilo proustiano. Ele rivaliza com a pintura e, a seu modo, faz uma pintura impressionista. Como se sabe, a Busca, de ponta a ponta, está encharcada da tinta dos grandes mestres da pintura: Monet, Turner, Whistler, tantos outros. (Swann, o dândi e aristocrático diletante, um “celibatário da arte”, que empresta seu nome ao título do primeiro volume da Busca, não se cansa de traçar analogias entre as efígies da pintura e aquelas de carne e osso que encontra na realidade…).
“Uma questão de visão” talvez signifique um ponto de vista sobre o mundo. A “visão” enquanto compreensão é algo que antecede e determina o estilo. Proust nos diz que o escritor é como um oftalmologista que nos pergunta se é com esta ou aquela lente que queremos ver o mundo. Um escritor nos dá lentes, potencializando a nossa própria visão. A Busca menciona, não por acaso, inúmeros instrumentos e signos ópticos: a lanterna mágica, o caleidoscópio, o microscópio, o telescópio, a fotografia, a radiografia… Nesse mundo da visão, não falta a figura do narrador enquanto voyeur, flagrando a cena oculta e interdita, nem a sutil compreensão de que a visão, ela própria, “é um conjunto de raciocínios”. Nem falta a permanente dialética entre o visível e o invisível, o visto e o encoberto…
O paradoxo implícito na concepção proustiana do estilo é que a precisão é fruto da própria consciência da imprecisão. Esta última, uma vez assumida, condiciona o único rigor possível em meio às ofuscações e opacidades do real. Para agir em suas aproximações à realidade, Proust não hesita em distribuir, com numerosa frequência, imagens que nos aparecem em símiles, metonímias e metáforas. Esse uso — de fato exacerbado — produz um efetivo efeito poético, sobretudo nos momentos mais sensoriais da Busca. Por outro lado, não se deve esquecer que a precisão proustiana é única e só é possível pela compreensão de que estamos diante de um autor idealista, para quem o mundo é visto sob o prisma do mais irrefutável solipsismo, uma vez que “O homem é um ser que não sai de si mesmo e, se diz o contrário, mente”.
Querido Paulo Gustavo,
Você escreve sobre Proust como se descrevesse as idiossincrasias de um amigo com quem estivesse habituado a beber uma cerveja toda semana. É bonita essa cumplicidade pois se vê que vocês terão encontro marcado pelo resto da vida. Não importa quem mais venha a aparecer em seu radar literário e sentimental, o lugar do “vieux Marcel” é cativo. A propósito, li em Haruki Murakami hoje que em 1922 Proust e Joyce se sentaram lado a lado em Paris. Os comensais passaram o jantar antenados no que um diria ao outro. Afinal, ambos eram a grande referência literária do século. Pois bem, não trocaram palavra e fingiram ignorar a presença do outro. O japonês cita isso para dizer que escritores podem ser competitivos e vaidosos. Você e Proust, para nossa alegria, estão ligados por fecunda união estável.
Um abraço do amigo e admirador,
Fernando
Obrigado, Dourado por palavras tão amigas.
De fato, Proust e Joyce não se bicaram. C’est la vie. Um diálogo de surdos! E no fim da noite, Proust ainda foi irônico com o autor de “Ulysses” ao ver que Joyce entrara sem permissão no táxi que o levaria embora. O episódio é detalhado no livro “Uma noite no Majestic”.
Abração!