Paulo Gustavo

Marcel Proust (1871-1922).

Alguns críticos consideraram “Em busca do tempo perdido” como um “romance de formação”. Não deixa de sê-lo, uma vez que acompanhamos o herói desde a infância ao limiar da velhice. Mas Proust, diferentemente de outros autores do gênero, busca uma espécie de história “de longa duração” (para tomar de empréstimo o conceito criado pelo historiador Fernand Braudel), ou seja, sua perspectiva é temporalmente extensa e profunda se comparada ao ponto de vista apenas cronológico. É como se para ele não importasse o biográfico, mas o transbiográfico; como se escrevesse uma história das diversas mentalidades dos seus personagens. Uma coisa, porém, parece certa: a de que mudamos ao longo da vida e que somos feitos do tempo de cada época e do tempo que de fato já vivemos, pois o homem, diz Proust, é um “ser anfíbio”, uma vez que vive, pela memória, simultaneamente no presente e no passado.

A infância, logo no início do romance, recebe um tratamento diferenciado. Acompanhamos o herói/narrador recordar os fatos marcantes de sua meninice: a hora de deitar; o beijo de boa-noite da mãe; as visitas de Charles Swann à família; os passeios pelos caminhos campestres — opostos e confluentes — de Guermantes e de Meséglise; a presença poderosa e afetiva de uma avó tão simples e sábia quanto romântica e culta; a visita ao tio, então amante da ainda jovem cocote Odete de Crécy; as noites encantadas pelas imagens criadas pela lanterna mágica; as visões memoráveis da pequena e provinciana Combray. E assim por diante.

Daquela época, o menino guardará para sempre o encanto essencial da vida familiar, não obstante a sua sensibilidade extremada aqui e ali não ser bem vista pelo pai, temendo, quem sabe, seu efeminamento e sua fragilidade emocional, o que, por sua vez, é compensado pelo não menos extremado afeto de sua mãe. Complexo de Édipo, Complexo de Marcel. O beijo certa noite recusado pela mãe é a primeira e árdua fronteira do universo da angústia e do desejo contrariado. Como sobreviver a esse fio ainda umbilical que enfim se rompe, jogando a criança em sua própria e terrível solidão?

A infância para Marcel, o herói, como de resto para quase todos nós, é o tempo mitológico por natureza. Por isso, adulto, o narrador se lamenta que não mais exista “a raça de Combray”, isto é, seus familiares e conviventes da infância. Mas o menino vive no adulto, não o abandona e sabe confortá-lo.

Por sua vez, a juventude e a adolescência são épocas “fecundas”, não obstante “[…] a tranquilidade ser coisa desconhecida, pois estamos [quando jovens] sempre cercados de monstros e deuses. E quase todos os gestos que então fazemos, desejaríamos suprimi-los depois. Quando, ao contrário, o que se devia lamentar era não mais termos aquela espontaneidade que nos inspirava”. Depois, diz Proust, “[…] ficamos mais de acordo com o resto da sociedade”. Mais convencionais.

A juventude também significa insolência. Uma insolência que inevitavelmente se perderá em prol da própria adaptação ao convívio social. Anos mais tarde, Guimarães Rosa, ecoando Proust, dirá, no “Grande Sertão: Veredas”, que “Mocidade é tarefa pra mais tarde se desmentir”…

Curiosamente, não há na “Busca” quaisquer considerações explícitas sobre o que se convenciona chamar de “maturidade”. Talvez pela simples razão de que a maturidade ocupe implicitamente a maior fatia do tempo romanesco das personagens. Como sabemos, não há (ou há em grau desprezível) em Proust uma preocupação com marcas cronológicas. Mas a maturidade, ressalte-se, nada tem de muito madura ou sábia (eis novamente a ironia proustiana), à exceção de algumas personagens que encarnam algum equilíbrio ou sensatez. Pelo contrário, muitos dos personagens nada têm de sábios: são tolos e caricatos, incapazes de sabedoria.

Finalmente, a “Busca” se encerra com a “surpresa” da velhice, pois “A velhice, como escreveu Trotsky, é o acontecimento mais inesperado da vida dos homens”. Surge, então, a senilidade de todos os que até a pouco eram apenas “maduros” e ocupavam o centro da vida mundana. Nessa época, as pessoas, segundo Proust, “parecem ganhar uma nova personalidade”, muitas delas “[encarando] a velhice e a morte com indiferença, não por serem corajosas, mas por terem menos imaginação”! Ao fim do livro, a festa matinê na casa da Princesa de Guermantes mostra ao narrador (e a nós, leitores) a ruína e a degradação que inevitavelmente já se instalaram nos corpos e nas fisionomias. Mais uma vez, nosso autor lança mão de seu virtuosismo descritivo para mostrar que o “último ato” da vida — “a maior miséria dos homens”, como escreveu — é algo grotesco e patético, sobretudo pelo contraste, através das lentes do tempo, com a pessoa que um dia já fomos.