Teresa Sales

A mulher do sétimo andar estava sentada no banco da jangada estacionada na praia do Pina. Havia saído de casa às 4:45 e, caminhando pelo calçadão, foi até a altura das jangadas. Nesse pequeno percurso, pouco mais de duzentos metros, sem o ruído dos motores, a não ser um ou outro perdido, inclusive dois ônibus cativos da avenida nas madrugadas, em seu caminho para o ponto final de Brasília Teimosa (certamente sua rota seria pela Avenida Conselheiro Aguiar, porém, aos devotos de Iemanjá, tudo se perdoa), pois bem, sem o ruído dos motores, era possível ouvir os passarinhos.

Os passarinhos não são muito amigos do mar, se sabe, como são das matas. Mas as matas andavam encolhendo, naquele século XXI. Tanto que, no tempo em que aquela mulher morou em uma casa em bairro tranquilo da cidade de São Paulo, seu quintal, como certamente muitos dos velhos quintais do Poço da Panela, da Várzea, de tantos bairros do Recife, era povoado de pássaros. A revoada dos passarinhos de São Paulo para a grande cidade aconteceu nesse tempo em que ela morava lá, o tempo em que crescia o agronegócio, os reflorestamentos, as plantações contínuas, por centenas, milhares de hectares de milho, feijão, soja, cana …

Os pombos não. Esses sempre foram vagabundos de rua, moradores de aparelhos de ar condicionado, de prédios altos. Qual ciganos, acostumaram-se a se arranchar em qualquer canto, contanto que encontrem farelinhos de restos de comida no chão, para o café da manhã. Mas os outros pássaros não. Possuem uma dignidade. Gostam de seus rituais, antes de dormir e ao acordar. O coqueiro, muito cioso de si, vaidoso, folhas frágeis ao vento forte do mar, não é casa boa para passarinho. Mas a castanhola, gorda, mãe, Iemanjá, acolhe-os e, também se sabe, em coração de mãe sempre cabe mais um. Seu apelido, “coração de negro”, aparentemente é por causa do fruto, uma pequena castanha escura. Mas cabe como luva para seu acolhimento aos pássaros, sua sombra aos homens e aos cachorros.

Quanto mais os moradores da Avenida Boa Viagem plantavam coqueiros e castanholas nos terrenos pertencentes à marinha brasileira (que, de resto, também era proprietária de um pedacinho dos terrenos onde moravam, para a qual todo ano eram obrigados a pagar foro), mais chegavam passarinhos para fazer das castanholas suas casas. Saiam logo cedo, pois não suportavam o barulho dos motores. Mas, coitados, moradores sem teto, eram obrigados a retornar à noite. Os de Casa Forte avisavam: olha, aqui não tem mais lugar. Tenta pros lados das praias. Dizem que lá está havendo ocupações.

Ao sair do calçadão para a terra pisada do mar, a mulher do sétimo andar pressentiu que o sol ia nascer naquela hora, e se sentou no banco da jangada para apreciar. Aquele saiu majestoso de dentro do mar, em formato de um coração vivo, sangrando, com uma fina nuvem escura, deixada pela noite, cortando-o, em sua forma de pera, com a parte mais fina para baixo. Foi a forma que as nuvens o apresentaram naquele dia. Era ver um quadro do coração de Jesus em casa de pobre. Até raios dourados espalhavam-se em torno de si.

No dia anterior, as nuvens, essas fugazes telas de pintura para o sol, haviam encoberto a cara dele, que foi aparecendo pelas bordas, pintando nelas um debrum dourado. Até que, brincando, elas tomaram o formato de uma cabeça de cachorro, que foi abrindo a boca e botando a língua de fora. Até que, finalmente, afastaram-se, e, com alguns minutos de atraso, apareceu o grande astro do espetáculo da aurora.

Só então, depois que o sol já não permitia que mirassem diretamente seu rosto, a mulher retomou a caminhada pela areia do mar secante, na direção da praia de Boa Viagem. Mais ou menos na altura do limite entre o Pina e Boa Viagem, ouviu de longe a alegria juvenil de um espetáculo que já vira em muitas e muitas caminhadas. Acontece sempre ao nascer do sol, a melhor luminosidade para fotografia. As garotas parecem sereias morenas, em pobres vestidos brancos. Todos de branco, rapazes e moças, Nenhum deles sabe que, no tempo de seus bisavós, os negros e mulatos dali mesmo do Pina, do bairro de São José, e onde mais houvesse terreiros de Xangô, poderiam ser espancados pela polícia na rua, pelo simples fato de se vestir de branco na sexta feira, o dia de homenagear Oxalá, o rei dos orixás, criador do céu e da terra. Existiram nesse tempo dois negros baianos de sobrenome Santos, que saíram da Bahia e moraram nos quatro cantos do mundo, inclusive um deles no Recife, onde trabalhou com Celso Furtado, inclusive o outro em São Paulo, onde era professor da USP, e que nunca deixaram de se vestir de branco às sextas feiras. Contudo, com eles, ricos, ninguém mexia.

A mulher do sétimo andar observou nesse dia que, nas letras garrafais que identificam o grupo, atrás das quais a moçada se postava para a primeira foto, muitos com seus celulares fazendo “selfies”, estava escrito “teiceirão”. Um rapaz sabia o colégio, mas não quantos eram. A colega voltou-se para a mulher, prestativa, fez as contas rapidamente, são quatro turmas, cada uma com quarenta a quarenta e cinco alunos, somos mais ou menos cento e setenta.

Ficou um pouco ali. Teve saudade do tempo em que era socióloga e faria mais perguntas, anotaria num caderno, tomaria o endereço daquela moça, marcaria um dia para ir à sua casa entrevistá-la. E lembrou que, há cerca de dois anos, quando tinha um blog, escreveu uma crônica sobre jovens evangélicos que organizaram um ato ecumênico na mesma praia do Pina, com centenas de cruzes enterradas na areia simbolizando os jovens mortos pela violência na periferia. E pensou que os profetas da Ciência Política e da Economia daquele século XXI estavam longe de perceber que a mudança do país estava distante das teorias que construíam. Que aquelas mesmas igrejas, que haviam eleito um presidente da república, também eram palcos e instrumentos de organização de jovens, como seriam alguns desses que festejavam o “terceirão” de um colégio de periferia. A dialética de Hegel ainda explicava muita coisa.

Retomou a caminhada de volta. O sol começava a esquentar.