Qualquer leitor mais atento da “Busca” tem a vívida sensação de que sempre há muito por decifrar, pois o real da narrativa sempre propõe, senão exatamente enigmas, novas e curiosas surpresas. Nesse sentido, o leitor é como um duplo do narrador-herói, uma vez que ele (ou seja, cada um de nós) de alguma forma quer “ler” e configurar o mundo que se oferta como contingência. Um mundo refratário às interpretações lineares e unívocas e, todavia, à espera de que seu espírito e valor sejam “desencantados”, como nas antigas lendas celtas lembradas pelo narrador no primeiro volume do seu romance.
Na “Busca”, o conhecimento é sempre enfaticamente mediado por uma subjetividade inalienável e fundante: a do próprio herói/narrador, para quem “tudo está no espírito”, e não nos objetos, ou seja, para alguém solipsista e idealista por natureza e, portanto, ciente da intransferibilidade da consciência. O espiritual para Proust nada tem evidentemente a ver com qualquer aspecto religioso. É como se nosso autor se autorizasse a neologizar o termo existente, à falta de melhor palavra. O “espiritual”, a que tanto se refere, é a soma do mental enriquecido pela cultura. E é de forma sutil que de uma ponta a outra da “Busca” há uma permanente reiteração de que a vida tem um caráter mental. Proust chega muito perto de ver essa “vida espiritual” como o faria um neurocientista dos dias atuais. É provável que um António Damásio nos dissesse que Proust está muito mais para Spinoza do que para Descartes, considerando as coisas “sub specie eternitatis” dentro de uma perspectiva monista e, por consequência, sem julgamentos morais maniqueístas.
No “desencantamento” das coisas “encantadas”, o narrador da “Busca” vai tentar extrair uma sabedoria que é um esforço único de como estar no mundo. Busca imprópria para qualquer outro porque a sabedoria é a sabedoria de cada um, como diz o solipsista Proust em famosa e celebrada passagem: “A sabedoria não se transmite, é preciso que a gente mesmo a descubra depois de uma caminhada que ninguém pode fazer em nosso lugar e que ninguém nos pode evitar, porque a sabedoria é uma maneira de ver as coisas”. Nenhuma pessoa é inteiramente sábia, “pois não se pode estar certo de ter alcançado a sabedoria, na medida do possível, sem passar por todas as encarnações ridículas ou odiosas que a precedem”. Vale dizer que o sábio, por tal incerteza e tais contingências — as “encarnações que a precedem” —, jamais se pode assumir enquanto sábio. Para usarmos a imagem do próprio autor, podemos dizer que a sabedoria é uma interminável busca…
Para chegar ao “caráter mental da realidade”, o narrador vai se lastrear no sono e no sonho. Diz ele: “O sonho incluía-se entre os fatos de minha vida que mais me haviam impressionado, que me deveriam ter convencido do caráter puramente mental da realidade, de cujo auxílio eu não desdenharia na composição de minha obra”. A recorrência ao sono e ao sonho evocam ao nosso autor a dissolução e a ressurreição do eu, da mesma forma que nas peças de teatro as personagens encarnam e desencarnam nos atores. Proust se encanta com o poder do sonho de emular a realidade. Constata que “afinal não há grande diferença entre a lembrança de um sonho e a lembrança de uma realidade”. Por isso, um livro (e a literatura, por extensão), sendo um “sonho mais claro”, é uma vida profunda a se sobrepor à vida empírica e factual.
A vida do espírito, justamente porque mental, é plena de imaginação, sendo uma vida mais rica de possibilidades. Para Proust, trata-se de uma vida muito mais aventurosa e complexa do que a vida mesma. Nossas criações — sugere ele — não imitam a vida dita real, não são simulacros, são elas próprias prolongamento da nossa vida mais profunda. A ilusória impressão de platonismo que aqui e ali surge na “Busca” não seria mais que um equívoco que se perpetua na linguagem. Proust não crê nem avaliza os dualismos platônicos (muito menos os cartesianos) sempre tão fáceis de se encontrar na crença das pessoas. É como se ele percebesse qualquer encantamento apenas como uma maneira de ver poética, sem disso fazer qualquer metafísica. Eis aí, com certeza, um dos seus maiores signos de modernidade.
No “sistema proustiano”, se assim podemos falar, não há Deus ou transcendência, mas um demiurgo que se chama Marcel Proust. Ele não nos autoriza ir mais além justamente porque convencido de que a realidade é apenas uma produção da mente: ideias, arte e concepções, assim como todas as coisas que batizamos arbitrariamente a nosso modo, são, rigorosamente falando, tão somente “cosa mentale”. É nesse idealismo imanentista que a “Busca”, não obstante estar cheia de “espírito”, não só se fundamenta como se recusa a ser invocada sob outro prisma.
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