Teresa Sales

Jangadeiros – Chico Albuquerque.

Quatro e meia da madrugada. Acordo e principio os preparativos para o dia. Até descascar uma banana prata para comer à macaco, elevador e rua afora, atravessando a muralha protegida por guardiães da noite do meu edifício de apartamentos, já são cinco. O sol acabou de nascer.

Quando escancarei cortinas e janelas de par em par, há meia hora, ele, o sol, bordava um debrum de fios de ouro numa nuvem escura, resistente a ceder a noite ao dia. Atravesso a avenida escassa em automóveis e motos. Não estarei em casa quando passar o motoqueiro das cinco e meia, tenor de treino diário de casa para o trabalho com pobres músicas de seu repertório evangélico.  No que está perfeitamente sintonizado com a religião que sacramenta a ética de consumo dessa quadra do século XXI.

O trecho entre o calçadão e a praia é o quintal de seu Elias. Ele ainda dorme. Desde que comecei este diário, há pouco mais de um ano, esse é o quarto aposento que seu Elias usa para dormir. Varia de acordo com as estações do ano, inverno – que esse ano foi difícil para ele – e verão, chuva, estio. Quando volto da caminhada, passeio, alongamentos, devaneios, já passa das seis e quarenta. Guarda seu quarto no carrinho de supermercado. “Bom dia, seu Elias”. Levanta o braço em cumprimento amistoso, “Bom dia, dona Teresa”.

Com o passar dos dias, as personagens caminhantes da madrugada se repetem. As cenas: estudantes de branco para a melhor luz do dia a documentar a sua formatura. Tantos bons dias ditos e repetidos já são meio caminho andado para um dia bom, não é mesmo?

Hoje a areia molhada, pisada, já tinha pegadas. Prefiro quando acordo mais cedo e as minhas são as primeiras. Também posso ver a saída da primeira jangada. Paro a caminhada. Sento no banco da praia mais afastado da conversa de pescador e vejo o espetáculo mais bonito do dia: o nascer do sol dentro do mar, quando ele ainda não se tomou de poderes e permite a seus súditos dez minutos olhos nos olhos.  Os pescadores já me viram tantas vezes que nossos bons dias são quase caseiros.

Um dia, desci do banco e acompanhei, a uma certa distância, para não atrapalhar, o ritual da levada da jangada ao mar. Pouca diferença: não mais toras dos troncos de coqueiros, mas resistentes canos de borracha azuis e o motor. Carregá-lo da jangada estacionada à que está de saída, pousada instavelmente no balanço do quebra-mar, é uma operação delicada. Lembra escravos levando sinhazinha em um carrinho próprio, para que ela não molhe nem suje os pezinhos delicados.

Nesse dia, lembro, fiquei parada, olhando atentamente cada detalhe da operação. Ouvi: “Vamos caminhar?”. Virei-me para ver: descalço (Ah! Quem me dera! A minha coluna em S obriga-me ao tênis), bermuda vermelha, camiseta verde, boné.

Até hoje, ninguém me chamara para caminhar. É meu primeiro e solitário ato do dia, começando na madrugada. Com uma amiga, uma única vez, para nunca mais. A palavra humana é muito menos agradável aos ouvidos do que o barulho incessante das ondas e do vento, que anulam por completo os ruídos dos motores da avenida. Caminho para estar comigo.

“Vamos”, respondo. E logo me veio um pensamento. Se eu estivesse caminhando, o convite não teria sido feito. Os homens caminham; as putas ficam paradas.

Meu nome, onde moro. E olhei para trás, para os prédios da avenida. Estabelece-se de imediato uma divisão de classes sociais. Manoel Severino da Silva. Fala, fala. Escuto. De como ascendeu da favela do Bode para Brasília Teimosa. “Se você for lá, moça, todo mundo me conhece por causa de meu comércio. É só perguntar por Biu da Venda”.  No Terceiro Jardim despeço-me com um aceno de mão e vou aos meus alongamentos no brinquedo do parque infantil.

Ele é uma das personagens da madrugada. Daquele nosso único monólogo ficou um fragmento, como se fosse circo: “bom dia, minha princesa”; “bom dia, meu rei”. Ressuscito histórias de trancoso, com reis, rainhas, princesas, castelos. Adorava ouvir e contar histórias de trancoso quando menina. Era uma contadeira de mão cheia, das mesmas aprendidas com a cozinheira, Carmem. Depois saberia pela minha cunhada, Rosário, irmã de Zé Hamilton (pesquisadora e professora da Língua Portuguesa e literatura ibérica), que Trancoso foi um escritor português de histórias infantis. Escrevi acima a palavra com letra minúscula e está correto, pois seu nome virou adjetivo.

Dedico esse primeiro Diário do Pina à sua memória, Rosário. Você ainda está viva, em um confortável quarto na rua da Mouraria, na Bahia, para onde vieram seu avô e seu pai trazendo pedaços da velha Espanha galega. Arrodeada de cuidadoras, com um olhar vago, sem memória. Que a morte lhe seja leve. E breve.

Nesse ano e pouco de diário, desde novembro de 2016, acompanhei muitas cenas no Pina. Por vezes, de minha janela, um teatro de surdos: vejo o que se passa e não ouço.

Bom dia, leitores. Estamos em tempos do Advento e me recuso a lhes desejar feliz natal, do qual fujo como o diabo foge da cruz. Quero ficar com meu natal católico. No qual já não cabem as missas com as músicas animadas de hoje em dia.

Outro dia fui ao enterro do irmão mais novo de minha mãe. Faria cem anos em dez de abril de 2018. Por parte de pai, dos dez irmãos, sobrou também a caçula, que fará cem em março próximo. Acho que estará viva até lá porque resolveu escrever o que se lembra da história da família. Ah, se encontrasse o livro de catecismo colorido com o qual preparou quase todos os sobrinhos para a primeira comunhão! O Cão do Terceiro Livro. Pagaria qualquer preço para exorcizar o diabo recoberto de fogo que me perseguia em sonhos de menina.

No enterro do tio, na hora solene em que o caixão baixava ao túmulo, uma neta dele puxou uma música de crente, gravada no celular. O padre já havia celebrado a missa de corpo presente, que tive a ventura de chegar a tempo de perder. Aquela música me instigou a uma rebeldia juvenil. Ando tendo dessas crises de rebeldia depois que completei setenta anos. Falta-me cerimônia. Como outro dia, na livraria Cultura, confortavelmente sentada consultando qual dos livros compraria, uma moça posta-se na minha frente a resolver assuntos de trabalho ao celular. Não tive dúvida: passei a ler meu livro em um volume de voz mais alto do que o dela ao telefone. Ela virou-se, me viu, até me reconheceu (nunca falamos sobre isso em almoços em que a encontrei na casa de Sílvio) e saiu de perto para não ser por mim perturbada. Assim fiz com meu tio. Falei alto: “Antes de se casar, ele foi seminarista. Cantemos músicas de sua cultura: Ave, Ave, Ave Maria … No céu, no céu, com minha mãe estarei … A filha tirou o celular da bolsa, gravado na UTI, com a voz dele, delirando, cantando uma dessas músicas de seu tempo de seminarista.

O único natal que me sobrou no Recife: o Baile do Menino Deus. A esse eu vou, sempre que estou aqui. E como minha companhia é Janice Japiassu, amiga do rei, sento-me em lugar privilegiado para apreciar o auto de natal. Que para mim começa antes, no dia oito de dezembro, na homenagem à grande deusa rainha do mar. Dia também da mãe de Jesus, que vem a ser o menino deus que nasce ano após ano à meia noite do dia vinte e cinco de dezembro. Fico com a missa da Igreja Matriz de Bezerros, na calçada da casa de tia Lilia. Os mais velhos sentados, os meninos em pé, cansados dos carrosséis e rodas gigantes e barcas de madeira puxadas à corda. Os menores, a dormir no colo das mães e tias. Não tinha Papai Noel. Nem presentes. Nem votos de feliz natal. A felicidade não era desejada em votos.

Até a próxima crônica, queridos leitores, de feliz ano novo, com o relato de uma festa de confraternização do ano passado, muito parecida com o Canto VI de Dante Alichieri, no terceiro círculo, o dos gulosos: uma churrascaria rodízio de luxo da cidade do Recife, no Derby, com direito a garçons vestidos de negro, portando espetos,  no meio de mesas lotadas e aos gritos.