Os sinos, malgrado o passar dos anos, quer moderados, quer tagarelas, plurais ou solitários, saudosos ou alegres, insistem no seu artesanato sonoro, por vezes nos evocando uma espécie de arqueologia não só lírica, mas social e literária. São poucos os poetas que não trouxeram para os seus poemas a presença musical dos sinos. Para ficarmos na língua portuguesa, bastaria uma lista com os nomes de Alphonsus de Guimaraens, Antônio Nobre, Florbela Espanca, Fernando Pessoa, Machado de Assis, Manuel Bandeira,  Vinicius de Moraes, Joaquim Cardozo, Ascenso Ferreira e  Carlos Pena Filho. Dentre os poetas mais conhecidos do mundo, um belo trio seria suficiente: John Donne, Friedrich Schiller e Edgar Allan Poe.

Marcel Proust, por quem os sinos recentemente tocaram por ocasião dos seus cem anos de falecimento, soube igualmente escutá-los e traduzir uma melancolia sem remissão. No primeiro volume de “Em busca do tempo perdido”, o narrador, como do seu feitio, mistura-os e compara-os aos próprios soluços que sufocou em sua infância:

“Mas desde algum tempo que recomeço a perceber muito bem, se presto ouvidos, os soluços que tive então a coragem de conter diante de meu pai e que só rebentaram quando me encontrei a sós com mamãe. Na realidade jamais cessaram; e somente porque a vida vai agora mais e mais emudecendo em redor de mim é que os escuto de novo, como os sinos de convento, tão bem velados durante o dia pelos ruídos da cidade, que parece que pararam, mas que se põem a tanger no silêncio da noite”.

Será preciso dizer que um Natal sem sinos é um Natal atrofiado e mudo? Não faz muito tempo, pequenos sinos decorativos (na impossibilidade prática de se possuírem os grandes e reais) vinham se postar à frente das portas das residências e das lojas. Tocavam, é claro, para a nossa imaginação, numa alegoria febril de que a música é indispensável aos grandes momentos. Mas os sinos ainda não são propriamente música, eles anunciam a música que virá; são, por assim dizer, o prenúncio do esplendor. Estamos longe aqui dos longos dobres que dobram as almas em seu luto. Os pequenos sinos, agudos e breves, parecem se prestar melhor às alegrias cristãs, parecem preparar nossos ouvidos para a sinfonia da salvação. Apesar disso, os grandes sinos, ciumentos da intimidade doméstica dos pequenos sinos decorativos, também sabem ser alegres e solares ao comemorarem o nascimento do Salvador. 

Teria, esta natalina crônica, uma sonora lacuna se não lembrássemos que os sinos (pelo menos, os que não são mal-assombrados!) não badalam sozinhos. Por trás dos sinos, não há suaves anjos, mas “invisíveis” humanos sineiros. Numa crônica exemplar, aliás, como todas que escreveu, Machado de Assis celebra um escravo que foi uma espécie de eterno sineiro da Igreja da Glória, no Rio de Janeiro: portanto, alguém duplamente “invisível”, a quem o Bruxo do Cosme Velho imortaliza com suas palavras. Da dura realidade do bronze à ficção literária, logo nos deparamos com a figura do legendário sineiro Quasímodo, o mais famoso corcunda da literatura universal, protagonista do romance “Nossa Senhora de Paris”. Tão protagonista que terminou deixando na sombra o título original do livro de Victor Hugo!

Voltemos ao Natal, que ele passa logo! Voltemos em companhia do mestre Rubem Braga, que não passa nunca! Conta “o sabiá da crônica”, num texto intitulado “Por quem os sinos bimbalham”, que, certa feita, aparecera, na redação do jornal em que ele trabalhava, “[…] uma senhora que tinha os seus encantos”, que fora “recomendada” para publicar naquela folha. Entrou, diz o genial cronista, com um “[…] andar musical, abriu a bolsa, meteu lá a longa mão branca (lembro-me das veias azuis) e com um sorriso encantador estendeu o original: ‘Aqui está…’”. Uma vez ausente a ilustre anônima, o secretário de redação, com “[…] uma expressão de ódio impotente misturado com desalento”, mostra a crônica da madame ao colega Rubem. A primeira frase do texto proclamava altissonante e anódina: “Natal! Natal! Bimbalham os sinos…”. 

Passados 30 anos, Rubem Braga nos fala que aquelas palavras fatidicamente ainda o perseguem: “Natal! Natal! Bimbalham os sinos…”. Ele, claro, não se alonga sobre a crônica da recomendada madame (nem precisava!), mas a gente sabe que pelo dedo se conhece o gigante!…

Desejo a todas e todos um belo Natal, com sinos que toquem, cantem, inspirem e jamais bimbalhem!…