Happy new year!
As garrafas de cerveja sacolejavam de traz pra frente e vice-versa, aos bruscos movimentos do metrô da Green Line de Boston. Vagões pequenos de um trem que parece, ainda hoje, de brincadeira; verdes, por óbvio. Voltávamos da First Night, a comemoração da passagem do ano naquela cidade. Antes, antes mesmo de Hamilton chegar com Pedro para as festas, no apartamento onde eu morava desde setembro com Miguel, já havia comprado os “buttons”. Naquele ano de 1990/91, custaram cinco dólares. Comprei no caixa do MIT, mas poderia ter sido em qualquer das estações maiores de metrô. Com ele à mostra, poderíamos entrar em qualquer das salas, museus, bares, onde quer que estivesse havendo programação. E eram muitas: de música, da clássica da melhor até o chorinho brasileiro, sem faltar o quente ritmo cubano.
Éramos três casais. Antes de tomar o metrô para encontrá-los numa das saídas da Park Station, deixamos os meninos, à época com 11 e 14 anos, na casa de Ana Lúcia Altino e Rafael Garcia. Moravam num “basement”, num apartamento com cheiro de música por todos os recantos. Era uma espécie de consulado brasileiro. Miguel era colega de turma de um dos seis filhos do casal.
Haveria que aquecer uma noite de quatro graus abaixo de zero, ruas enlameadas (restos de neve ficam parecendo as estradas lamacentas de meus invernos infantis na fazenda de meu avô), o Boston Public Garden quase inteiramente coberto de neve, com esculturas em gelo feitas de véspera. Vestígio da rigorosa religião puritana, a lei proibia beber nas ruas. Como enfrentar o frio entre um espaço fechado e outro? Brasileiros em maioria, venceu nossa proposta de boicote à lei. Bebíamos avidamente na boca da garrafa um bom whisky, escondido em baixo dos pesados capotes, logo desconfiávamos de policiais de olhos vigilantes. Encerramos a noitada vendo a queima de fogos na área portuária onde está o poder daquele rico estado norte americano: Government Center.
Da saída do metrô até a casa dos Altino/Garcia para apanhar os meninos e um resto de festa, andamos por ruas absolutamente desertas. Foi quando apareceu o ciclista solitário, envolto na mesma bruma que nos encobria, como estivéssemos no cenário de um filme. Ao longe, ouvimos sua voz com os votos de feliz ano novo. Mãos enluvadas saídas dos bolsos de nossos agasalhos, agarradinhos que estávamos para nos aquecer, levantamos braços direitos para responder alegremente aos bons augúrios: happy new year!
Naquela noite, poucos carros particulares circulavam nas ruas. Todos que foram à festa, uma multidão, usaram transporte público.
Passadas algumas décadas, talvez muitas ainda, quem sabe, a Avenida Agamenon Magalhães poderá estar assim numa noite de festa. Num dia comum de trabalho. As pessoas andarão a pé pelas ruas planas da cidade, de bicicleta, porque o espaço público é para todos. Deixarão seus carros estacionados nas garagens para passeios de final de semana. Outros, por desnecessário, morando perto do local de trabalho ou trabalhando em casa, não os terão.
Devaneio enquanto conduzo o carro pelo trânsito moroso da Avenida Agamenon Magalhães. No Canal do Derby correriam águas límpidas que sabem
“(…) da chuva azul,
da fonte cor-de-rosa,
da água do copo d’água,
da água do cântaro,
dos peixes de água,
da brisa na água.”
(João Cabral de Melo Neto)
Uma Amsterdam. Os jardins, ao correr do canal, mais do que os de Amsterdam, haviam se expandido e abrigavam uma faixa de tijolinhos de cerâmica iguais aos do calçadão do Pina-Boa Viagem. Por ela os trabalhadores caminham com mochilas às costas contendo capas de chuva, sombrinhas e tudo o que levarão para o seu ofício em escritórios e oficinas.
As duas faixas próximas ao calçadão margeando o canal são ocupadas por bicicletas. Tantas quanto as que vi em Pequim em 2004, porém sem a desordem das de lá, onde concorriam na principal avenida do centro da cidade com pedestres e automóveis. A faixa seguinte, junto às dos ciclistas, poderia ser usada pelos automóveis. Porém, como haviam ficado quase todos estacionados em casa esperando o final de semana para passearem, nela circulam ônibus escolares, taxis, ambulâncias e alguns poucos carros e motos particulares, atendendo a alguma emergência.
Na última faixa, ladeada à direita por ampla calçada sombreada pelas nossas exuberantes árvores tropicais, os ônibus de passageiros. Enormes, iguais aos de Orleans, cujo único perigo aos pedestres é o seu silêncio. Teriam tempo de buzinar para alertar alguém mais distraído que atravessa fora do sinal de pedestres. Os trilhos por onde circulam, ao modelo daquela cidade francesa, por sobre um imenso corredor plantado de grama, são bonitos de se ver na época invernosa.
As crianças estão todas nas escolas, para as quais teriam ido a pé – pois quase todas estudam perto de casa – ou nos ônibus escolares amarelos, o transporte mais seguro da cidade: todos os outros meios de locomoção param atrás enquanto embarcam ou desembarcam os escolares. Os diretores das escolas, desde o curso elementar até o final do segundo grau, são os funcionários públicos mais respeitados e bem remunerados da cidade.
Outro dia, estava na minha caminhada pela areia da praia às primeiras claridades que antecedem o nascer do sol, quando me deparei com uma cena alvissareira. Uma barraca de camping. Fora, dois pares de tênis, uma toalha, uma garrafa d’água. Fiquei imaginando os dois jovens que estavam ali a desafiar a lei do medo. E pensei: quando muitos desses garotos e garotas da classe média bem nascida e bem educada começarem a tomar as ruas, andar de ônibus, misturando-se aos “nóias” (com os quais podem até compartilhar o prazer da droga), não em eventos especiais, como foi o “Ocupe Estelita”, mas no cotidiano, as ruas do Recife poderão ter de volta a vida da qual a nossa guerra civil as privou.
E a confraternização prometida na crônica passada? Deixa pra lá, já passou. Dela ficou apenas o gosto amargo que se repete este ano: os chorões do Canal do Derby sem luzes de Natal. Como ousam? No entanto, as eleições já começaram aqui, na orla do Pina-Boa Viagem, no conluio que se restabelece a cada dois anos, sejam elas municipais, estaduais ou federais. As benfeitorias vão se deteriorando, porque o compromisso das empresas que as financiam e colocam lá suas placas não é com o bem público.
Um colega do tempo de faculdade, bom em matemática, meio exilado no Rio de Janeiro ao tempo em que o Brasil era governado por militares, propôs à alta direção do extinto Instituto Brasileiro do Café, onde trabalhou um tempo, uma equação simples, para não precisar refazer as contas a cada novo contrato do governo. Por cínica, sua proposta não foi aceita. Vigora desde sempre na calada da noite.
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