Uma explicação
Tempo desses intitulei de Dias Luminosos, as reminiscências publicadas aqui, alusivas ao período compreendido entre dezembro de 1975 e abril do ano seguinte, quando chegou a primavera à Baviera. Na sequência, em Dias ruidosos, alonguei-me em outras tantas sobre o intervalo que principiou com minha chegada à cidade de Radolfzell, até os dias que antecederam a temporada que cumpri no kibutz Ayelet HaShahar, em Israel, de resto também publicadas em “Será?”, sob o título Cem dias na terra do leite e mel, e que nos remeteram às portas do outono. Daí até o inverno acabar, reatei com os estudos na Europa, onde viria a passar uns meses na Inglaterra, antes de voltar ao Brasil. É sobre esse período que versa Dias buliçosos que, conforme o leitor verá, talvez não escape ao padrão dos relatos anteriores, salvo pela alternância de pessoas e paisagens. No íntimo, lá onde residia a programação mental do narrador, talvez nada de substancial tenha se modificado. Mas sobre isso, não me cabe julgamento. O que posso fazer, em caráter intransferível, é registrar o que me ficou daqueles anos em que a vida estava só começando. Se esta foi boa ou ruim, virtuosa ou mundana, tampouco me cabe opinar, apenas contar. Ao eventual leitor, peço para me acompanhar.
A caminho do inverno
Certo dia, a temporada em Israel chegou ao fim. A Alta Galileia começava a ter aragens mais frescas quando soou a hora de deixar o kibutz e retomar a vida na Europa. No meu caso, isso significava voltar para a Alemanha, onde cursaria mais um bimestre no Goethe-Institut, de Radolfzell. Nas margens do Bodensee, o outono já estava bem adiantado e as alamedas do parque municipal estavam juncadas de folhas mortas, muitas delas vermelhas e empapadas, emprestando ao reencontro com a Europa um ar de retorno ao mundo a que sentia pertencer. O Recife era apenas uma lembrança fugidia, porém fértil de luz. Ademais, nada na paisagem renovada lembrava os dias que vivera ali, apenas 4 meses antes. Isso porque os barcos jaziam agora no ancoradouro e os motores tinham sido levados para manutenção. As gaivotas voejavam preguiçosas e pareciam perscrutar os céus à procura de novidades. Os voos rasantes sobre as águas encarneiradas eram raros e os ares ruidosos deram lugar a um silêncio profundo e contido, agasalhado por espessa neblina. Depois de meses sob a luminosidade do Oriente Médio, em meio à exuberância dos cheiros e sabores dos bazares árabes de Jerusalém, a velha Europa pontuava um ancoradouro de paz interior e recolhimento, tão necessários à minha incipiente vida intelectual, toda ela feita de muitas emoções e algumas descobertas.
Enquanto voava para Frankfurt, sobrevoando a imponência da Acrópole, dez mil metros abaixo, e me deliciando com a miríade de reentrâncias da costa dálmata que apareceria na sequência, é claro que vez por outra pensava no que ficara para trás. O encontro com Israel, livre do filtro do romantismo – tanto quanto o permite minha alma -, de par com os rigores de uma rotina que nem sempre consegui edulcorar, me levou a uma percepção mais real de um país feito de imensa colagem de fantasias individuais. Saí de lá certo de que se tratava de uma boa causa e de que não era exatamente o caso de nos apiedarmos dos impávidos guerreiros que ali cavaram uma enorme trincheira. Antes disso, convinha entender todos os lados e nos aliarmos aos judeus que abraçavam bandeiras menos sectárias. Mas como foi duro deixar o alojamento. O gato Charlie, que certa feita vi depenar um passarinho; os chuveiros coletivos onde encontros não tão casuais marcaram paixões ardentes; as noites estreladas; o cheiro dos eucaliptos que emanava dos pequenos bosques; a paz dos cemitérios e seus túmulos com pedras. Enfim, tratava-se de um país de alma feminina, porém de postura algo raivosa. O que fazia dele tão fascinante quanto uma mulher brava, dessas que botam tudo a perder por excesso ou intensidade.
Alemanha, etapa final
Quando voltei a Radolfzell, resolvi morar sozinho na Kolpinghaus, uma casa próxima ao domicílio de minha nova paixão, uma alemã que patinava no gelo, esquiava, perdera um irmão, era bastante amorosa, e balançou meu coração volúvel. Na escola, tive a ventura de retomar as aulas com o professor que mais me impressionara em Rothenburg-ob-der-Tauber, Herr Kappel, e era reconfortante estar sob a supervisão de alguém que podia atestar minha evolução naqueles meses. Como eu previra, a temporada em Israel em meio aos alemães, me dotara de grande desenvoltura verbal e de um bom acervo de linguagem coloquial. Há quase um ano longe do Brasil, não sei se me passou pela cabeça alguma vez não voltar de jeito nenhum para o Recife. Certamente esse extremo não se corporificou em função dos afetos, de certo senso de gratidão e pelas saudades de algumas coisas isoladas da cidade, especialmente aquelas ligadas à vida boêmia. Mas estava muito à vontade na Europa. Com 17 anos, tinha excelente domínio de francês, alemão e italiano. Na minha lista de países visitados, podia já somar uma dúzia deles e sabia que tal acervo de partida levaria meu pai a insistir na opção pela diplomacia, caminho que me causava sentimentos dúbios. De qualquer maneira, tinha tempo. Faltava concluir o último ano do segundo grau e só depois pensaria no que fazer. Não tinha pressa.
À medida que o inverno foi apertando, percebi que seria um bimestre curto, certamente impactado pela chegada dos feriados de fim de ano. Precisava viver o presente e o prazer de muitos reencontros. Mas se impunha também desenhar um plano para o primeiro trimestre do ano seguinte. Dinheiro eu ainda tinha. Mas era perigoso deixar que se instaurasse um vácuo de programa, caso contrário minha família poderia alegar que eu já estava fora há muito tempo, e iria me pedir para regressar antes mesmo do início do ano letivo. Isso era tudo o que eu não queria. Ademais, algo já me dizia que os vácuos são rapidamente ocupados quando sucumbimos a um vazio propositivo. Passaria o Ano Novo por ali, mas rumaria para Cambridge, Inglaterra, no alvorecer de 1977, onde me inscrevi numa escola de língua bem recomendada. Para consumar os fatos, transferi o dinheiro da matrícula e tratei de finalizar o que Goethe chamava do Mettelstufe II, o que me bastava largamente para todas as finalidades da vida. O resto viria com a prática e tampouco pretendia me tornar professor de alemão. Intensifiquei as viagens pela região nos fins de semana, curti a vida noturna na companhia de meu amigo Modibo Keita, do Mali, e percebi, no Natal, que meu coração já estava na próxima escala, e só faltava levar o corpo até lá. Mal sabia que passaria a vida a administrar essa dinâmica e que boa parte dela se fragmentaria em dias buliçosos.
Nice to see you again
Falar inglês era um complemento importante na bagagem linguística. Já naquela época, era cristalino que esse haveria de ser o idioma elevado a lingua franca dos tempos futuros, o latim da modernidade, muito embora tivesse conotações nem sempre simpáticas para muitos de minha geração e meio sócio-cultural. Sobretudo porque era o idioma dos americanos, o que dava um quê de servilismo a quem buscava aprendê-lo. Essa noção de subserviência sempre causou imensa antipatia nos círculos do colégio e em outros tantos que eu frequentava, pouco importando que também fosse o idioma dos Beatles. Tamanha ortodoxia teria que ser relevada nem que fosse em nome do pragmatismo. Para mim, a verdade é que havia um atrativo extra no estudo de idiomas. Ademais de estarem em linha com os planos de formação diplomática, eles me permitiam esbanjar uma auto-confiança que, talvez, me faltasse na língua-pátria. Sim, em português, eu gaguejava, o que não acontecia forçosamente nas demais. De qualquer sorte, até hoje é mais ou menos assim: em inglês sou um sujeito claro, irônico e um pouco ríspido. Em alemão, sou respeitoso e preciso. Em italiano, viro menino e sorrio bastante. Em francês, sou um galã, não raro sedutor. Em castelhano, me torno amigo da humanidade. Não é difícil ligá-las a determinadas pessoas que conheci e momentos que vivi.
Interessante é que quando cheguei à Inglaterra e comecei a estudas na Lennox School, os professores se espantavam quando eu dizia ser brasileiro. Da mesma forma que os primórdios do aprendizado do alemão estavam impregnados de um sotaque francês – tendo sido este meu primeiro idioma estrangeiro -, dessa vez era o sotaque alemão e a construção das frases que traía o idioma em que eu vinha funcionando há bons meses. Mas como era bom estar no Reino Unido, nossa fórmula preferida de nos referirmos à Inglaterra. Cambridge era uma cidade agradável. A escola me providenciou alojamento na casa da família Hirst, no número 21 da Girton Road. Aluguei uma bicicleta preta, dotada de uma cestinha, e de pronto me senti inserido. Tinha um colchão de poupança e nenhuma preocupação material. A Lennox era boa, apesar de muito mais flexível quando comparada com o Goethe. Como de praxe, havia uma profusão de meninas interessantes e até hoje sonho com Sylvie Dozier, uma francesa de radiante beleza e de uma sensualidade que só existiu naqueles moldes nos anos 1970. Por ali reinava um inverno bastante suportável e minha rotina intercalava idas periódica ao pub Red Cow, na companhia de Pedro Bordalo, um português que morava na mesma casa que eu. Conosco viviam ainda Penda, uma linda senegalesa, um belga e, posteriormente, uma francesa de alma e atitude descafeinadas.
Ao despertar, tínhamos um lauto café da manhã. No final do dia, um bom jantar pilotado por Mrs. Hirst. Embora a dona da casa não tenha me inspirado grande simpatia – era baixinha, afetada e me parecia querer aparentar uma sofisticação que não lhe saía natural -, reconheço que ela foi de enorme valia para me educar não só na língua, como também no universo do mundo inglês, feito de muitas sutilezas de trato e de códigos sociais. Quando cheguei para viver lá, ela me informou que a sogra morava nos fundos e que estava doente, pronta para morrer a qualquer momento. Quando isso de fato aconteceu, Mrs. Hirst se paramentou de vestido de gala e foi a um jantar dançante no clube para celebrar o alívio. Segundo D. Ruth Cardoso, a comemoração foi por conta de ter liberado um quarto a mais em casa para poder alugar a estudantes. A propósito, motivo de especial alegria foi privar do convívio de Fernando Henrique Cardoso e família. Bia, a segunda filha do casal, era minha colega de escola. Já vivera no Chile, falava um belo castelhano e era discreta e doce. Saíamos com alguma freqüência e terminei privando da conversa bem-humorada do casal, em que resplandecia a simpatia do ex-Presidente, então professor visitante de assuntos latino-americanos na cátedra Simon Bolívar. No momento em que escrevo essas linhas, 40 anos depois, registro com prazer um telefonema trocado com ele na primeira semana de dezembro de 2017.
Eu já visitara a Inglaterra por poucos dias em 1973. Passados quatro anos, e agora bem mais rodado, já tinha condições de avaliar o entorno com acuidade. Nada me chamava tanto a atenção quanto o apego dos ingleses aos centavos e as referências contumazes que faziam ao dinheiro. Eu ficava chocado com a forma escancarada a que eles se referiam a valores, fetiches de consumo, e com os paralelismos que estabeleciam entre riqueza e classe social. A temática só não ganhava na preferência local para a meteorologia, tema invariável de qualquer conversa. A paisagem britânica me parecia austera e quase decadente. Os trens eram rústicos quando comparados com franceses e alemães. O metrô obedecia a um sistema tarifário complexo, contrariamente ao valor único que vigia em Paris. É claro que a bizarra culinária local tinha um lugar proeminente na lista de perplexidades. As salsichas eram atrozes, os ovos empanados das estações ferroviárias eram um terror, assim como os sanduíches de camarão miúdo com abacaxi, ou os morangos com pimenta-do-reino e as indefectíveis cervejas mornas, a que me acostumei com o passar do tempo.
Por outro lado, se as cidades alemães de maior porte são até hoje um tanto quanto carentes de cor e vibração – com as exceções de Berlim e Munique -, Londres exercia enorme poder de atração. Além de bastante próxima de Cambridge, meu amigo Pedro tinha que acorrer até lá para receber sua mesada num escritório elegante de Piccadilly Street, junto ao Hard Rock Café. Era ali que funcionava a matriz da distribuidora de filmes para o cinema. Segundo disse, seu pai tinha salas de projeção em Portugal e nas antigas colônias. Lá sempre conversávamos com um grego que fumava compulsivamente e que lhe liberava o dinheiro enquanto sorria entredentes, insinuando que ele estava gastando muito. Por volta do fim janeiro, chegou à Inglaterra um primo por parte de mãe. As conversas sobre o Brasil, o Recife, e a política embalavam nossas noites regadas a muito uísque. Quando olho em retrospectiva, percebo que bebia assustadoramente demais para a idade que tinha – entre 18 e 19 anos -, e mal me dava conta de que aquele hábito tão social e tão pernambucano poderia um dia me levar às portas de uma dependência mais séria. Esta nunca chegou para ficar, mas não há a menor dúvida de que o álcool teve um papel maior do que deveria em minha vida de jovem. É claro que naqueles anos tudo parecia ser só uma extravagância, própria de quem vivia há tempos longe de casa e que dispunha de um orçamento para fazer o que bem entendesse, inclusive reproduzir os padrões que trouxera de casa. Quem quer que já tenha vivido no Nordeste, sabe que lá a bebida é uma espécie de rito de passagem. Fosse como fosse, minha cabeça se voltava para o Brasil com crescente esperança. Que país encontraria?
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