Frederico Toscano

La Liberté guidant le peuple (“A Liberdade guiando o povo”), óleo sobre tela de Eugène Delacroix (1798-1863), que se tornou um dos símbolos da Revolução Francesa, cujo lema era “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”.

 

Alguém já se perguntou por que o CD foi lançado em 1982 com a capacidade de armazenar 74 minutos de música? Curiosamente, isso teve tudo a ver com a última sinfonia do grande compositor alemão Ludwig van Beethoven (1770-1827) – a Sinfonia n° 9 em Ré menor, mais conhecida como Sinfonia Coral (por ter sido a primeira na história da música a ter um coro) ou, simplesmente, Nona Sinfonia.

Em 1979, as poderosas gravadoras Philips e Sony começaram a trabalhar juntas no primeiro padrão de Compact Disc Digital Audio, popularizado futuramente apenas pela sigla CD. A Philips queria um disco de 11,5 centímetros, enquanto a Sony apostava num formato de 10. Ambos eram o suficiente para acomodar os vinis da época, e o modelo da Sony era capaz de armazenar 60 minutos de música. Mas isso não era o bastante. Norio Ohga (1930-2011), um cantor de ópera que criticava fortemente a qualidade do áudio da época, enviou à Sony uma carta, na qual reprovava a qualidade do som do gravador de fitas da empresa. Em contrapartida, Ohga recebeu uma oferta de emprego, e sua influência foi tão grande que o levou à presidência da Sony nos anos 1980. No entanto, antes disso, ele supervisionava o projeto do Compact Disc, e exigiu que o formato do fosse capaz de tocar a Nona Sinfonia de Beethoven inteira.

A performance da obra mais longa conhecida até então tinha duração de 74 minutos, que era uma gravação em mono de 1951, conduzida pelo lendário regente alemão Wilhelm Furtwängler (1886-1954) durante o tradicional Festival de Bayreuth (Bayreuther Festspiele), na Alemanha – ou seja, os 60 minutos propostos inicialmente não suportariam a sinfonia completa. Foi decidido, assim, que o ideal seria 74 minutos com 12 centímetros, para que a Nona Sinfonia coubesse num único CD.

Esse exemplo ilustra bem o poder e prestígio da Nona Sinfonia no mundo da música, e cultural de forma geral, cujo impacto foi revolucionário desde a sua estreia em 7 de maio de 1824, no Teatro de Kärntnertor (Kärntnertortheater), em Viena, na Áustria – onde hoje se encontra o Hotel Sacher – famoso internacionalmente pela saborosa torta que leva o seu nome.

Um dos maiores ícones da música ocidental, a Nona Sinfonia continua sendo um colosso, parâmetro para todas as sinfonias subsequentes. Tendo a princípio planejado musicar em 1793 o poema intitulado Ode à alegria, escrito pelo poeta, filósofo, médico e historiador alemão Friedrich Schiller (1759-1805), seu colega de maçonaria, Beethoven acabou sendo contratado para escrever a obra em 1817 pela London Philharmonic Society, atual Royal Philharmonic Society. O mestre começou a trabalhar nela no ano seguinte, mas só a terminou somente no início de 1824, doze anos depois de sua sinfonia anterior.

O desenvolvimento da Nona Sinfonia é de tal forma orgânico, que sempre desejamos ouvi-la desde o início, sem interrupções, apesar de sua longa duração – era a maior sinfonia composta até então. No seu primeiro movimento, chamado de Allegro ma non troppo, un poco majestoso, terminologia que indica o seu andamento (velocidade) e significa Alegre mas não tanto, um pouco majestoso, é introduzido, após uma abertura misteriosa, um estilo impetuoso e sombrio de sonata, que envolve a exposição de um tema, o seu desenvolvimento e a sua reexposição. Entre muitas surpresas percebidas, temos a repetição do termo fortissimo dos compassos de abertura em tom maior na recapitulação:

Na segunda parte (Molto vivace, ou Muito vivo), Beethoven cria um movimento em grande escala a partir de material econômico e pujante. Depois de experimentar o efeito dos tímpanos no seu magnífico concerto para violino e no quinto concerto para piano, conhecido como Imperador, aqui ele confere a eles um papel maior, como podemos perceber desde o início do movimento:

O sublime Adagio molto e cantabile (Muito lento e cantável) do terceiro movimento da Nona Sinfonia consiste, na verdade, de duas séries de variações sobre dois temas alternados. É um dos momentos mais paradisíacos de toda a obra de Beethoven. Duas suspensões inesperadas para a então nova trompa com válvulas surgem perto do fim:

Finalmente, no quarto e último movimento, chamado de Presto, allegro (Rápido, alegre), fragmentos de movimentos anteriores são percebidos antes dos instrumentos, e depois vozes, entoarem a Ode à alegria de Schiller, celebrando a fraternidade universal. Foi a primeira vez que um compositor utilizou a voz humana com o mesmo destaque que a dos instrumentos numa sinfonia, criando assim uma obra de grande alcance, o que deu o tom para a forma sinfônica que viria a ser adotada pelos compositores românticos. A obra é concluída com grande júbilo, num raro momento de expressão de alegria na música de Beethoven:

A introdução para a parte vocal da sinfonia causou diversas dificuldades para Beethoven. Anton Schindler (1795-1864), amigo e primeiro biógrafo do compositor, disse posteriormente: “Quando ele começou a trabalhar no quarto movimento, a batalha recomeçou, mais intensa do que nunca. Sua meta era a de encontrar uma maneira apropriada de introduzir a ode de Schiller. Um dia ele [Beethoven] entrou na sala gritando: ‘Consegui, consegui!’”. No entanto, Beethoven ainda passou muito tempo reescrevendo essa parte até que ela atingisse a forma conhecida atualmente.

Acho oportuno, por sua importância única na história, e naturalmente pela beleza da poesia, trazer a tradução para português do texto musicado por Beethoven na Nona Sinfonia – a Ode à alegria (originalmente Ode an die Freude) de Schiller:

 

Ó amigos, não esses sons!

Ao invés, cantemos algo mais agradável

e cheio de alegria!

 

Alegria, bela centelha divina

filha do Elísio (paraíso),

Ébrios de fogo, nós entramos

em teu celestial santuário!

Tua magia reúne novamente

o que o costume rigorosamente dividiu;

Todos os homens serão irmãos,

onde tuas suaves asas repousam.

 

Aquele que conseguiu o grande lance

de ser amigo de um amigo;

Aquele que conquistou uma nobre mulher,

Deixem-no juntar-se ao nosso júbilo!

Sim, e também aquele que chame de sua

Apenas uma só alma no mundo.

Mas aquele que não conseguiu isso,

Deixem-no chorando sozinho.

 

Todas as criaturas bebem alegria

no seio da natureza;

Todos os bons, todos os maus,

seguem seu rastro de rosas.

Beijos ela nos deu, e vinho,

e um amigo fiel até a morte;

Ao verme foi dado desejo,

E o anjo está diante de Deus.

 

Alegre, como seus sóis voam

através do glorioso plano celeste,

Correi, irmãos, por vossos caminhos,

Alegres, como um herói para a vitória.

 

Sede abraçados, milhões!

Este beijo para todo o mundo!

Irmãos, acima das estrelas do céu

deve um bondoso Pai morar.

Vós estais prostrados, milhões?

Sentes teu Criador, mundo?

Procure-O acima das estrelas do céu,

Acima das estrelas Ele deve morar.

 

Neste poema, Schiller expressa uma visão idealista da raça humana como irmandade, uma visão que tanto ele como Beethoven partilhavam. Em 1972, a Nona de Beethoven foi oficialmente adotada pelo Conselho da Europa. Geralmente é tocada sem letra, pois a música é uma linguagem universal e per se obtém o mesmo efeito de como se fosse cantada, expressando os ideais de liberdade, paz e solidariedade. Em 1985, a União Europeia adotou o mesmo hino, sendo ela a sucessora do Conselho da Europa.

A Nona Sinfonia tem um papel cultural de extrema relevância no mundo atual. Uma evidência de sua importância foi o valor de 3,3 milhões de dólares atingido pela venda de um dos seus manuscritos originais, feita em 2003 pela Sotheby’s, de Londres. Segundo o chefe do departamento de manuscritos da Sotheby’s à época, Stephen Roe, a Nona Sinfonia “é um dos maiores feitos do homem, ao lado do Hamlet e do Rei Lear de Shakespeare”.

Uma curiosidade sobre a melodia mais conhecida da Nona Sinfonia é que o seu início já aparecia numa peça religiosa do célebre compositor austríaco, e ídolo de Beethoven, Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) intitulada Misericordias Domini, em Ré menor, que havia sido composta no início de 1775, em Munique – como podemos conferir a partir do minuto 00:54 do vídeo a seguir:

Aos 52 anos, em 1823, quando se dedicava à composição da Nona Sinfonia, Beethoven já estava completamente surdo. Os visitantes se entediam com ele apenas através de cadernos de conversação nos quais escreviam suas perguntas e comunicados. No entanto, Beethoven teimava em reger ele próprio a estreia. O verdadeiro maestro foi colocado fora do seu campo visual – para ele ter a sensação de que estava regendo. Quando ao final, eclodia o aplauso entusiasmado, uma das cantoras solistas precisou virá-lo discretamente para o público, para que ele percebesse o entusiasmo com o qual “os vienenses recebiam aquela obra grandiosa, de pé, agitando os chapéus”.

Menos de três anos após a estreia da Nona Sinfonia, Beethoven escreveu seu último bilhete: Plaudite amici, comoedia finita est. (“Aplaudam, amigos, o espetáculo acabou.”). Quatro dias depois deste anúncio, em 26 de março de 1827, Ludwig van Beethoven morreu após uma luta implacável contra a morte, enquanto um temporal varria Viena. Três dias depois, 20 mil vienenses fizeram um grandioso funeral. As oito maiores personalidades da música de Viena, entre elas Franz Schubert (1797-1828), carregaram o caixão de Beethoven, acompanhadas de 36 carregadores de tochas. Todas as escolas de Viena ficaram fechadas naquele dia.

Primeiro compositor a estabelecer uma carreira freelance desde o início, a recusa de Beethoven a ser subserviente a seus patronos aristocráticos marcou a mudança do papel do músico, que passou de criado a árbitro cultural autônomo, criando assim um modelo seguido por todos os músicos clássicos posteriores.

Nesses tempos em que o flagelo da guerra ainda assola vários recantos do mundo e a violência impera nos nossos centros urbanos, entre atentados terroristas, agressões preconceituosas e ameaças de bombas nucleares, que a Nona Sinfonia seja uma inspiração para disseminar o sentimento de fraternidade na humanidade, espírito que inspirou Beethoven na sua composição.