Fernando Dourado

Estradas da Romênia.

I

No carro, lado a lado nos bancos dianteiros

 

“O senhor não perguntou, mas eu vou dizer: A empresa dona desta van faz transporte VIP desde Tessalônica, na Grécia, até Viena”

São pontos bem extremos

“Tem semana que eu começo em Budapeste, vou à Grécia e termino na Áustria”

É mais um lado bom da juventude

“Viajo até 22 dias por mês, mas ganho pouco. Adivinhe quanto”

Não sei, amigo. Se eu cochilar, desculpe os roncos

“Tudo bem, estou acostumado. Só uma pergunta: onde o senhor aprendeu tão bem o alemão?”

“Quando era mais novo do que você, na Alemanha. E você?”

“Vivi perto de Stuttgart quase dois anos. Trabalhava com um primo. Com mais um tempo, legalizaria minha situação. Mas aí tudo deu errado”

Fiscalização?

“Não. Me apaixonei por uma prima de Novi Sad que passou uns dias com a gente. Então voltei para a Sérvia”

Deve ter tido o lado bom

“Sim, talvez o de ter ficado com minha mãe uns meses antes de ela aparecer doente. O resto foi, desculpe a palavra, uma merda”

Não há porque pedir desculpa. Até Merkel diz merda todo dia

“Pois é, a minha namorada tinha outro. Até gostava de mim, mas aqui perdi meu charme. Virei só mais um pobretão no meio de outros pobretões”

Outras mulheres virão.

“Já vieram e já foram. Posso chamar o senhor de você. Pra mim, é mais fácil. Nunca me acostumei ao Sie, uso melhor o Du

Selbstverständlich

“Obrigado. O outro passageiro que vinha de Timisoara com você terminou cancelando. Perdeu o voo em Treviso com a mulher. Seremos só nós dois”

Perder avião é um saco. Haja multa

“Conhecia já a Romênia, não é?”

Sim, vim outras vezes

“Mas não Timisoara?”

Não Timisoara. Só Bucareste. Gostei muito de conhecê-la. Foi onde Ceausescu começou a cair

“Gosta de política, não é?”

Já gostei mais

“Para nós sérvios a política é uma dor de cabeça”

Entendo

“É justo para você que a Romênia seja Europa e nós não?”

Não sei se é uma questão de justiça. É uma questão de política. E talvez de cultura

“Eles são mais cultos do que a gente?”

Não disse isso. Eles são mais europeus, mais ocidentais. Vocês são eslavos, ortodoxos, estão próximos dos russos. É só uma possibilidade.

“Pode ser. Feito os croatas, que sempre foram fascistas. Mataram muita gente na Segunda Guerra. E mais de um milhão de sérvios”

Tja

“Meu irmão me contou, meu pai também”

São números terríveis

“Eu sei. Quantos países você já visitou?”

Perdi a conta. Com a minha idade, você também terá visto um bocado

“Não tenho certeza. Quais os melhores?”

Impossível responder

“E os piores?”

A Nigéria e mais uns cinco

“Onde come-se melhor? Na Romênia ou na Sérvia? Você parece comer bem”

Romênia, de longe. Desculpe dizer

“Todo mundo diz isso. E as onde estão as mulheres mais bonitas?”

Aqui há uma leve vantagem para a Sérvia

“Todo mundo também diz isso. Você precisa de visto para entrar na Sérvia?”

Não, para nenhum país europeu.

“‘Mas nós não somos Europa. Você mesmo disse”

Vocês não souberam ser…até agora. Mas talvez o momento chegue

“É bom viver no Brasil?”

Sim, entre abril e outubro

“No verão?”

Não, o contrário. Para nós vai da primavera ao outono

“Verdade, verdade, é o contrário. Quer dizer que gosta de frio?”

Muito

“Qual sua classe social?”

Como assim?

“A,B,C,D…”

Entre B- e C+

“Não acredito. Mas as pessoas aqui teriam vergonhar de dizer que são C. Não importa se mais ou menos. No máximo dizem B”

Tem gente que acha mais fácil ser pobre do que admitir ser pobre. Dinheiro vai e vem, é uma bobagem

“Quanto tempo fica em Belgrado?”

Um par de dias

“Pena. Podia lhe apresentar a alguém”

Quem?

“Um amigo que é personal trainer e nutricionista. Se quisesse, ele podia dar dicas para perder peso”

Fica para a próxima vez

“Teria tempo amanhã?”

Zero. Nem para coisa boa.

“Tem filhos?”

Quanto tempo falta para a fronteira?

“Meia hora. Vou parar logo mais para um cigarro e preencher o formulário do carro”

OK

“Dizem que falo muito. Mas na minha profissão é normal. Melhor do que dormir no volante”

Continue falando

“O Brasil é uma democracia?”

Sim

“Você acredita em democracia?”

É o jeito. Com entusiasmo muito brando. Ainda vão achar uma alternativa

“Você parece VIP. A gente reconhece quem é e quem não é”

Como é um VIP?

“Confiante, não tem medo de dizer o que acha e é perfumado”

Dessa vez você errou. Mas o perfume é CK One, da Calvin Klein

“Você não ri, mas é brincalhão. Quando penso no Brasil, penso num grande coração”.

Eu penso num fígado inchado

“Você é meu melhor passageiro de 2020”

Hum, está sendo um ano ruim então

“Isso também é verdade”

Aguente firme que melhora. Uma boa passageira pode mudar sua vida

“Como assim?”

Quando acontecer, você vai lembrar de mim

“A gente não pode levar passageiras para a cama”

A vida é mágica

 

II

 

Na despedida, à porta do hotel 

 

“Aqui está sua mala. Já vai subir para o quarto?”

Acho que sim

“Posso convidá-lo para um café ou uma cerveja? Pode ser aqui mesmo”

É gentil de sua parte, mas preciso subir

“É que eu queria perguntar umas coisas, você parece experiente”

Vamos lá, vou tomar só uma cerveja, mas às 5 horas preciso subir

“Temos dez minutos, já é alguma coisa”

Pode dizer

“Vou ser direto. Você já matou alguém?”

Não, não matei

“OK, era isso o que eu queria saber. Talvez não possa me ajudar”

Agora você vai falar. Se eu tivesse dito que sim, o que você diria?

“Aí eu me sentiria melhor. Serei sincero. Eu já matei alguém”

Acidente?

“Não. Não, não”

Foi para se defender?

“Sim e não. Era um homem mau”

Bem, já passou, não é?

“Foi na Alemanha. Ele ofendeu minha mãe. Ou pelo menos eu achei”

Estavam bêbados?

“Só ele, eu não”

Arrependimento?

“Não especialmente. Mas não posso voltar à Alemanha, seria loucura”

Por isso que saiu de lá?

“Sim, e a namorada soube”

Talvez foi por isso que te deixou

“Ajudou, sim. Estou pensando em me entregar lá. O que acha?”

Não tenho como entrar na tua cabeça ou coração. A prisão deve ser horrível

“Eu matei por pura inveja. A raiva me subiu à cabeça”

Do que pode um cara jovem como você ter inveja?

“Da mulher dele, do carro, do ar de felicidade. Então embriaguei-o”

Não sou advogado. Não sou padre. Não sou psiquiatra.

“Mas é vivido e confiável. Acho que minha vida está destruída. Teria que recomeçar do zero”

Destruída está a do cara que você eliminou

“Acho que guardamos muito ódio aqui nessa parte do mundo. Então levei um pouco dele comigo”

Qual é a pior hora?

“Quando vou dormir. Vem tudo de volta, ele me olhando, levantando um brinde”

E?

“Perdi o controle, a raiva tomou conta de mim. Foi insano”

Quem sabe disso?

“A coisa transpirou na colônia sérvia de Stuttgart. mas ninguém descobriu a verdade”

Que verdade?

“Foi ela, a mulher dele, que me pediu para matá-lo”

O que é feito dela?

“Ela casou dia desses. Tivemos também um envolvimento”

Já caiu na boca de muita gente. Paciência. Se me permite agora…

“Eu acho que vou me matar”

Não diga bobagem

“Será essa semana. Só o tempo de gastar o dinheiro que me resta”

Se é para se matar, melhor ir ao consulado e se entregar lá. O crime ainda deve repercutir

“Estraguei a vida, todas as saídas são ruins”

Medique-se, trate-se

“Como é possível, se não posso dizer isso a alguém?”

Nada é pior do que ficar como você está. Você está deprimido

“Fecho os olhos e o vejo olhar para mim como se eu estivesse brincando”

Foi nessa hora que…

“Bati-lhe a cabeça com um martelo. Os olhos reviraram”

Preciso ir. Até logo e boa sorte.

“Meu irmão também matou na guerra. Meu pai também. Muitos até”

Na guerra talvez seja diferente. Não deveria ser, mas é

“É o que acho”

Fique com meu e-mail

“Se eu escrever, você responde?”

Esteja certo de que sim

“Obrigado. Auf Wiedersehen