Se esse diário fosse postado em tempo real, os leitores poderiam ficar sabendo antes da TV e das redes sociais e sobretudo dos jornais escritos (nos quais as notícias são da véspera). Ficariam sabendo que quando voltei da caminhada, às 6:30 da manhã, acabara de cair um helicóptero da Globosat. Ao lerem esta crônica, vocês já terão sabido detalhes do acidente, que eu, por não ver TV nem ter facebook nem ler redes sociais (com exceção da Revista Será?), não vou saber. Para que? Vivo numa ilha, alienada desse mundo em guerra que acontece fora de minha fortaleza no sétimo andar do Edifício Maria Vitória.
Quem me deu primeiro a notícia foi seu Elias, que já estava acordado. Fui até a praia (com o mar cheio, caminhei hoje pelo calçadão e não na areia) para ver mais de perto. Antes mesmo do bom dia de seu Elias, já havia sentido um reboliço no ar. Vi um caminhão de bombeiro passar na avenida. Da praia, avistei, ao longe, um amontoado de gente no limite do Pina com Brasília Teimosa. O porteiro da noite, Jameson, completou a notícia quando entrei no prédio. “Ouvi o barulho, doutora. Um barulho forte de coisa pesada caindo na água. Até agora não deu ainda na televisão.” “Como o senhor soube?”. “Um morador que chegou pouco antes da senhora.”
Hoje é o segundo dia em que caminho na chuva. Na crônica passada me atrapalhei no terceiro parágrafo, quando me referia aos três medos dos recifenses: tubarão, chuva, ladrão. Na verdade, não tenho medo de tubarão nas areias rasas da praia do Pina e no Buraco da Velha (uma espécie de piscinão que se forma entre os arrecifes e a beira mar), onde meu corpo goza o sabor salgado das águas de Iemanjá. Nem da chuva, estando na minha fortaleza ou caminhando nessa época do ano. No trânsito, é insuportável, com a cidade inviável para pedestres e automóveis. E assaltante, na minha única experiência, consegui negociar e não perdi nada. Na dúvida, ando sempre com pelo menos duzentos reais no bolso. Já me disseram que estou inflacionando o mercado.
Mas hoje meu tema é a chuva. Pela segunda vez, deixei meu corpo receber os pingos de água mais ou menos pura das nuvens carregadas. Saí de casa sem sol, mas ainda estiado. Poucos caminhantes. Mais corredores. Quando a chuva principia, os caminhantes amparam-se nas barracas de coco. Minha vizinha de prédio, um que está condenado a desaparecer junto com o outro caixotinho ao lado, cruzou comigo amparada em uma sombrinha. “A chuva hoje não quer que a gente caminhe, não é Teresa?”
Não sei se encontraria esse quadro em outra cidade: pessoas caminhando em exercício ou andando de bicicleta por motivo de trabalho com uma sombrinha armada. Imagine se nevasse.
Na neve, cheguei a ver alguns caminhantes bem abrigados, mas sem agasalhos apropriados para o frio, e sim para caminhada. Assim como aqui, eram mais corredores do que caminhantes. Saíam de casa tendo visto a previsão do tempo com a precisão do serviço de meteorologia de lá, sabendo que os lindos capuchos de algodão frio tocariam seu corpo, molhariam sua roupa, porém, o corpo em movimento aqueceria o desconforto, transformando-o, pelo milagre da endorfina, em prazer.
Imagine a chuva do Recife… A bendita chuva do quente verão de janeiro e fevereiro. No sábado do desfile do Gado da Madrugada, caminhões pipa, a mando da prefeitura, espalham fortes jatos de água na multidão suada, que agradece o brinde.
Além disso, caminhar na chuva é um prazer menino. Quem, na infância, não gostava de pular embaixo da chuva de roupa e tudo, muitas vezes à revelia dos pais? O medo do trovão, do relâmpago. “Sai daí menina, um raio pode cair no meio de tua cabeça”. E contavam-se histórias de raios que derrubam árvores, que matam pessoas, animais.
Não é o caso da chuvinha besta que me molhou hoje cedo. Cheguei inteiramente encharcada ao ponto final da caminhada. A única mudança é que voltei para fazer em casa os alongamentos e cheguei mais cedo, a tempo de pegar o primeiro flagrante da queda do helicóptero. Não deu tempo de secar a roupa ao relento, como há uns dias. Mesmo assim, já havia estiado e o sol, acanhado, ameaçava aparecer.
Agora, minha amiga, meu amigo, se você estiver dirigindo seu carro pelas ruas e avenidas da cidade, com bocas de lobo entupidas pela falta de educação do povo que joga lixo na rua, aí sim, é perigoso andar na chuva. E seria tão factível resolver isso. Vou dar um conselhinho simples ao senhor prefeito, ao secretário de mobilidade, que generosamente me deixou assistir a uma pequena mostra de seu labor diário nessa cidade impossível. Comece pelo lixo. Já houve tempo em que a prefeitura obrigou os barraqueiros que montam seus restaurantes à beira mar, a terem um lixinho junto às cadeiras e mesinhas. Relaxou. Pelo menos aqui na área que frequento, o Pina. Talvez exista lá onde uma universidade privada faz parceria com a prefeitura fornecendo material bom, sombrinhas novas e de coloridos lindos, cadeiras confortáveis.
Conheci, na reunião da prefeitura, um jovem vestido como se fosse um superman: forte, musculoso, um dos que fazem “as vistas e os ouvidos do rei”, atento ao bom cumprimento da posse concedida para cada comerciante, com a demarcação de seu espaço territorial, que nunca poderá comprometer os corredores de chegada e saída dos banhistas entre o calçadão e a praia. Ele certamente ficará mais do lado de Boa Viagem. Sou frequentadora assídua e nunca o avistei, com suas roupas espalhafatosas, aqui na área do Pina.
Pois é justamente aqui que mais precisa. Há alguns dias, vi na barraca de praia vizinha à minha, uma fralda usada, embrulhada nela mesma. Estávamos em frente ao Buraco da Velha, onde é até mais fácil o controle: são restaurantes em lugares fixos que servem às mesas, e não os restaurantes ambulantes trazidos diariamente à praia pelas carroças movidas à tração humana. Os dois homens da barraca me disseram, meio envergonhados, que já a haviam encontrado ali aquele embrulhinho. Sem palavras, levei-o para o lixo do restaurante.
Uma multa a cada barraca sem lixo. O superman e seus auxiliares, sem aviso prévio, passando e avisando às pessoas o quão melhor é tomar banho numa praia limpa. E multando sem dó nem piedade os donos dos restaurantes por cada mesa sem lixeira.
Água parada que cria muriçoca. Lixo nas ruas. Duas mazelas urbanas que não poupa nenhuma área da cidade. Mostrando os benefícios, num trabalho educativo sério e cotidiano, usando a televisão e as multas (estas, quando for o caso), consegue-se. É uma questão de prioridade. Só que a prioridade, nessa quadra do ano, são os recursos para as eleições. E tome-lhe obras na orla de Boa Viagem, pois, estas sim, dão o troco necessário para as campanhas eleitorais.
Salve a chuva benfazeja, que, entremeada pelos dias de sol, faz tanto bem às pessoas, às plantas, aos animais. O problema não é a chuva. O fetiche, que Marx viu tão certeiro para a mercadoria, também se aplica à chuva.
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