Fernando Dourado

“Casinha de Dr. Ivan”, Na Praça Souto Filho Nº 71, Garanhuns, Pernambuco.

Essas reflexões são dedicadas a tio Ivan, um intrépido Quixote a seu modo. Se ao cavaleiro errante da Mancha, coube fabular um amor imaginário por Dulcinea del Toboso, a ele tocou viver um amor de verdade com minha tia Dulce. 

As lembranças que tenho associadas à minha tia Dulce, irmã mais velha de mamãe e falecida no último domingo, estão invariavelmente ligadas aos lugares onde ela morou. Tanto quanto esse detalhe, elas se confundem com a peculiar forma que ela tinha de celebrar a sacralidade dos ritos domésticos com que aconchegava a família. É, pois, com essas duas vertentes que gostaria de abrir as reflexões sobre a mulher que ela foi. Encastelada em deliciosas idiossincrasias – “o que faz mal no cigarro é o filtro“, filtro este que ela arrancava antes de acender o Continental; “homem depois dos 40, tem que urinar sentado“, mantra que dizia de sua obsessão pela assepsia em seus domínios; “é mentira que não tem prostituta em Cuba. Tem e muita, que eu vi“, próprio de quem tinha horror que lhe subestimassem a inteligência; “fique tranquilo que já conversei com Santo Antônio e ele me jurou que vai ajudar“, síntese que dava conta de sua intimidade com o padroeiro de devoção; “não adianta discutir com Ivan, ele sabe tudo. A gente está indo e ele já está voltando, meu filho“, fórmula que dizia bastante do amor dos amores, da crônica de uma admiração sem fim pelo marido, que, a seu turno, dela fez a mais feliz das mulheres -, daí pergunto-me: por onde começar, se é que já não comecei?

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A primeira reminiscência que tenho de tia Dulce, e sobre essa cena não tenho grande dúvida, data da manhã de 26 de fevereiro de 1961, na rua Dr. José Mariano, 122 – também dita rua do Recife -, em Garanhuns, Pernambuco. Neste dia, mamãe entrara em trabalho de parto. A poucas semanas de completar 3 anos de idade, lembro que a casa de meu avô estava estranhamente movimentada. Pois eis que no segundo quarto à direita, no sentido de quem saía da sala de visitas em direção à escadaria que, por sua vez, levava à carvoaria e ao quintal, mais precisamente no cômodo que se debruçava sobre o pequeno jardim murado onde brotavam mimosas, margaridas e miosótis azuis, mamãe acabara de dar à luz a José Maria. E, por razões que não devem ser difíceis de entender, ali estava eu, vestido com apuro, de bota branca e bengala, à espreita da ilustre visita da cegonha, embora estivesse tomado de estranha apreensão. Apesar de não poder nomear os elementos olfativos, saberia mais adiante que aqueles cheiros nauseantes eram de clorofórmio, mercúrio, esparadrapo e éter. E ainda hoje, se calhar de deambular pelo corredor de um hospital, é a imagem daquela manhã que virá à baila, como se eu fosse então uma pequena esponja a capturar tudo o que pudesse ameaçar o reinado de filho único, e não só ele.

Do alarido de vozes que vinha do quarto, assomou então minha tia Dulce com a criança recém-nascida, que trouxe para minha apreciação. “Olha aqui seu irmãozinho, Fernandinho”. Minha expressão, ao que tudo indicou, foi de pura perplexidade, para não falar de decepção. Minha expectativa era a de que meu irmão ou irmã seria uma criança bochechuda e divertida, como aquela que ilustrava a capa do livro “A vida do bebê”, de Dr. Rinaldo De Lamare. Mas o que me chamou a atenção em seus braços, foi a tez arroxeada e a expressão de desespero de um nenê que pouco parecia ter de humano. Saído há minutos de uma longa temporada uterina, de que sempre pareceu guardar saudades, os olhinhos rasgados pareciam se recusar a ver o mundo. Exigente e caprichoso, não medi palavras para dizer de meu desapontamento. “Que feio, tia Dulce, ele é roxo e engelhado, não gostei”. Fiel a seu estilo direto, que muitos davam como incisivo, ela continuou a embalá-lo, enquanto repreendia minha conduta de menino mimado e, provavelmente, enciumado. “Pois saiba que ele é muito bonitinho viu, seu cabra. E você vai gostar dele, sim”. Pelas próximas décadas, nunca me saiu da cabeça que tia Dulce tinha uma preferência assumida por meu irmão, a quem chamaria a vida toda de Babá.

A vida começava. Foi só muito mais tarde que percebi que a tal preferência, se é que se pode colocar nesses termos, decorria tão somente de um fato singelo, inerente à sua natureza acolhedora. No credo de minha tia Dulce, os mais frágeis haveriam sempre de lhe inspirar cuidados. Como eu era tido e havido como o xodó de meu pai, de quem trazia o nome, era normal que ela derramasse sua doçura sobre Zé Maria, um menino simples, algo galhofeiro e despojado, de feitio bem diferente do primogênito ensimesmado. Fosse como fosse, já no ano seguinte, foi na casa dela e de tio Ivan que eu e minhas primas celebramos o aniversário de nossos 4 anos. Sendo eu de 29 de março, as primas gêmeas do dia 26, e meu primo Zé Ivan do dia 27, lembro de um enorme bolo confeitado. Sobre ele, reinava um pierrô de gola rendada e chapéu em cone. Ou seria um coelhinho branco da Páscoa? Sopramos as velas todos ao mesmo tempo e saímos para brincar ao pé do imenso pinheiro que ficava no jardim da frente daquela casa em que eu próprio viera ao mundo, pela mãos de Dr. Otoniel. Sobre o gramado, dependurada no varal, balançava uma panela de barro cheia de balas e pirulitos. Um convidado de olhos vendados, tentava acertá-la com um cabo de vassoura. Éramos pura alegria à espera da vez de tentar a sorte.

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O que mais trago daquela casa mítica, ainda hoje hígida? Certa manhã, estive lá com mamãe e os meninos estavam na escola. Sempre atarefada, fecho os olhos e vejo tia Dulce a debulhar ervilha, sentada na pequena varanda que ficava nos fundos. Logo adiante, no chão irregular do quintal, pontificava a bateria de pitangueiras cravejadas de pontinhos vermelhos. Bem ao lado, um pé de pimenta em que não deveríamos tocar. Se tocássemos por descuido, que não coçássemos os olhos na sequência. Ali, impunha-se também respeito pelos espaços, pois havia os permitidos e os proibidos. Na primeira categoria, incluía-se afagar Kitty, a cadela Collie de meus primos, evitando irritar seu focinho pontudo ou repuxar os pelos bem cuidados. Na categoria dos prazeres interditados, nenhum era tão sensível quanto ir ao quarto de brinquedos, um cômodo situado no fundo do quintal, ao lado dos domínios do caseiro Cícero e de sua mulher Vicentina. A pedidos, podíamos ver as peças, desde que não as tirássemos do lugar. Lembro do imenso peão que emitia luz quando friccionado, de carrinhos de pedal já obsoletos porque meus primos tinham crescido, e de uma certa simetria na disposição dos objetos. O que tinha para Pedro, valia para Zé Ivan.

A crer nos comentários, o caseiro Cícero – um tipo agalegado e desdentado – era dado a beber, o que lhe valia repreensões severas de tia Dulce que sabia ser dura na hora de defender um casamento. Assim sendo, era provavelmente a maior aliada da tristonha Vicentina. Sei que tinham filhos, mas deles não tenho grande lembrança, salvo a de que o mais velho contraíra uma certa “doença de olhos”. Rezava a lenda que era da figueira que ficava lá atrás que tia Dulce tirava as folhas úmidas com que amaciava a carne de sol que servia a tio Ivan. Do quintal, também saíam os sapotis aromáticos, os morangos sumarentos e certamente me engano ao lhe atribuir uma latada de chuchu, pois esta combinava mais com o quintal da casa de vovô. Mesmo assim, vejo uma contígua ao muro do casal vizinho, Zito e Magda Branco. Certo mesmo é que aquela casa parecia encerrar a equação de certa autossuficiência alimentar, caso feiras e supermercados deixassem de existir. Muito mais tarde, quando já morava no Recife, o espaço de sua cozinha continuou a ser sagrado e quase inviolável. Tia Dulce nunca aceitou empregada ou cozinheira. Isso porque parecia ser em seu tempero, e naquelas cabalas gustativas que aplicava às receitas autorais, que mantinha meu tio enfeitiçado pelos sortilégios de um amor sem limite.

Nesse contexto, tão ciosa era tia Dulce da integridade de seus espaços que não posso me furtar a contar a história de Dida. Filha da Comadre, uma negra bondosa que nos visitava em dias de feira e também mãe de uma menina arteira chamada Nova, Dida saiu de um sítio próximo a Garanhuns para vir ajudá-la no edifício Capibaribe, no 13º andar do bloco B, onde a família viera morar. Percebendo que a mocinha era nada afeita às maldades da vida urbana, instruiu-a a não abrir a porta por hipótese alguma, mesmo que identificasse do outro lado a voz da própria mãe. Caricaturar as situações e magnificá-las era um artifício pedagógico de que gostava. Pois bem, atônita diante dos comandos de torneiras e válvulas, Dida se perdeu no nó hidráulico a ponto tal que a água começou a transbordar de todas as pias. Avisado da cachoeira que se formava escada abaixo, seu Nogueira, o zelador, invocou todos os santos para que ela abrisse a porta e o deixasse salvar as alcatifas e estancar os jorros. Mas ela permaneceu irredutível. A reação de tia Dulce à observância à sua ortodoxia doméstica desencadeou sentimentos dúbios. Como não louvar a obediência a seu comando? E como desculpar aquela criatura tosca e apavorada pelo estrago que levou vizinhos a colocar rolos de pano sob as portas?

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Se tivesse que apontar o período mais intenso de nosso convívio, diria que foi na virada dos anos 1960-1970, quando apenas 3 andares nos separavam no edifício da rua da Aurora. Era à casa de tio Ivan que eu gostava de ir depois do jantar. Ali, deitado sob a mesa, víamos televisão em preto e branco e eu ouvia os maiores comentarem o noticiário em que o Vietnã era palavra recorrente. Ali também veria Beto Rockfeller e os festivais. Como todo mundo, emocionei-me quando Jair Rodrigues cantou “Disparada” e vi a discussão instaurada quando Elis Regina, obedecendo a uma instrução do bailarino Lenny Dale, levantou os braços ao cantar “Arrastão” e começou a fazer no seco os movimentos que fazíamos ao nadar de costas. Com a louça limpa e a casa asseada, tínhamos direito a um sanduíche e a um copo de suco gelado, provindo das polpas aromáticas que tia Dulce trazia do quintal de Garanhuns, acondicionadas em saquinhos plásticos no freezer. No entardecer, não era raro vê-la descansado no sofá da sala daquele apartamento de paredes de cores vivas. Ali, comprazia-se em ler fotonovelas Grande Hotel, mordiscar um pedaço de chocolate – cujo “pulo do gato” era ser guardado no congelador para que derretesse devagarzinho na boca -, e receber a manicure Edite para fazer mãos e pés.

Assim sendo, numa das vindas de tia Lígia ao Recife, elas saíram para as compras no centro da cidade. No meio da ponte da Boa Vista, uma surpresa. Tia Dulce tropeçou em alguma coisa e, ato contínuo, foi ao chão. Diante da cena que deve ter tido um toque pastelão, tia Lígia tentou ajudá-la a levantar-se, mas a verdade é que mal continha a vontade de rir. Quedas não são tão graves aos 30 anos quanto podem ser aos 60. Inconformada com a irreverência despiedada da irmã, mas entendendo também o lado patético da cena, ela desatou a rir e a chorar ao mesmo tempo, mecanismo que era uma marca registrada sua, traço de que há de ter deixado vestígios nas gerações seguintes. Ainda no edifício Capibaribe, foi ela quem me salvou de meu capítulo mais agônico. Tendo ficado muito sob o sol, a pele branca estava em carne viva e começou a pinicar a um ponto insuportável. Ora, nas horas em que o verbo acudir virava urgência, não havia páreo para tia Dulce. Mandou que eu tirasse a roupa, pegou dois ovos na porta da geladeira, quebrou-os num prato fundo, preservou as gemas, e besuntou de clara fria minhas costas ardidas. O alívio foi instantâneo e a expressão de contentamento dela, intraduzível. “Chegou aqui dançando coco e está saindo inteiro, não é?” E lá vinha um copo de suco de cajá para hidratar.

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Um dia meus tios e primos foram morar em Boa Viagem. Paulatinamente, também naquela época, comecei a deixar o Recife para trás. Mesmo assim, as visitas continuavam. Inimiga dos ventos do mar, igual a mamãe, eu não entendia porque as portas da varanda ficavam sempre fechadas. De resto, era tudo igual: os quitutes, os cuidados e a conversa animada sobre as novidades. Quando meu pai cometia seus proverbiais excessos e minha mãe resolvia castigá-lo de alguma forma, era tia Dulce que intercedia em favor do cunhado: “O pobre, Lucy”, pronunciado o nome da irmã à moda americana, como faziam as demais, ignorando o oxítono. Com aquela expressão e o ar de ternura, parecia querer dizer que ele não merecia tamanha provação; que tivera infância dura, mas que no fundo era uma boa alma. Mamãe então reiterava que precisava dar um freio de arrumação, sob pena de papai querer reduzi-la à figura apática de uma cunhada que vivia à mercê dos caprichos do marido intimorato. Nessas horas, entendia porque meu pai recriminava mamãe por não se parecer um pouco com a irmã mais velha. “Dulce é Dulce e eu sou eu. A gente não combina em tudo, mas saiba que era de mim que papai gostava”, hipótese esta de que tia Dulce desconfiava. Ela sempre gostou de se sentir querida.

Não sei bem quanto tempo transcorreu até que meus primos saíssem de casa. Mas mesmo com a chegada dos netos, o casal pareceu reatar com a vida simbiótica que lhe era natural. Entre os domicílios de Boa Viagem, Garanhuns, e também de uma casa de praia onde nunca fui no litoral sul, tia Dulce estava sempre a postos para encarar a estrada. De óculos escuros e uma frasqueira a tiracolo onde se achava de tudo – de Engov a secador de cabelo – , lá se iam os dois para Arcoverde com a naturalidade de quem ia à esquina. De lá, esticavam até Garanhuns para o pernoite, e que ninguém se espantasse se de Palmares tivessem ido a Maceió. “Quanta energia”, papai suspirava. “Será que Peteleco não sente falta de casa?”, dizia do primo que chamava pelo apelido quando conosco. De festas de Carnaval, evento que adorava, lembro de tia Dulce com confete no cabelo, macacão verde e uma dose de Campari com gelo, sua bebida por excelência desde sempre. Como as irmãs, no terreno das preferências, sempre gostou mais de gato do que de cachorro e, como elas, passou a vida falando de um certo Alfeu, um bichano pedrês que viveu suas 7 vidas com elas. Como as irmãs, também esbaldava-se de rir ao rememorar o macaco serelepe que roubou o cachimbo da lavadeira e foi fumá-lo no alto do muro.

No mais, sendo tio Ivan um homem público vocacionado, coube a tia Dulce marcar posição a seu lado, subscrever opiniões e, sobretudo, não se apequenar ao defender posições que, pela natureza do processo, nem sempre galvanizavam unanimidades, sequer na família. Quando espicaçada por alguma incongruência, ou se estivesse indignada por uma razão, também aqui reagia à altura do que aprendera em casa. Pois tanto ela quanto mamãe – contrariamente às irmãs Nicinha, Lígia e Bebé, mais pacatas -, sempre dividiram a capacidade de fazer um discurso contundente e demolidor, valendo-se de uma facilidade em esgrimir palavras que sequer os filhos absorveram. Criadas por uma mãe por certo muito doente, na verdade contaram com a avó, as tias e as tias-avós, gente que combinava um temperamento forte a uma educação clássica a que não poderia faltar uma rica sinonímia em cascata, hipérboles apavorantes, impropérios intimidantes e expressões que reduziam os incautos a pó de traque. Mamãe remanesce como única detentora desse alarmante galardão, o que mais de uma vez levou papai, colérico, a dizer que ela tinha uma língua de fateira. Longe de lisonjeiro, só posso atribuir o desabafo às chicotadas verbais que o laceravam. Na casa de tia Dulce, felizmente, não se chegava a tanto.

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Diz-se que perderam boa parte da memória afetiva os que não conheceram suas avós. Nesse caso, sinto-me enquadrado duplamente e o que me salvou da indigência completa no âmbito da geração dos pais de meus pais, foi um avô materno com quem tive algum contato até os 10 anos de idade, e de quem guardo uma grata recordação. De qualquer sorte, sendo meu pai o filho mais novo de sua casa, é certo que me deu seis tias diretas, suas irmãs, quatro das quais me foram muito especiais. Tia Carmen pela transbordante alegria de viver; tia Alicinha pelo estímulo intelectual; tia Ivone pelas gargalhadas que eram audíveis por toda a rua Barão de Itamaracá, no Espinheiro; e tia Anita pela irreverência e bom humor. Das tias Miriam e Zezé, as recordações são mais frias. Do lado materno, portanto, tenho mais três tias e espero que se conservem por muitos anos. Tias e primos são, no meu entender, os bens supremos do patrimônio afetivo de uma família. Pais e irmãos estão em outra categoria, não necessariamente melhor ou pior, apenas diferente. E de avós, como disse, só tive um leve gostinho. Minha tia Dulce foi, contudo, uma ponte pela qual transitaram os ramos esquecidos que toda família tem. Caudatária da patologia que acomete tio Ivan – a incurável vocação de fazer amigos -, ela foi única.

Que tio Ivan, o elo remanescente desse casal fusional, possa nos contar muito sobre ele. E que continue a escrever no dia a dia a vibrante história de uma vida intensa e plena. Este certamente seria o desejo dela.