Volto a falar do mar porque agora, em regresso definitivo ? minha quer?ncia, eu o tenho por companhia permanente, e na primeira luz dos dias j? posso conferir, de minha varanda, seu brilho, sua cor e seus humores.? Na verdade, tenho convivido com ele desde a mais tenra inf?ncia.? Meu dedo maior do p? direito guarda at? hoje uma cicatriz de tenaz de siri, daquele tempo.
Mas n?o vou falar das travessias a nado, das pescarias, das velejadas, da ca?a submarina que fizemos, eu e meus irm?os, nessa conviv?ncia de bem mais de meio s?culo.? Come?ando pelos siris, com um peda?o de pau, um cord?o e um naco de carne preso a uma pedra, passando pelos peixinhos a cani?o e pela linha de fundo no ?mar de fora?, pescamos de todas as formas.? S? ficamos longe da pescaria dos gr?-finos, de molinete e lancha oce?nica, com a cenogr?fica captura dos espadartes, que aqui t?m o nome, bem menos nobre, de agulh?es de vela.
E quanto ? ca?a submarina, em d?cadas de mergulhos, nunca me defrontei com um tubar?o.? S? uma vez, com um ca??o-lixa, aquele tipo sem barbatana dorsal, de boca pequena e apenas uma leve serrilha de dentes, que ?cochila? nos corais, e que arpoei sem identificar no primeiro momento, no c?ncavo de uma ?tapitanga?(*).?Ca?amos, sim, muitos? meros, variando de 8 a 40 quilos, mas estes s?o lentos e nada agressivos, tanto que sua pesca hoje ? proibida.? S? d?o trabalho para arranc?-los das profundezas, pois inflam as guelras, eri?am a barbatana dorsal e se prendem no fundo das locas, mesmo feridos.? A valentia do ca?ador limita-se a enfiar o corpo nessas locas, no af? de desprend?-los.
Vou falar, sim, de expedi??es mais quixotescas que heroicas.? Imagino-as de maior interesse para meus poucos leitores.
A ilha de lama
Quando a empresa de pesca de lagostas e pequena constru??o naval criada por meu cunhado, com o apoio do meu pai, andava pr?spera, o velho mandou fazer um barco a motor, habilitado tamb?m para vela, para servir de alternativa ?s nossas jangadas, Formosa e Formosinha.? A primeira enorme, para uso da fam?lia toda, podendo levar at? dez pessoas, e cuja retirada do mar exigia um mutir?o de praieiros.? A outra, do meu irm?o mais novo, encomendada s? para a sua turminha de mulher e filhos pequenos.? Ambas de pouca serventia para passeios no rio Sanhau?, um bra?o de mar que, a partir de Cabedelo, contorna a cidade de Jo?o Pessoa pelos seus lados norte e oeste.
O Sanhau? sofre o fluxo e refluxo das mar?s, e no in?cio do s?culo passado chegou a permitir, na mar? cheia, a entrada de pequenos navios at? o Porto do Capim, o velho ancoradouro da capital.? Hoje tem mais lama do que ?gua, e mesmo pequenos barcos pesqueiros t?m de ser conduzidos com habilidade, pelo lado externo das curvas, onde a corrente cava os canais.? Quando se vai ? vela, com vento contr?rio, e se tem que avan?ar em ziguezague, a viagem ? extremamente penosa.? Arriscamos uma vez, nos vinte quil?metros que separam Cabedelo de Jo?o Pessoa, e encalhamos repetidamente, apesar do pouco calado da jangada.
Mas, como disse, meu pai mandou fazer um pequeno bote, que teve o prestigioso nome de ?Jaguara?, um tipo de tubar?o pescado pelos barcos lagosteiros.? E logo concebeu uma expedi??o explorat?ria: encontrar no rio a ilha de F?lice de Belli, que estaria ? venda.
F?lice de Belli foi um dos muitos italianos que emigraram para a Para?ba, desde as primeiras d?cadas do s?culo XX, e prosperaram, n?o apenas como alfaiates de alto n?vel em Jo?o Pessoa, mas tamb?m como engenheiros, arquitetos e at? propriet?rios rurais, pelo interior.?Para os matutos ribeirinhos, a propriedade era referida, toscamente, como ?a ilha de F?li-de-B?li?.
A ?nica ilha vis?vel e bem conhecida do Sanhau? ? a da Restinga, que fica em sua foz, no ponto onde ele se encontra com o rio Para?ba.?Esta aparece em qualquer foto panor?mica do porto ou da esta??o balne?ria de Praia Formosa, que se situam nos dois lados do ?pequeno cabo?, paralelo ? costa, que d? nome ? cidade.?Mas a ilha de F?li-de-B?li era apenas uma vaga suposi??o.
Depois de um bom tempo de viagem, vencido intrepidamente pelo Jaguara, sem nada encontrar rio acima, come?amos a duvidar da pr?pria exist?ncia do objetivo.? Mas o meu pai estava convicto:
– Claro que tem, sim!? ? s? no que o povo fala: ilha de F?li-de-B?li, ilha de F?li-de-B?li… Como n?o vamos ach?-la?
At? que encontramos um canoeiro, e pedimos informa??o.
– ? por aqui… Por este canalzinho onde vou entrando…
E enveredou com a sua canoinha a remo por um filete de ?gua que se insinuava em um mar de lama inexpugn?vel para o porte do Jaguara.?Miss?o imposs?vel.
Voltamos.? N?o ouvimos mais falar na ilha, que parecia s? de pura lama, e o Jaguara, apesar de suas belas linhas, logo estragou-se: o seu casco era de madeira fr?gil.? Mas o meu pai, se esqueceu a ilha, n?o desistiu do mar: encomendou outro barco, maior e mais compacto, com motor de centro, cabine de comando com tim?o, e beliches.? O plano era pescar ? noite, e dormir no mar.
A pescaria abortada
O barco recebeu o nome de ?Mestre Jo?o da Mata?, o carpinteiro naval que o concebeu e construiu, um velhinho desdentado, que fora companheiro do meu tio Danilo, o primeiro comunista da fam?lia, na ?organiza??o de base? do velho PCB em Cabedelo.? E para seu piloto, meu pai contratou um mestre de botes forte e r?stico, ao ponto de abrir uma garrafa de cerveja com os dentes.? Est?vamos prontos para a empreitada.
Era um fim de semana, e a programa??o foi sair depois do almo?o, para chegar ao ponto da pescaria antes do escurecer.? Mas, como previs?vel em dia de liba??es alco?licas e lauto almo?o, atrasamos.? E na sa?da de casa, meu tio M?rio, brincalh?o como sempre, fez humor negro na despedida ? minha m?e e suas noras:
– ?s tr?s vi?vas!? Adeus!
Dele meu pai dizia nunca ter visto algu?m gostar tanto ? e, ao mesmo tempo, ter tanto medo ? do mar.? Isso j? se revelava nas pescarias de jangada com Jo?o Flor, o velho jangadeiro, sobretudo na passagem das barretas, a contracorrente:
– Seu Jo?o, d? pra passar?? D? mesmo?
E assim fomos, pai, dois filhos, tio, e o mestre-piloto.? Mas, como j? se temia, escureceu antes de atingirmos a meta.? E para complicar, o motor apresentou uma anomalia, que nunca soube em que realmente consistiu. ?E o velho amante do mar n?o esperou outro pretexto:
– Vamos voltar, vamos voltar!? N?o se pode facilitar com essas coisas!
E assim foi feito, em marcha lenta, nas sombras da noite.?Meu tio, aliviado da tens?o, deitou-se no conv?s e adormeceu profundamente, como admitiu meia hora depois, ao despertar.? E de pronto, j? pr?ximas as luzes do porto de Cabedelo, abriu uma garrafa de conhaque, proclamando um ins?lito princ?pio de marinhagem:
– S?brios no mar, embriagados no desembarque!
E assim chegamos, superada a frustra??o por uma leve embriaguez coletiva.? Escusado dizer que meu saudoso tio n?o nos acompanhou na expedi??o seguinte.
Noite trevosa
Desta vez era pra valer, e o motor n?o deveria pifar.?Mas outros atropelos nos aguardavam.?Mais uma vez atrasamos, e chegamos ao suposto pesqueiro j? ca?da a noite.? Suposto porque, no escuro, n?o se pode contar com as marca??es na remota linha de terra, atrav?s dos seus pontos mais elevados: as barreiras de Miriri ao norte, o Cabo Branco ao sul, no meio a velha igreja da Guia em sua colina, e o farol da Pedra Seca, dos tempos do Imp?rio.? N?o pod?amos saber ao certo se est?vamos no local desejado.
N?o pod?amos, al?m disso, mudar muitas vezes de pouso.? A ?ncora do barco era uma fateixa pesad?ssima, sem qualquer equipagem, nem mesmo uma roldana, para ajudar no seu recolhimento.? Tinha de ser no bra?o, e, mesmo com o porte atl?tico do piloto, exigia o empenho de duas pessoas, equilibrando-se ao balan?o dos vagalh?es.
E ali ficamos, na solid?o do oceano sem luz, linhas mergulhadas na ?gua, t?o profunda que as iscas tinham de ser amarradas nos anz?is, para n?o se desfazerem.? Nenhum ermo em terra firme pode comparar-se ao vazio do mar, se ? noite.? Em descampados e matas h? sempre sons: de aves noturnas, grilos, sapos, folhas ao vento.? N?o estamos s?s.? Mas no mar, s? se ouve o bater das ondas no casco da embarca??o.
Nem a lua, quando se apresenta, serve de distra??o.?O luar, para ser apreciado, exige, al?m do sossego, algum contraponto: uma silhueta de coqueiro, um perfil de barco ancorado, um elemento de paisagem qualquer.? L?, no entanto, n?o produzia mais que uma mancha leitosa na vastid?o inquieta das ?guas.
Comemos uns sandu?ches de salame, segundo meu tio, o alimento ideal para pescarias: como o salame j? ? salgado, se se molhar n?o se perde.?Mas, para remate de males, o lanche produziu no meu irm?o uma acidez estomacal violenta, um fogo interno que, segundo express?o dele pr?prio, quase chamusca o peito da camisa. E nada de peixes nos anz?is.
Tentei dormir.? Mas os beliches, de trav?s na parte traseira do barco, eram apenas um pouco mais compridos do que meu tamanho, talvez uma polegada.? Virar de lado, para dobrar as pernas, n?o era poss?vel, pela estreiteza do ?leito?.? E o balan?o de um bote fundeado n?o ? regular e para a frente, como o corcovear de um cavalo (movimento que os franceses chamam de ?tanguer?).? ? mais como o torcer de quadris de um touro de rodeio: balan?a tamb?m para os lados.? E, a cada movimento lateral, minha cabe?a batia na parede da cabine: tum!?tum!? tum!…? Desisti.
E assim varamos a noite, sem o consolo de uma ?nica fisgada nos anz?is.? Ao amanhecer, para salvar a honra da pescaria, o nosso piloto lan?ou uma linha de bibuia e fisgou um pir?, o peixe mais vagabundo dos nossos mares, pois nem nome tem, uma vez que pir?, em tupi, que dizer simplesmente peixe.? Bem diferente da pira?na, ou do beijupir?, o ?peixe tapioca?, de carne branquinha, t?o prestigiado que d? nome ao melhor restaurante da paradis?aca praia de Porto de Galinhas, em Pernambuco.? Nada disso.? Apenas pir?.
Como est? visto, o Mestre Jo?o da Mata n?o teve um bom hist?rico como barco pesqueiro, pois ningu?m quis repetir a fa?anha daquela noite trevosa.? Mas deu ao meu pai, sempre t?o t?mido e modesto em seus lazeres, momentos de discreta alegria como seu timoneiro, sentindo-se, talvez, como um comandante de iate.? E prestou uma merecida homenagem ao ?ltimo carpinteiro naval de Cabedelo, militante de velhas causas que tiveram, em algum tempo, seu poder de sedu??o.
Sou a ?nica testemunha dessas desventuras n?uticas.? At? Mateus, meu irm?o mais mo?o, o melhor marinheiro entre todos n?s, j? foi ceifado prematuramente por um edema pulmonar, quando navegante de avi?o, pelos c?us do Brasil.? Como no poema de Bandeira, todos est?o dormindo.? Profundamente.
(*) Do tupi, ?ita? (pedra) + ?pitanga? (vermelha), com af?rese do ?i?: forma??o de coral, em forma de ?rvore, de grande beleza.
Que bela crônica, amigo Clemente. Você está escrevendo cada vez melhor, se isso fosse possível. Transporta o leitor para dentro do mar e do velho rio que, só agora, fiquei sabendo que é um braço de mar. As aventuras de pescaria me lembraram as de Hemingway em Cuba, só que com o bom-humor com que você temperou suas lembranças.
Parabéns.
Abraço,
Celso
Prezado Clemente,
Acabei de ler de Miguel de Sousa Tavares – o autor de “Equador”-, um livro chamado “Cebola crua com sal e broa”. Nas últimas vinte ou trinta páginas, ele resgata bonitas experiências com os pescadores do Algarve, antes que a região virasse um condado britânico de turismo, tanto o de alta gama quanto outro de muito baixa, nucleado em Albufera.
O que importa é que lendo sobre os códigos marinhos, os artefatos de mergulho, as técnicas, a disciplina e a relação igualitária que se estabelecia entre um homem letrado e um pescador, a todo momento lembrei do amigo. Quando voltar para o Brasil, vou mandá-lo para você. Seu belo texto confirmou minha intuição de que você e Miguel estabelecerão uma boa troca.
Um abraço,
Fernando
Realmente a recepção aos comentários na “Será?” está uma autêntica roleta russa. Após deixar umas linhas sobre o texto de Clemente, recebi bizarra mensagem de que se tratava de um “texto repetido”, cheio de menções a gateways e afins. Agora entendo a indignação dos missivistas que estão ficando pelo caminho e desistem.
Não tenho a mínima noção se deveria recomeçar ou se o texto está armazenado em algum lugar do ciberespaço. A repetição de tarefas é o traço mais marcante e mais neurótico da convivência entre homens de 60 anos e essas máquinas diabólicas. Lá vou eu dar um “enviar” de novo. Pelo menos já estou preparado para nova acusação de auto-plágio e impostura.
Caro Celso,
Seu comentário não é apenas honroso para mim. Ele valoriza a nossa revista, do outro lado do Atlântico!
E para quem não o conhece, informo: Celso Japiassu é poeta, publicitário de sucesso, hoje residente na cidade do Porto, em Portugal. E além de tudo, paraibano!
Grande abraço!
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Seu comentário saiu, Fernando! O sistema, não sei porque, não está acusando o recebimento, como antes, mas acolhe os textos. Grato por ele.
Já li “Equador”, um grande romance. Imagino que o novo livro não lhe fique atrás. A gente escreve melhor sobre aquilo que viveu.
Querido tio Clemente,
você não tem ideia como adoro os seus contos! E apesar de sempre morrer de chorar ao lê-los, eles me trazem uma imensa alegria, pois sempre citam o meu pai. Assim como eu, você não se esquece dele. Imagino a alegria do meu oai se tivesse a oportunidade de lê-los. Um beijo carinhoso da sua sobrinha,
Sandrinha.
Obrigado, Sandrinha! Seu comentário me enche de alegria.
Nada melhor para quem escreve do que saber que tocou o coração das pessoas que o leem.
Beijo.