Clemente Rosas

A CCS e suas parceiras

O Regimento se compunha de cinco companhias: duas companhias de fuzileiros, a Companhia de Petrechos Pesados (CPP), a Companhia de Canhões Anti-Carro (CCAC) e a Companhia de Comando e Serviço (CCS), que o tenente Moreira, nosso comandante, para nos valorizar, classificava como uma “companhia de elite”.

As companhias de fuzileiros eram comandadas por dois irmãos, um capitão e um tenente, ambos autoritários e sádicos. Para aumentar a antipatia, o tenente tinha voz esganiçada, e era gorducho, desse tipo de gordura que forma dobras no toitiço.  A CPP tinha à frente um capitão de fala rouca, com quem tive um incidente desagradável, adiante reportado.  Do comando da CCAC, nada de especial a registrar.  E, para completar o quadro, o comandante do Regimento era um coronel barrigudo e colérico, cujos gritos, ao reclamar do café que lhe serviam, eram ouvidos em todo o pavilhão de comando.

O tenente Moreira, para alegria dos recrutas da CCS, era um oficial diferenciado.  Enquanto todos os tenentes andavam com um revólver 45 à cintura, ele circulava desarmado. Era um tipo atlético, de boa voz e boa fala, que se impunha como líder, incutindo nos subordinados o sentimento do dever a cumprir, em defesa da pátria.

Porém, mais tarde, chegou o momento em que o nosso tenente reuniu a Companhia, ordenou a posição de “sentido”, prestou continência e passou o comando para outro oficial.  Baixinho, pele fina, sotaque sulista, o novo comandante da CCS decepcionou logo no discurso de posse:

– Vamos começar o negócio numa nova pisada. Cabelos, só quero cortados “a zero”. Coturnos engraxados… e por aí foi, sem elevar-se acima de exterioridades mesquinhas para uma tropa bem motivada.

Felizmente, passei pouco tempo sob o comando dessa figura inexpressiva.  Promovido a cabo, fui deslocado para a 1ª Companhia de Fuzileiros.  Também sofri pouco sob o capitão fascista de que já falei, pela condição de “cabo escrevente” (QMG 77, QMP 118)*, e por me faltar pouco tempo para a desmobilização: servi apenas por dez meses.

Sentinela

Havia vários postos de guarda no quartel, além do portão de entrada, pois o terreno se estendia, depois do campo de futebol, aos fundos, até o Varjão, na periferia da cidade de João Pessoa, bairro miserável e mal afamado.  Foi no portão de entrada que, com uma metralhadora INA a tiracolo, vivi um momento desagradável com o capitão de fala rouca já referido.  Tinha havido uma apresentação dos oficiais aos recrutas, estes todos em grupo, circulando pelos edifícios das companhias, mas claramente insatisfatória para memorizar fisionomias.  Assim, quando um cidadão, em trajes civis, adentrou o recinto, não me mexi.  E ele:

– Não está me conhecendo, não?

– Não senhor.

– Nunca me viu aqui dentro?

– Não senhor.

– Toma a posição de “sentido”, rapaz.  E aprenda a conhecer os oficiais.

Para ser coerente, eu deveria ter exigido a identificação do “paisano”, antes de me perfilar.  Mas obedeci.  Foi melhor assim, porque a reação do cavalheiro certamente não seria compreensiva da correção de minha atitude.  Afogueado com a recriminação injusta, fui consolado pelo cabo da guarda:

– É o capitão Moura, Ribeiro (meu “nome de guerra”). Não liga não…

Mas vivi experiência bem mais traumática, como sentinela.  O turno da noite, das 22 horas às 6, era dividido em quatro “quartos”, de duas horas cada.  A turma de sentinelas que pegava o primeiro quarto (22 às 24 horas), recolhia-se ao corpo da guarda para dormir até as 4 horas, quando voltava ao posto.  Dormir, entenda-se, apenas com direito a tirar o capacete e afrouxar o cinto de guarnição.  Uniforme e coturnos, nem pensar.  Também, com o enxergão que cobria as camas, de cor marrom, para esconder a sujeira, o melhor mesmo era ficar em decúbito dorsal, encostando apenas a parte de trás da cabeça no pouco convidativo catre.

Alguns postos tinham guaritas, outros eram inteiramente ao ar livre.  No inverno, recebíamos uma capa permeável, que protegia apenas do frio.  Chovendo, tinha-se que aguentar firme a roupa ensopada. Assim era um posto situado em cima da pequena arquibancada do campo de futebol, que deveríamos percorrer para lá e para cá.  E foi neste encargo que tive um dos maiores sustos da minha vida.

Uma lua pela metade iluminava fracamente o cenário, quando divisei, em cima da arquibancada de cimento por onde caminhava, o corpo de um homem deitado, como se adormecido ou morto.  Tinha farda, não sendo, portanto, um estranho.  Mas nada explicava o fato de estar ali prostrado, ao relento.

Aproximei-me com cuidado, contornando o corpo para ver-lhe o rosto.  E, confesso, senti um frêmito de pavor: não havia rosto!  Tal como os frades sem cabeça, só de capuz, dos quadros surrealistas do pintor Ivan Freitas, então meu amigo de noitadas boêmias.

Fiz um grande esforço para conter o pânico e raciocinar.  Afinal, aquilo não era possível.  E cheguei mais perto, até descobrir o engano. Usávamos, além do quepe de pala dura, para passeio, e do capacete, para manobras, um “gorro de pala mole”, verde claro, para o dia a dia no quartel.  E o dorminhoco cobrira o rosto com o tal boné, não perceptível à primeira vista.

Cutuquei-o com a ponta do fuzil.  Acordou assustado, explicando-se: estava de serviço nas cavalariças, e viera dar um cochilo por ali.  Advertido pela imprudência, retirou-se para onde deveria estar.