Frederico Toscano

O respeitado Mormon Tabernacle Choir canta no Messias de Händel na igreja da Temple Square, em Salt Lake City, Utah/EUA. Referência no oratório, o grupo se apresenta com frequência em grandes salas de todo o mundo.

Um dos maiores sucessos da história da música, o “Messias” (ou “Messiah” no original) é também a obra mais famosa do compositor alemão naturalizado inglês Georg Friedrich Händel (1685-1759), nome de proa no Barroco musical. Händel produziu outros oratórios de igual beleza e muitas das mais belas óperas do início do século XVIII, porém o “Messias” é, de longe, o seu carro-chefe, com o inconfundível “Aleluia”.

Chamado de “Shakespeare da música” por seu domínio da arte dramática, Händel nasceu no mesmo país e ano de nascimento de outro gênio barroco: Johann Sebastian Bach (1685-1750). Mudou-se aos 25 anos de idade para Londres onde, já como cidadão inglês e assinando “George Frideric Handel”, compôs o “Messias”. A monumentalidade deste oratório, com seu libreto abordando o nascimento de Cristo, envolve naturalmente todas as plateias.

Composto em 1742 em inglês, esta foi a última obra executada por Händel ao órgão, em 6 de abril de 1759, em Londres, na Abadia de Westminster – onde ele seria sepultado solenemente em 20 de maio do mesmo ano, no chamado “Canto dos Poetas” daquele templo, acompanhando por uma multidão de 3 mil pessoas. Um privilégio raro para um estrangeiro que se tornou celebridade entre os ingleses.

Esse sucesso, porém, foi conquistado com muita dedicação e talento. Händel impôs a si próprio um método de trabalho muito intenso que não lhe dava espaço para mais nada na vida além da música. Não se casou nem constituiu família. Recusando (o primeiro, talvez, a ter feito isso) a situação de músico doméstico de um nobre – que era o destino comumente associado à classe musical em sua época – o compositor não fez mais do que trocar uma escravidão por outra. Tornou-se servidor do público, esse amo tão mais terrível por ser anônimo, o que significa que não se pode chegar a nenhuma acomodação com ele.

Trabalhando para o teatro – como músico, diretor e empresário – Händel arriscava sua sorte todas as noites. Estava condenado ao sucesso – e mais: ao sucesso imediato e irresistível. Não dispunha, como outros, de um tempo para reflexão. Um espetáculo mal levado podia significar a sala vazia no dia seguinte, e ele ter de arcar com todos os custos sem nenhuma receita, ao passo que uma cantata de domingo que saísse um pouco menos perfeita não modificava em nada a composição do público para o ofício do domingo seguinte. Händel precisava, portanto, trabalhar bem depressa, sempre pronto a recomeçar. Não se podia abrir brechas para o despontar de um concorrente.

Escrita a toda velocidade (as partituras autografadas dão testemunho disso), de um só jato, a música de Händel é feita para seduzir logo de primeira, sem dar ao público o tempo de parar para pensar no como e no porquê. Händel é um dos maiores compositores para a voz humana que já existiram. São raros os momentos em que ele cede ao gosto da frase gratuita. Ele sabe que a música tem uma função psicobiológica (mesmo ignorando esse vocabulário) e compõe para obter um determinado efeito. Consola, tranquiliza, emociona, distribui alegria, compaixão, coragem – e tudo isso pelos meios mais simples, de modo a agir sobre a maioria das pessoas. “Quando é preciso, ele fere como um raio”, dizia a seu respeito o gênio austríaco Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791). Raios, trovões – a própria força dos elementos! “Procure em Händel e aprenda com ele a produzir tão grandes efeitos com tão poucos meios” – palavras de Ludwig van Beethoven (1770-1827), que o considerava o maior compositor de todos os tempos.

O “Messias” teve fundamental importância na vida de Händel. Ele escreveu esta obra em apenas 21 dias, quando estava em situação financeira muito difícil, enfrentando muitos problemas em Londres. Decidiu estrear o “Messias” em Dublin com um orçamento bem pequeno, mas em um ambiente que lhe parecia melhor do que na capital inglesa. Foi um grande sucesso, mas a real consagração aconteceu anos depois, em 1759, quando estreou o oratório na Inglaterra.

Voltando na linha do tempo, Händel havia recebido em 1741 um convite do Lord Lieutenant da Irlanda – uma espécie de governador vinculado ao rei inglês – para ajudar a levantar dinheiro para três instituições de caridade de Dublin através de apresentações musicais. Embora doente nessa época, o compositor estava determinado a compor um novo oratório para a ocasião, e pediu ao poeta Charles Jennens (1700-1773), seu libretista em sucessos anteriores, como “Saul” e “Israel no Egito”, um tema apropriado. Jennens respondeu com uma série de versículos do Velho e Novo Testamentos arranjados num “argumento” em três partes, como ele o descreveu. O resultado foi o mais conhecido e amado oratório de Händel.

Mesmo nas obras religiosas mais importantes de Händel, percebe-se um modelo já experimentado em suas investidas no mundo da ópera, sobretudo naquelas em língua italiana. Assim, diferentemente de Bach, a música de Händel sempre se dirige a um público grande e heterogêneo. Advém daí, por exemplo, a gênese de um tipo de oratório que, florescendo na Inglaterra, tornou-se original e inimitável. A música de Händel é cosmopolita.

O “Messias” é, sem dúvida, uma das mais belas biografias em forma de música já escritas. A obra costuma ser executada com um coro de centenas de integrantes. Händel, porém, não pensava em mais de 60 pessoas, incluindo coro, orquestra e solistas. O compositor organizou o seu oratório como um tríptico: A Parte I apresenta a Profecia e o nascimento de Jesus; a Parte II é a Paixão, culminando no “Aleluia”; e a Parte III traz o tema da Redenção. Toda a execução dura cerca de duas horas e meia.

A obra se inicia com uma sinfonia: uma breve abertura com uma introdução lenta e marcada, em caráter grave, seguida de um movimento alegre. Logo começa a primeira parte com o recitativo “Comfort ye, my people”, em que a inquietação dá lugar à esperança pela voz do tenor. Passa-se logo em seguida para profecias apocalípticas de profetas do Velho Testamento. O baixo muda o clima ao anunciar a chegada de catástrofes e calamidades: “Breve farei tremer os céus e terra, os mares e os continentes. E chegará então o consolo para todos os povos; o Senhor a quem buscais virá ao seu tempo”. No coro seguinte, “And the glory of the Lord”, Händel colocou todo o versículo de Isaías 40,5: “Porque vai ser revelada a glória do Senhor e todos os povos verão aquilo que Deus, nosso Senhor prometeu”. A bela ária para contralto “But who may abide” começa suave, tornando-se nervosa e exaltada na segunda seção, quando se refere ao fogo purificador:

https://www.youtube.com/watch?v=DYcJX-6cQbo

O jogo dialogante das vozes no coro “And he shall purify”, de grande suavidade, lembra o estilo de um dueto vocal. O anúncio da chegada do Menino Jesus acontece no recitativo “Behold, a virgin shall conceive”. Mas é em “For unto us a child is born” que encontramos uma das jóias do oratório, com o nascimento do Salvador. O coro canta com euforia os versos: “Pois nasceu uma criança entre nós, um filho foi-nos dado e sobre seus ombros recairá a soberania” (Isaías 9,6):

A vida do Messias começa a ser desvendada e sua morte passa a ser anunciada. A segunda parte começa com um coro introspectivo que anuncia a imolação do Cordeiro: “Eis o cordeiro de Deus que tira os pecados do mundo” (João,1,29). No coro seguinte (“Surely he hath born”), a orquestra entra dramaticamente expressando com fortes acentos o martírio de Jesus: “Certamente foi Ele quem levou sobre si nossos sofrimentos e dores”. Em “All we like sheep” encontramos uma soberba criação, em que a orquestra repete insistentemente uma nota (ostinato) como figura de acompanhamento. O sofrimento de Jesus pelos pecados dos homens é lembrado em “Behold and see”. O coro “Lift up your heads” é outra joia. Introduzido pela orquestra com vigor, entoa uma grande marcha triunfal sobre a morte e o pecado. Na ária “Why do the nations”, a orquestra e o baixo irrompem violentamente, com grande efeito teatral num concitato (agitado) que questiona o porquê das nações lutarem entre si:

 

Assim, chegamos ao coro “Aleluia”, o mais representativo do oratório, quando se demonstra toda a alegria pela vitória do Messias sobre a morte e o pecado, após a concretização das profecias enunciadas na Parte I. Um canto inflamado festeja o conflito superado, cujo alento afirmativo deriva da repetição das notas cada vez mais agudas sobre as palavras “King of Kings, and Lord of Lords“:

A soprano, então, abre a terceira parte da obra com uma ária afável e comovente em ritmo de minueto, com o versículo “Eu sei que o meu Redentor vive e que se levantará sobre a terra no último dia” (Jó 19, 25-26):

O coro seguinte (“Since by man came”) traz um grande efeito pelo contraste entre a vida e a morte, o pecado e a ressurreição. Já a segunda ária da terceira parte (“The trumpet shall sound”) faz soar a trombeta, representando a ressurreição dos mortos. A última ária (“If God be for us, who can be aginst us?”) é um belo auto de fé com acompanhamento do violino. A obra se encerra magistralmente com um grandioso coro final: “Worthy is the Lamb” – “Digno é o cordeiro, que foi sacrificado para nos redimir” (Apocalipse 5,12), como uma grande antífona:

Segundo uma lenda corrente na Inglaterra, durante a primeira apresentação do “Messias” em Londres, com a presença do rei George II, quando coro começou a entoar as primeiras notas do “Aleluia”, o rei, impressionado com a suntuosidade e a beleza daquela música, automaticamente levantou-se de sua poltrona. Quando os presentes viram que o rei estava em pé, toda a audiência ergueu-se – ninguém permanece sentado na presença do rei em pé protocolo real. Explicar-se-ia, deste modo, o costume da plateia permanecer em pé durante a execução dessa parte do oratório até hoje.

É importante notar que o “Messias” é uma obra religiosa, porém não é sacra, isto é: trata de temas religiosos, mas não é uma música para ser tocada em contexto litúrgico. A Igreja sempre foi conservadora quanto à liturgia, que não era concebida como um espetáculo. Por outro lado, as tradições musicais do sul da Europa (católico) e o norte (protestante) eram bastante diferentes. No sul, o Barroco mostrava-se mais espetacular e operístico, enquanto no norte, particularmente na Inglaterra, a simplicidade e depuração estilística eram a regra em termos litúrgicos. Mesmo que não houvesse lugar para a encenação, a Igreja repudiava a prática do oratório, pois eram utilizadas escrituras sagradas para efeitos cênicos e espetáculo público. Foi em torno destas questões que alguns jornais ingleses mais conservadores consideraram a obra uma blasfêmia.

O produto acabado, contudo, teve outra receptividade, sendo elogiado em Berlim e depois em Londres. Händel fez várias revisões subsequentes, incluindo uma versão criada para o Thomas Coram’s Foundling Hospital em 1754 – fundação para a educação de crianças abandonadas à qual Händel passou a dedicar mais tempo a partir de 1749. Apesar de a obra ter sido concebida para a Páscoa, e nela ter sido apresentada pela primeira vez, após a morte de Händel tornou-se tradição executar o oratório durante o Advento, período preparatório para as festas do Natal.