O crítico literário Agripino Grieco (1888–1973), fluminense de Paraíba do Sul, não poupava ninguém com seu humor e acidez. Comentando o famoso epíteto de “Cidade Maravilhosa” que o lirismo popular adotou para falar do Rio de Janeiro, a temível língua de Agripino saiu-se com esta: “Quando o adjetivo chegou, o substantivo já estava destruído”. A rigor, se forçamos a nota idealista, Agripino e muitos outros Agripinos teriam toda a razão. Mas, de par com a fúria do tempo e do desprezo pela memória, também há um Rio que não se rende a caprichos de ocasião. Daí o contraponto do verso famoso: “O Rio de Janeiro continua lindo”. Ou do verso de Tom Jobim: “Rio, você foi feito pra mim”, incrustado no famoso “Sambado avião”.
Voltemos ao “substantivo” — à cidade em si, uma por assim dizer das mais complexas criações urbanísticas brasileiras. Muito mais que qualquer outra cidade nacional, o Rio é uma cidade-síntese do País. Talvez seja isso que se queira dizer com a prosaica metáfora “coração do meu Brasil”, da famosa marchinha de André Filho. Sua complexidade, dispensável dizer, tem várias, numerosas razões, mas, dentre tantas, destaca-se a sua importância histórica: foi capital não apenas do Brasil colonial, imperial e republicano, mas do vasto império português, tendo recebido da África um expressivo contingente de pessoas escravizadas, o que lhe confere, após Salvador da Bahia, uma posição de destaque em nossa negritude nacional. O Rio é uma cidade gloriosamente negra. Que o digam o samba, as religiões afro, as mulatas, a gente negra e parda que circula altiva por suas ruas e avenidas. Ruas e avenidas em que João do Rio, em seu excelente livro “A alma encantadora das ruas”, foi buscar pioneiramente a própria alma da cidade.
As criações culturais e o patrimônio histórico-artístico cariocas, escusado dizer, são riquíssimos. Recentemente, não por acaso, o Rio mereceu da Unesco o título de “Capital Mundial da Arquitetura”, que inaugura a série de um projeto homônimo daquela entidade com a União Internacional dos Arquitetos. Honraria que faz com que o próprio brasileiro passe a ver e a valorizar, em meio à invisibilidade do que é familiar e à destruição da memória, os monumentos arquitetônicos que atravessaram os séculos e os novos edifícios e logradouros que já se tornaram outros tantos marcos da cidade. É título que, para nosso orgulho brasileiro, nos destaca edifícios e construções como os coloniais Paço Imperial, Arcos da Lapa e Convento de Santo Antônio, o Palácio Tiradentes, a modernista sede do então Ministério da Educação e Saúde (o Palácio Capanema, um marco da arquitetura nacional), o Copacabana Palace, o Teatro Municipal, o Museu Nacional de Belas Artes, a Biblioteca Nacional, até exemplares mais “recentes” de arrojo arquitetônico, como os edifícios-sede do BNDES e da Petrobras, a Catedral Metropolitana, o Aeroporto Santos Dumont, o Museu de Arte Moderna e o Museu do Amanhã. Isso sem falarmos de logradouros como o Parque do Flamengo, assinado pelo grande arquiteto Affonso Eduardo Reidy e desde 2012 Patrimônio Cultural da Humanidade, além de tantos prédios ecléticos e art déco que embelezam e marcam a paisagem carioca.
O Rio (nada digo de original) reúne o mar, a montanha e a terceira maior floresta urbana do mundo — a da Tijuca. No seu espaço geográfico natural, a natureza excedeu-se de forma predestinada ao entusiasmo que celebra a beleza. Nas curvas de suas montanhas, inspirou-se o gênio de Niemeyer. Drummond, à beira-mar, amoleceu seu ferro itabirense, foi súdito do reino de Copacabana. Hoje, em sua estátua sedestre, de costas para o mar, o poeta contempla o mar humano que vem e vai em ondas pelo generoso calçadão, onde pedras portuguesas mostram os inexcedíveis desenhos de Burle Marx.
Não obstante a cenografia exuberante das montanhas e do mar, da Baía da Guanabara e de suas ilhas (entre elas, a pitoresca Paquetá, onde um dia se exilou nosso Joaquim Nabuco), o Rio também tem pudores e recatos. Para ser mais exato, pudores e recantos… Mas isso já é uma outra história. Por ora, ergamos cariocamente um brinde, um geladíssimo chope, à Capital Mundial da Arquitetura, onde gente de todo o mundo vem conhecer que contraditório país é este — de tantas lágrimas e desigualdade social e de tanto prazer e alegria de viver. Viva o Rio!
Viva!
Meu caro Paulo Gustavo,
Gostei muito de suas apreciações sobre o Rio. Acho você um exímio observador e gosto sobremodo de vê-lo tão bem ancorado na freguesia do Poço da Panela e, vez por outra, surpreender-nos com os relatos de suas andanças. Morei no Rio e gosto do Rio. Durante décadas, passei ao largo, sobranceiramente, do embate que cariocas e paulistas travavam em torno das idiossincrasias uns dos outros. Eu não tinha lado, o meu coração era (é) nordestino. Para mim, o melhor estava justamente na proximidade entre ambas. Ultimamente, senti que mudei. Meus 37 anos de vida paulistana pesaram e minha alma é decididamente bandeirante, o que quer que isso signifique. Mas como não pensar sobre nessa dicotomia ao lê-lo? Obrigado pelo belo texto.
Abraço,
Fernando
Caro Dourado,
Grato pelo generoso comentário. Também é muito bom ver o cosmopolita que você é, de par com esse bandeirante já confesso, atentamente ancorado nas águas do Capibaribe. Abraço