Clemente Rosas

Aves aquáticas.

Lembro um texto de Vinícius de Moraes, nosso saudoso poetinha, em que ele louva a amizade, valorizando-a mais do que o amor.  Diz que pôde encarar o fim de muitos amores, mas não suportaria a perda de todos os seus amigos.  E observa ainda que, com vários, quase não convivia, suspeitando mesmo de que sequer imaginassem o quanto eram importantes para ele.  E me pergunto se o conceito pode ser estendido a outras criaturas viventes, além da nossa espécie.

Em meu retiro da Praia Formosa,  tenho contato diário com seres alados, que nada sabem de mim, mas me trazem alegria. Alguns vejo ao caminhar pela praia. Outros procuram abrigo em minhas adjacências: jardim, quintal, varandas, garagem.  Bicam os restos da comida da cadela e do casal de jabutis, os insetos no jardim, as lagartas dos coqueiros, ou sugam o néctar das flores.  E fazem seus ninhos nas varandas e nos pequenos arbustos do entorno da casa: quanto mais perto de nós, mais protegidos estão dos predadores, inclusive aqueles da própria classe, como os bem-te-vis.

Eles me gratificam com as cores das suas plumagens e a melodia dos seus cantos, mas pouco ou nada lhes posso dar em troca.  Quando um filhote, mais débil, cai do ninho, não adianta tentar devolvê-lo ao regaço materno: a mãe não o reconhece mais, e ele acaba caindo de novo.  E quando – como já aconteceu – uma família de saguins das vizinhanças ataca os recém-nascidos, devorando-os, só me resta lamentar, refletindo sobre o velho mito da harmonia da natureza…

São vários, os meus amigos de asas.  Os beija-flores – um de cor verde-esmeralda brilhante, outro escuro, de cauda bifurcada – há algum tempo não visitam meu jardim.  Mas as lavandeiras mariscam diariamente na grama, os bem-te-vis e os anuns brancos lançam seus gritos característicos, as rolinhas , com sua bela cor acobreada, marcam presença com seus ninhos abertos, onde permanecem absolutamente imóveis, quando a gente se aproxima.  Um bichinho pequeno, de tonalidade creme, que aqui chamam, por certo impropriamente, de rouxinol,  é o mais “doméstico””:  faz seu ninho fechado no topo dos pilares do terraço.  E há outro espécime, misterioso, que até hoje não consegui ver, mas de quem ouço, vez por outra, um gorjeio modulado, polissilábico, compatível com os belos nomes de guriatã (do tupi), ou pitiguari  (onomatopaico).   Algum dia espero conhecê-lo melhor.

Mas os amigos da beira-mar também têm o seu encanto.  Os maçaricos correm pela areia molhada, caçando incansavelmente mini-crustáceos e anelídeos.  Seu movimento de pernas é tão rápido que não pode ser bem percebido pelo olho humano. Os guarapirás passeiam pelo céu azul, com o privilégio que a sua original anatomia lhes concede de avançar contra o vento sem bater as asas, e dar voos rasantes sobre o mar, bicando peixes na crista das ondas.

Vi também e admirei, já por duas vezes, a alvura e a elegância de uma garça, sobre o verde de uma “vegetação estabilizadora de dunas”.  Curioso: elas voam de pescoço encolhido, ao contrário de patos e gansos. Teríamos algum biólogo de plantão para explicar por que?

Há mais. Encontrei  um dia três aves, em torno de uma carniça de peixe.  De longe, vi que não eram urubus – corcundas, deselegantes, sorumbáticos.  Tinham altivez, cabeça erguida, bico recurvo, pescoço branco: eram carcarás.  Nenhum deslustre pela natureza da refeição.  À diferença da águia americana e do nosso gavião-real, os carcarás comem também bichos mortos.  Mas estão em boa companhia: a maior ave do mundo – o condor dos Andes – embora viva no ambiente nobre das alturas, desce ao fundo dos vales para servir-se dos restos do banquete dos pumas.

A todos esses amigos de asas, os mais íntimos e os mais distantes, sou grato.  Pela companhia, pelo resto de vida selvagem que me reservam, pelo ornato à minha paisagem bucólica e marinha.  Com eles vivo e viverei bem.