Paulo Gustavo

Marcel Proust.

 Os proustianos de todo o mundo, sobretudo os franceses, estão festejando os 100 anos do segundo volume do maior (e, para eles, o melhor) romance já escrito: “Em busca do tempo perdido”. Incluo-me na fila dos devotos, com a humildade que requer esse magnífico templo da literatura, lembrando de Jorge Luis Borges quando afirmava que mais se orgulhava do que lera do que das obras que escrevera. A “Recherche”, ou a “Busca”, é, de fato, a catedral literária com a qual seu autor sonhou, evitando, por compreensível modéstia, assim chamá-la. É nessa catedral que os fiéis adentram, tomados de fervor e pasmo. Edificada no início do século 20 — e como que situada “entre dois séculos”, para evocar um título do grande proustiano Antoine Compagnon —, essa catedral, “il va sans dire”, é um enciclopédico monumento a seduzir, desafiar e enriquecer as melhores inteligências e sensibilidades.

Marcel Proust projetou inicialmente sua obra em três partes. Em 1913, surgiu “No caminho de Swann”. Logo deveriam se seguir: “À sombra das raparigas em flor” e “O tempo reencontrado”. Só esses três volumes já formariam uma imensa obra. Mas é interessante saber que Proust também pensou em publicar todo o seu texto num único volume, inclusive sem divisão em parágrafos. Por motivos práticos e editoriais, tal ideia não vingou. Sobreveio a Primeira Guerra Mundial, e o escritor teve que pausar a edição do seu colossal romance. Todavia, nos anos de guerra (conflito que ele levaria para dentro do último volume), Proust continuou a trabalhar, praticamente duplicando a obra, que resultaria num conjunto de sete expressivos volumes.  Daí que “À sombra das raparigas em flor” venha a ser publicado em junho de 1919, após o término do conflagração mundial.

Ao contrário do que popularmente se pensa (registre-se por curiosidade), a “Busca” não é uma coleção de sete romances, mas um romance único e completo. Sua edição fracionada e espaçada no tempo terminou por alimentar a lenda de que cada livro era um romance à parte. O fato é que, à época, justamente por conta desse fracionamento, ninguém a rigor entendia bem do que se tratava. A forma e o método de Proust também não ajudavam: basta dizer que muitos não percebiam a obra como um romance, mas simplesmente como memórias ou retratos da sociedade. Não faltou quem o chamasse de mero “improvisador”, como anota, em seu alentado “Proust”, o biógrafo Ghislain de Diesbach. No Brasil, essa visão equivocada seria brilhantemente refutada por Álvaro Lins em sua tese “A técnica do romance em Marcel Proust”.

No capítulo das curiosidades, deve-se ressaltar que o título “À sombra das raparigas em flor” foi uma sugestão ao autor, no verão de 1908, feita por seu jovem amigo, admirador e homônimo Marcel Plantevignes. Um título que ambos sabiam “folhetinesco”, mas que permaneceu como que provando o que Guimarães Rosa, grande leitor de Proust, registra em seu “Grande Sertão: Veredas”: “Nome não dá, nome recebe”. No entanto, esse título, como bem lembra o “Dicionário Marcel Proust”, de Annick Bouillanguet e Brian Rogers, de fato “só convém ao último terço do livro”, justamente quando surge, na estação balneária de Balbec, o grupo das moças em flor, dentre as quais se destacará Albertine, com seus ímpetos e sua vitalidade, e com quem o “herói” (é assim que é habitualmente chamado pelos especialistas o narrador-protagonista) viverá o seu atormentado amor.

Precedido de uma angustiada relação com o editor Gaston Gallimard (vale a pena autores e editores conhecerem a correspondência de Proust com o então diretor da Nouvelle Revue Française; há inclusive uma edição brasileira), o livro sai em junho de 1919. Segundo registra Ghislain de Diesbach, “O sucesso de ‘À sombra das raparigas em flor’ ultrapassou em muito aquele de ‘No caminho de Swann’, seis anos antes”. Em 10 de dezembro do mesmo ano, a obra receberia o prestigioso Prêmio Goncourt, aliás não sem polêmica, uma vez que, para tal conquista, contribuíra a decisiva influência de seu velho amigo de juventude Léon Daudet, membro da comissão julgadora. O prêmio, é claro, ajudou a Proust, até então restrito a círculos sociais e literários, a consolidar a sua glória e a popularizar o seu trabalho. Até sua morte, em 1922, aos 51 anos, Proust ainda veria publicados os volumes “O caminho de Guermantes” e “Sodoma e Gomorra”. Corrigia as provas de “A prisioneira” e de “A fugitiva” (“Albertine Disparue”) quando contraiu a broncopneumonia que logo o levaria a óbito. Já então havia conquistado uma admiração internacional, a começar por ingleses e alemães. O sol da glória finalmente iluminava aquele que se apegara à noite, ao silêncio, à solidão e até à doença para escrever um dos livros mais geniais da humanidade.

Recife, 03 de junho de 2019