Fernando Dourado

Para Francisco Brennand

“Deixe-me dizer uma coisa. Eu deveria ser um desses indivíduos que só têm a agradecer a Ferenc Kuhn pela pessoa que ele é. Para que você tenha uma ideia, nunca abri uma exposição minha – seja em Szentendre ou na galeria Várfok – sem que Ferenc fosse um dos primeiros a adentrar o recinto, geralmente sobraçando tantas flores que mal víamos sua barba bem aparada e seus generosos olhos azuis. A gentileza transbordante dele contagiava até os rapazes com quem sempre o vi, todos invariavelmente solícitos e respeitosos, salvo talvez por um que parecia não levá-lo muito a sério como parceiro, e que circulava a seu lado apenas para adubar a própria agenda, segundo se comentava. Tanto é que parece que até hoje não se falam, muitos anos depois da ruptura. O que importa? Por que me ative a este detalhe? Isso dito, explico porque eu disse na abertura que lhe deveria sentir apenas gratidão. Mas o verbo está no condicional porque, justamente, não sou. Não sou grato porque suas críticas meio laudatórias tanto na imprensa daqui quanto na dos países em que eu ia expor, eram de um déjà vucontinuado e meloso. Quando me ligaram certa feita de uma prestigiosa galeria e, com certo espanto, o curador me falou que eu saíra numa revista de arte da Basileia, eu fui da euforia ao desalento em segundos ao saber que fora Ferenc que assinara a longa crítica. Ora, que artista em sã consciência não gosta de uns afagos? Mas tanto eu quanto muitos outros aqui neste pequeno país, entre pintores vivos e mortos, sempre tiveram a expectativa de que seu trabalho chamasse a atenção de alguém novo, que tivesse um olhar diferenciado, e que agregasse a nosso cartel. Saber que fora Ferenc a assiná-lo ia para além da decepção. Eu sentia raiva. O que podia a assinatura dele somar a meu trabalho? Quem era ele? Ora, ocupando aquele espaço, ele impedia que outros o fizessem. Afinal, a editoria de arte tem outros pintores a contemplar além de mim. É claro que eu não iria reagir a ponto de pedir a Ferenc que não mais escrevesse a meu respeito. Não seria capaz dessa grosseria. Mas conheço gente que o fez e hoje entendo as razões. Um colega nosso de muito renome, que certamente figura em sua relação de entrevistados, definiu bem tudo isso quando disse que, ao se apropriar de nossa imagem, Ferenc insinuava termos uma relação profissional mais íntima do que a que efetivamente tínhamos. Que, diga-se de passagem, se resumia à dimensão fugaz dos salões, nunca a da criação – que é sagrada. Nessa sacristia, Ferenc jamais foi bem-vindo. Quando muito, um pintor mais jovem e inadvertido que não o conhecesse o bastante, poderia lhe confidenciar alguma coisa sobre tintas, texturas, pincéis e planos temáticos. Mas isso não passava de mera formalidade, de gentileza frívola. Agora que você está a me pedir uma avaliação sobre sua obra, me permita dizer que esta é uma palavra excessiva para definir a pintura de seu amigo. Ou de seu cliente, sei lá. Para não dizer que não lembro de tela alguma que Ferenc tenha pintado, sei de uma cigana que ele deu a Sándor Márai, e que ele jogou na rua numa noite em que se bebeu muito Tokaji em casa. Dias depois alguém viu a tela ao pé de uma lixeira na rua Gogol.”
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“Gosto muito de Ferenc Kuhn e não é por eu hoje viver com uma pessoa que já lhe foi muito próxima que me deixei envenenar por sentimentos menores ligados a ciúmes e afins. Como gostamos de dizer neste pais: na cova dos leões não há ateus. Pois então, num período muito difícil de minha vida em que eu tive problemas com a bebida e que até preso estive, sob alegação de perversão moral e outras bobagens que eram de moda até então, foi Ferenc quem me chamou ao Vörösmarty para comer uma torta, e me confiar uma missão que, embora de pouco sucesso, me restaurou as energias, o nome e as finanças. Sei que aquele exposição sobre as deportações de Budapeste na Guerra soaram meio apelativas e sentimentais. Eu pessoalmente gostei de alguns quadros e fiquei com dois que tenho até hoje – o do Shofar e o dos sapatos à beira do Danúbio, episódio de que pouco se tinha falado até então. Acho que poderia ter havido um pouco mais de boa vontade do meio artístico, ainda que fosse por uma questão de empatia. Ferenc perdeu os pais para Eichmann e estes eram bons amigos dos Soros. Não deve ter sido fácil encarar tantas perdas e ainda perseverar em viver em nosso país. Aquela exposição teve algum sucesso de público, mas ficou etiquetada como uma intrusão de um amador no meio de consagrados. Conheço gente graúda que esteve lá em consideração pessoal a ele, mas em horários que não coincidissem com o do grande público das escolas. Era uma forma de evitar fotos comprometedoras ou qualquer coisa que parecesse um endosso de um artista a um trabalho tido por menor. Se ele ficou ressentido, coitado, nunca me disse nada. Eu só acho que essa devoção à arte não precisaria acontecer em detrimento da própria vida. Por que ele não vai gastar o dinheiro que dizem que tem com a saúde? É verdade que ele está doente? A última vez que o vi foi no enterro de Imre Kertész. Ele não me pareceu bem. Mas ali estávamos todos velhos e abalados. Falta sim generosidade a nosso meio. Eu não sei bem o que você pretende fazer com esse material de testemunhos. Eu não sei sequer se Ferenc vai gostar do que vai ouvir. A única coisa de que desconfio é que você é bem pago para fazer o que está fazendo, e que isso não tem cara de ser um trabalho jornalístico porque faltaria à figura central uma estatura que o justificasse aos olhos da redação. Mas tampouco estou insinuando que você esteja à cata de um panegírico. Seja o que for, acho de coração que o meio artístico deve uma homenagem a Ferenc Kuhn. Todos nós temos luzes e sombras. Está na hora de mostrar o lado luminoso. E, se for o caso, que o tratemos como o artista que ele sempre quis ser. No final, nós todos sabemos como acabaremos. Nosso ditado mais querido diz que os homens são carregados por cavalos, alimentados por gado, vestidos por ovelhas, defendidos por cães, imitados por macacos e comidos pelos vermes. Não é isso? Voilà.”
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“Não é porque você frequenta nosso meio que você é um dos nossos. Mesmo assim, ainda faço justiça a alguns que, embora não sejam, são tratados como tais. Pegue um cabeleireiro da Ópera, por exemplo. Ele não é cantor lírico, ele não sobe no palco, mas sem ele para pentear as divas, e sem sua diligência para retocar as madeixas nos intervalos, não haveria espetáculo. Pergunto: você quando recebe seus colegas de trupe para drinques em sua casa, você o convida ou não? Pois bem, nossa grande musa do canto lírico faz isso com o seu maquiador, e todos o tratam com suma deferência. Mesmo porque ele é um artista a seu modo, tem a alma dos que sobem à ribalta, capta-lhes os sentimentos e, sobretudo, tem senso do ridículo para não dar palpites sobre solfejo e entonação a quem levou uma vida de sacrifícios para viver sua arte. Desculpe a explicação longa, mas espero que o exemplo o ajude a entender que Ferenc é tudo menos isso. Ele não exerce um ofício sequer que o habilite a frequentar nosso mundo em condições de igualdade. Somos todos pintores, escultores, marchands e editores de arte. E ele? Um pouco de cada? Não basta. De mais, duvido que ele tenha o recuo necessário para saber a hora de calar ou adiar um julgamento para uma ocasião mais propícia e privada. Pelo contrário, acho que ele é mestre em redizer o que alguém acabou de falar, apenas invertendo a ordem da frase e mudando as palavras. Isso não se faz impunemente. Por outro lado, somos muitos os que lhe devemos algum favor. E tenho certeza de que, desmentindo a regra maledicente que querem pespegar aos judeus, Ferenc muitas vezes quis dispensar o devedor de devolver o empréstimo. Mas o que havia por trás disso? Se você prometer que não vai me querer mal por ser tão franco, eu diria que ele vem investindo há 30 anos numa persona artística a quem seja impossível se negar um favor. E o que ele pede de volta? Prestígio e acessos. Pode ver, por exemplo, que ele não se acanhou em pedir a Tamás Hencze que o apresentasse a Anne Sinclair. Você acha que Anne Sinclair, neta e herdeira de Paul Rosenberg, estava interessada em comer um entrecôte com fritas com Ferenc em Paris? A isso se chama não ter noção do próprio tamanho. O próprio Lahner parece que recebeu sua cota de propostas indecentes, de presentes muito generosos, de acenos de intimidade meramente oportunista. De minha parte, não tenho queixas. Acho que uma vez cheguei até a dizer àquele esquisitão que vivia às custas dele no fim dos anos 1980 – quando este país despertou para o mundo -, que Ferenc deveria se estabelecer em Berlim e se tornar galerista. Ninguém se recusaria a lhe dar uns quadros para vender. E tem mais: sabemos que o lugar onde ele tem menos prestígio é aqui, porque Budapeste inteira o conhece como ele é. Mas em Praga, Bratislava, Cracóvia e até mesmo em Viena, Ferenc Kuhn poderia ter feito um nome. Mas não como artista. Palavra de uma mulher que já viu de tudo.”
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“Se então era esse o propósito dele, tudo me consente dizer que ele não soube trabalhar seu ideal. Quem quer viver de pintura, ou de qualquer arte, só tem um caminho a trilhar: deixar tudo que não seja tinta e cavalete de lado, e fazer qualquer sacrifício para ir atrás da luz perfeita para pintar. No meu caso, tudo foi mais fácil. Sendo pobre, apesar de ter comido com certa fartura quando menino e depois como rapaz, um dia deixei o empreguinho que um tio ligado ao Partido tinha me conseguido no conservatório. Na época namorava Guita, mas nem sabíamos se a relação tinha futuro ou não. Comuniquei-lhe a decisão. Para minha surpresa, ela disse que estava comigo, e que agora sentira firmeza no homem que queria ter a seu lado. Então tudo mudou em nossa dinâmica. Eu que achava que ela iria me dispensar quando soubesse que eu ia pular do trapézio sem rede de proteção, vi na atitude determinada daquela camponesa instruída, a mulher de que eu precisaria para o resto da vida. Não estava dito, mas aquela decisão significava que íamos ter que viver do salário dela, como gerente do café. Por lindo que ele fosse, talvez o mais belo da cidade, o ordenado não dava para muito mais do que a sobrevivência. Quanto tempo levei para vender o primeiro quadro? Alguns meses. E tem mais. Varava as noites estudando, sonhando em visitar museus e tentando descobrir um caminho de expressão para minha arte. Mesmo depois que Guita deu à luz a Béla, nem assim eu me senti tentado a largar tudo no meio do caminho e voltar a trabalhar no conservatório, onde as portas tinham ficado abertas. A mensagem de reforço que eu ouvia era uma só: se você quer viver de arte, entregue-se a ela. O mais difícil você já fez, que era sacudir a acomodação. Agora avance. A sensação de que o esforço podia estar começando a se pagar veio quando vendi o “Danúbio ao entardecer”, que cativou à época um colecionador rico do exterior. E olhe que aquele dinheiro teve mais um aspecto de reparação moral do que qualquer outro. Dei cédula sobre cédula de presente a Guita, salvando apenas unsforints para o cigarro, e voltei para o cavalete de onde poucas vezes me ausentei por mais de uma semana desde então, mesmo quando vou para o Balaton. Agora você me chega com essa história de que Ferenc Kuhn sempre quis ser considerado um artista pelos seus pares. Estou perplexo. Eu achava que o que ele mais queria era ser marchand, e, aliás, aí sim poderia ter tido sucesso. Mas pintor, nunca. Aliás, sei que ele cometia umas pinceladas, mas se vi alguma coisa, sequer registrei. Agora se me permite, vou voltar à labuta. Desculpe se fui franco demais, mas no dia que você chegar aos 90 anos, vai entender que não se pode desprezar uma aliada tão poderosa quanto a objetividade. E dê lembranças a nosso Van Gogh, que, pelo jeito, é seu amigo.”
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“A identidade artística é filha da renúncia. Mesmo que você seja uma cornucópia, e que sua produção em dado momento alcance escala descomunal, não se iluda. Por trás da quantidade, há uma disciplina inegociável que, quer você se aperceba quer não, nasce do sacrifício. Eis um detalhe singelo que parece nunca ter ocorrido a Ferenc. Não vou citar nomes – digamos que atenda por Tibor, Istvan, Zoltán ou Gyula -, mas não foram poucos os que morreram esquecidos, e passaram anos sem comer um gulache decente, num país que nunca teve a tradição da fome. Alguns dos nomes que serão aventados pelos seus convidados nesse trabalho, que desconfio tenha sido contratado pelo próprio Ferenc, mencionarão um ou outro expoente da pintura contemporânea para ilustrar suas falas. De um deles, pelo menos, posso dizer que uma grave doença genética levou-a a viver, aos 25 anos, as injunções de um homem idoso, que poderia morrer a qualquer hora. Ora, isso só somou à sua inegável genialidade, e os dez anos que ainda viveria – para afinal morrer bobamente, numa internação que não se relacionava à enfermidade senão a uma pneumonia, imagine – fizeram dele uma espécie de Rimbaud dos pincéis. Um Schubert, se é que me entende. Então pergunto: quantas vezes Ferenc renunciou a um rega-bofe? Quantas vezes olhou para seu guarda-roupa e convenceu a si mesmo de que o smoking chegado de Viena podia esperar um pouco mais pois ele tinha que ficar no estúdio e, talvez, só dormir de madrugada, ou não dormir de jeito nenhum, tudo isso porque um quadro o estava mobilizando obsessivamente. Sem sermos um Picasso, todos nós passamos por isso. Esses instantes de fusão com o objeto da criação são o sal da vida artística. Quando entramos em comunhão com nossa obra, é aí que somos mais felizes. Contrariamente ao que se pensa, o sublime não é colocar um preço proibitivo num quadro. É separá-lo dos demais para tê-lo como peça fundadora de uma fase. É ser tão apegado a ele que podem os galeristas oferecer fortunas que você vai querer mesmo é legá-lo à sua neta. Ou vendê-lo a um colecionador que o doará a um museu. Em meus anos parisienses, contava-se que Picasso chegou para o pintor Dias, um brasileiro que vinha de bela história, e lhe deu um quadro de presente. Disse-lhe que era para seu apartamento. Ao que Dias retrucou dizendo que morava muito mal para ter uma peça daquela na sala. Era quase temerário, atrairia ladrões. Então Picasso disse que ele não tinha entendido. Estava presenteando-o com a tela para que ele a vendesse, e então comprasse um apartamento espaçoso e iluminado. Foi o que ele fez. Esse amor ao trabalho, essa consciência de excelência, eis uma coisa que nunca parece ter ocorrido a Ferenc. Sequer nos artigos que encaminhou para a crítica no estrangeiro. Tudo parecia ser tão frívolo. Era como se os anos que passou em Moscou na década de 1960 tivessem imprimido um viés de propagandista numa mente apenas mundana. Por fim, como desabrochar se boa parte de sua energias era consumida nos banhos térmicos ou à procura dos rapazes de Peste? Quantos deles não chegaram à casa dele em Buda para posar, e de lá só saíram meses depois, fornidos o bastante para viver com conforto? Ferenc Kuhn se vendeu barato, se me permite dizer. Mas gosto dele. Só me irrita essa mendicância por elogios. E pelas tâmaras confeitadas que não fez por onde merecer.”

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“Esteja tranquilo que eu não recebo com amargura nenhum desses depoimentos. Já tenho idade suficiente para aceitar as coisas como são, e para identificar mérito na crueza que emana até daqueles que muito me devem no plano pessoal. Sempre fui consciente de minhas limitações, que não começam onde eles pensam que começam, e, sobretudo, sempre soube que na hora de fazer opções, meu coração iria sempre pender pela vida, e não necessariamente pela arte. Ponto. É claro que se você ama determinado universo, é esperável que queira se inserir nele como um ator vivo. Talvez não de primeiro plano, mas como um coadjuvante de algum quilate e expressão. Pode ser que minha obra não tenha maturado como queijos, mas tampouco é rasa como alguns apontam. Todo mundo sabe que ganhei mais dinheiro com minhas telas do que a imensa maioria desses gênios magiares, que andam por aí de pulôveres roídos pela traça e salpicados de tinta. O que me doeu um pouco foi achar que eu estava empenhado num escambo, que abria espaço para eles na imprensa para afetar uma intimidade que não tinha, ou para pedir favores em troca. Que favor eu poderia pedir de alguns pobres diabos que se apequenavam diante de um curador italiano, e me telefonavam para que eu recebesse o visitante, para lhes facilitar a vida e transferir prestígio? Isso sempre fiz de coração. O que quase ninguém falou é que essa resistência, na falta de palavra melhor, sempre esteve ligada às minhas origens. Não é que artistas e escritores judeus não tenham florescido aqui no pós-Guerra, longe disso. Acho até que teve um tempo em que nós estávamos um pouco de moda. Mas isso já não vem ao caso. Sou frívolo? Pois então estou desobrigado de comentar o detalhe. Não vou bem de saúde, você sabe. Estamos vendo se o tumor entrou em remissão, mas para mim basta essa deficiência imunológica, que vem da quimioterapia, para que eu pense cada vez mais nas opções que me restam para viver o finalzinho. Jerusalém não é uma alternativa para homens de meu perfil. Paris poderia dar um grand finale à vida, mas acho que queria mesmo morrer num outono à beira do lado Balaton, quem sabe até com água pela cintura, pensando nos anos em que desfrutei de minha casa e da solidão que vem desde o pós-Guerra. Nos tempos que passei em Moscou, é claro que acumulei missões. Depois de certo episódio na rua Arbat, que valeu a eles uma boa arma de chantagem, mas que me afetava bem pouco, aceitei mandar vez por outra uns informes onde dourava bastante a pílula e, na verdade, nada dizia. Meu salvo conduto foi a tal frivolidade, palavra central desse trabalho. Do que falaria? De espionagem, armamento nuclear, eliminação de dissidentes? Nunca. Quanto a este seu trabalho, bem que tentamos. Fui ingênuo em achar que ouviria algo de diferente, de mais estimulante. A que serviria uma inverossímil consagração a um homem de minha idade e na minha condição? Vou providenciar o depósito do saldo, mais um adicional generoso pela sua paciência. Agora me ajude a me vestir e vamos dar uma volta. É hora de começar a me despedir de Budapeste.”