Clemente Rosas

Alcides Carneiro.

III – Alcides Carneiro

A morte de Alcides Carneiro, em 1976, na distante Brasília, talvez possa ser comparada pelos paraibanos com a de Edith Piaf.  A França perdeu a sua cotovia, a Paraíba, o mais inspirado orador de massas de sua história.  O povo, que ia aos comícios – principal recurso das campanhas eleitorais nos anos cinquenta do século passado – só para ouvi-lo, chorou a sua morte.  Vinte anos depois, escritores, como Luís Augusto Crispim e Joaquim Inácio Brito, em texto comovente, fizeram o seu necrológio: “O Tribuno que Faz a Paraíba Morrer de Saudade”.

Poeta, prodigalizava suas imagens, sempre renovadas, inesgotáveis, para assistentes embevecidos.  Uma vez, em campanha pela oposição, diante da medida tomada pelo governador do Estado, destinando, em dia de comícios simultâneos, o espaço menos nobre, do pátio da catedral, para os opositores, soube reverter o clima de desânimo dos seus correligionários, logo ao abrir os discursos:

– Fizeram bem em nos destinar este local para o nosso comício!  Lugar de pobre é mesmo a porta da igreja!

E a multidão entrava em transe.  Sua fala, em estilo condoreiro, ao receber os restos mortais de Epitácio Pessoa, trasladados para a terra natal em 1965, é antológica:

– Neste instante, volta ao seio materno o pródigo da glória.  Entre o soluço e o silêncio: o soluço do povo e o silêncio das grandes angústias…

E prosseguia, sem perder a altitude.  Mas também brilhava em despretensiosas quadrinhas:

Eu peço a todos os santos

Que me livrem, se puderem

De homem que ninguém gosta

De mulher que todos querem

 

Mulher feia dá sossego

Mulher bonita, aflição

Já notei que andar aflito

Me faz bem ao coração

No entanto, apesar de tudo isso, era um político reconhecidamente “ruim de urna”.  Candidato a governador na primeira eleição após 1946, foi derrotado, por pequena margem, pelo jurista Osvaldo Trigueiro.  Elegeu-se deputado federal apenas uma vez, em 1951: não tinha “currais” eleitorais, e seus admiradores estavam na população urbana, pouco expressiva naquela época.  Foi, nos seus últimos tempos, nomeado ministro do Superior Tribunal Militar – STM, onde celebrizou-se pelos votos inspirados e as decisões generosas.

No julgamento de um “habeas corpus” em favor do velho militante comunista Gregório Bezerra, apelou:

– Libertem Gregório, para que ele ainda possa contar suas aventuras a seus netos!

Em outro caso, envolvendo políticos provincianos, de pouca estatura, ponderou:

– Esses homens não são subversivos.  Eles estavam apenas querendo ganhar uma eleição. Eu, que sou abstêmio, já tomei cachaça em jejum numa campanha política!

Podemos, pois, dizer que fez jus ao epitáfio que sugeriu para si próprio: “Foi juiz. Se absolveu por compaixão, não condenou por fraqueza”.

Era genro de José Américo de Almeida, de quem meu pai foi secretário da agricultura, quando governador do Estado, nos anos 1950/54. Por tal circunstância, eram conhecidos, mas não próximos.  No entanto, devo a ele um imenso favor, não solicitado, e que não tive sequer a oportunidade de agradecer.

Eram os dias incertos do Golpe Militar de 1964.  Por conta de minha passada militância universitária como dirigente da UNE, e do meu presente como técnico da SUDENE, sobre a qual pesava a absurda pecha de “subversiva”,  eu respondia a dois processos, resultantes de IPMs  (Inquéritos Policiais Militares),  em Pernambuco e na Paraíba.  Meus conterrâneos, entre eles Luiz Lindbergh Farias (pai do ex-senador de mesmo nome), resolveram impetrar um mandado de segurança junto ao STM, para trancamento do processo referente à UNE, pela inépcia da denúncia, ao não configurar qualquer  crime tipificado na lei vigente.  E viajaram a Brasília, com o advogado, para tratar do assunto pessoalmente com o Dr. Alcides.

O ministro examinou os documentos, e perguntou simplesmente:

– Onde está o menino de Evandro?  Não estou vendo o nome dele…

A explicação foi dada:

– Clemente está morando no Recife, não pudemos entrar em contato com ele…

Mas o ministro foi peremptório:

– Incluam o nome dele.  E onde for necessário, alguém assine por ele.  Ninguém vai verificar isso aqui.

E assim me livrei desse processo, juntamente com os outros colegas.  E só fui saber de tudo após o caso consumado, pela palavra do meu amigo Lindbergh.

Até hoje me dói o fato de não ter tido a chance de agradecer pessoalmente gesto tão pleno de generosidade e coragem.  Consola-me apenas saber que o poeta, tribuno e magistrado Alcides Carneiro tem o seu lugar garantido no panteão de notáveis da minha terra.