Teresa Sales

10 de setembro de 2019

Houve um tempo em que publiquei nesta revista comentários de filmes. Agora, que penso em escrever sobre o último filme de Kleber Mendonça Filho, desta vez ele em boa parceria, lembro-me dos escritos passados. Sem voltar a lê-los, sei hoje que não passariam numa seleção de críticos de cinema, pois sou leiga em audiovisual. Na verdade, escrevi impressões pessoais, não mais. É de novo o que farei adiante.

Uma obra de arte tem esse poder mágico de conectar-se de formas distintas com quem dela se aproxima para apreciar, para assistir, para ler. Enquanto a ciência deve ser a mesma apreendida por todos, a arte é território livre à comunhão de cada um com aquela específica obra de arte.

Os filmes de Kleber Mendonça me lembram parábolas. Adolescente, da Ação Católica, li e reli as parábolas do Evangelho. Depois virei comunista, arreneguei tudo e passei a ler folhetos baratos. E tentei entender o mundo e consertar o mundo com princípios tão rígidos como ficaram os evangelhos, quando saíram da boca daquele judeu arrodeado de pescadores, para a boca de uma igreja instituição. Antônio Conselheiro também pregava parábolas. As parábolas são uma forma de poesia. Por vezes, anunciam o que está por vir. Em Bacurau, o que se anuncia? Seria o controle total, baseado na tecnologia da informação, do “império” do capitalismo em forma de bandidos, e derrotado por uma utopia? Na verdade, Bacurau não anuncia nada. Mostra, numa grande metáfora contida num lugar paradisíaco do Sertão, a guerra que já estamos vivendo.

Pelos anéis na mão da matriarca do lugar, deduz-se ser ela uma mãe de santo com grande ascendência sobre a população local. Bacurau era, antes da guerra, o que se vivia nos lugares em que o povo compartilhava vizinhança e solidariedade. Nas cidades brasileiras, com o confinamento da população pobre na periferia e dos ricos trancafiados nos prédios e nos automóveis de vidros fechados, perderam-se as relações de vizinhança. Nas periferias, tentam pela palavra – agora são comunidades – dizer o que já não são. O tráfico de drogas e a guerra cotidiana entre policiais e traficantes há muito tirou o sossego do lugar, onde morrem mais jovens.

Saio do filme e entro na rua, no meu caminhar diário pelo calçadão de Boa Viagem. Assisto à chegada das duplas de policiais para garantir a segurança dos caminhantes. Às vezes dois homens. Às vezes, um homem e uma mulher. A hora em que retorno frequentemente coincide com a chegada de dois automóveis da guarda municipal. O trânsito ainda pouco na avenida, lá vêm eles, marcha lenta, luzes piscando no carro oficial, azul e encarnado. Param no estacionamento rente ao calçadão, ali permanecem estacionados, as luzes piscando. Param em frente a um hotel de luxo com a logomarca de grande construtora. Ali desembarcam quatro policiais homens e duas mulheres.

O mesmo policiamento da praça encravada no maior PIB brasileiro, à qual me reportei em crônica passada. Minto. O daqui é maior. Lá era somente uma viatura, dia e noite.

“Mas dona, considere que o calçadão é muito maior do que aquela pracinha de nada. E depois, os bandidos de lá carecem tomar trem e metrô pra chegar lá. Os daqui, basta dez minutos caminhando a pé. Sim, é um custo elevado para os cofres públicos. Mas sempre tem algum troco dos que querem mais policiais do que os outros. E tem mais, dona. Se lá é somente uma viatura, aqui são duas. Cosme e Damião em todo lugar é dupla de policiais. Mas Pernambuco, a senhora sabe, em tudo é maior e melhor. Aqui, Cosme e Damião são duas viaturas com seis policiais dentro”.

Assim se resumem os nossos espaços públicos, onde se pode exercer a cidadania por excelência. Onde cabem todas as classes e gêneros e raças. No espaço livre do calçadão, enquanto existirem caminhantes (depois, salve-se quem puder), pode-se circular sem risco. A empregada doméstica com sua sacola, o ciclista porteiro de prédio, os caminhantes de prescrição médica. Até os loucos de carteirinha. Hoje, um morador de rua, maltrapilho, dançava na calçada, ao ritmo quente da Academia da Cidade; outro, que nunca mais apareceu, caminhava falando sozinho, em grandes discussões sobre os assuntos em pauta na mídia. Mas este é outro assunto, para outra crônica social desses espaços de cidadania que nos restam.

No filme, durante o conflito armado, o confinamento de toda a população, qual as estações de metrô durante a II Guerra Mundial, é o exagero dos cineastas para expor o cotidiano das periferias e das áreas confinadas dos edifícios de moradia. Bacurau é isso. Está à nossa volta, o diabo na rua, no meio do redemoinho. Em cada gesto, em cada medo, em cada vidro fechado do automóvel, em cada celular roubado, no deserto das ruas noturnas.

Ao começo do verão deste ano visitei dois países da África de colonização portuguesa, Cabo Verde e Guiné Bissau. Neste, um dos mais pobres daquele continente, andei sem medo nas ruas. Não cito isso como modelo. Apenas uma comparação. Que PIB o nosso, hem? Muitos percentuais acima da Guiné Bissau, e desembarcando nesta sociedade. Uma sociedade em guerra.

Mas a parábola anuncia também um professor negro, que vive a natureza, uma médica corajosa, de trabalhos miúdos, sem ideologias. E, sobretudo, o Pueblo é solidário. O filme ressuscita heróis legendários que, contra a violência de nossa sociedade, do mundo privado, antes de chegar à esfera pública, eram heróis de uma violência tamanha. Lampião. A estética do cangaço. Ao mesmo tempo em que não deixam de ser citados, no filme, os mortos pela violência pública, que esta também existe. Porém a violência nossa de cada dia, esta que está no olho da rua, para ver quem quiser e tiver olhos, tem uma semente ruim plantada em muitos massapês e terras férteis.

E não me venham com bodes expiatórios. Este do momento ou outros do passado, a dividir a sociedade em dois lados raivosos. A massa da periferia sai pelos poros dos sinais de trânsito, se espraia, amedronta. Até quando o confinamento da classe média vai conseguir mantê-la na guerra diária que enfrenta no combate entre bandidos e mocinhos? Bacurau, um filme que é um soco no estômago, é menos violento do que a sociedade brasileira.

Josué de Castro mostrou, lá atrás, como uma população oriunda do massapê da cana se reproduzia, junto com o caranguejo, na lama, na merda, no ciclo infindável da miséria. Hoje a situação não mudou muito. Afastada mais e mais pelos arranha-céus para segurança dos ricos confinados, vai se reproduzindo, feia, gorda agora, pelo lixo dos produtos processados da indústria alimentícia. O novo ingrediente é a violência armada.

Retornei ao Recife em 2007. De lá pra cá, a cidade e o país passaram por muitos governos. Porém, sem trégua, essa massa humana da periferia vai se adensando. O movimento da sociedade brasileira, de confinamento e medo, tem pouco a ver com planos econômicos esses ou aqueles. É só olhar a rua. Não carece ler jornal nem ver televisão. Assustando os ricos. Por que não matar? Tirar da frente o feio, o sujo, a ameaça?

Bacurau é aqui. Recife, cidade lendária, já foi berço pioneiro de outras revoluções. Nosso herói nacional deveria ser Frei Caneca, e não Tiradentes. Será também aqui que vai explodir essa guerra civil que o artista capta com beleza de cenários, de músicas, de personagens?