I
Sentado no terraço do “La Rotonde”, bem ali no coração de Montparnasse, Maurício tentava se concentrar nas “Lettres d´Orient”, de Flaubert, tendo à frente um copo de Muscadet, um pires onde deixara duas moedas, um cinzeiro vazio e o telefone que, mais por hábito adquirido do que por necessidade real, ele olhava de relance. A tela piscava a todo instante, mas isso não tinha a menor importância. Eram só seguidores de redes sociais que despejavam “likes” nas fotos que ele tirara em suas andanças pela cidade. Na véspera, tinha ido ao “Le duc” onde comemorou com dois amigos parisienses o fim amigável, tanto quanto possível, do relacionamento com Carla Whitehill. Tirando a caneta do bolso interno do blazer, sublinhou um trecho de grande banalidade, mas que lhe pareceu naquele momento especialmente gracioso. Sobre a viagem ao Cairo, diz Flaubert: Une des plus belles choses, c´est le chameau. Je ne me lasse pas de voir passer cet étrange animal qui sautille comme un dindon, et balance son cul comme un cygne. Ler que um camelo saltita como um peru e se requebra como um cisne, merecia um bom gole de vinho. Maurício não se enganava. Aquela reação era um leve sinal de felicidade. A tarde da primeira semana de setembro chegava ao fim. Em Buenos Aires, ela apenas começava. Esperava que Dolores, a paraguaia que trabalhava com ele já há tantos anos, não se esquecesse de regar as plantas. Ultimamente ela andava tão distraída.
II
“Franchement, isso pode mesmo parecer um pouco bizarro. E é. Mas eu não nego que sinto um enorme alívio. Passava da hora de ela reatar com a vida de família. Essa aventura, se podemos chamar assim, estava se estendendo por demasiado tempo e, na falta de poder dar uma perspectiva de futuro, não estávamos sequer conseguindo curtir o tempo presente. E o presente, pelo menos nos primeiros anos, era tudo do que precisávamos. As brigas estavam me deixando infeliz. Vocês imaginam que certo dia, em Roma, eu aleguei uma reunião de trabalho fictícia e passei o dia fora, rezando para não esbarrar com ela em algum café? A essa altura, espero que já esteja em Hampstead e que Londres e o marido a acolham bem. Não tenho do que me queixar enquanto o namoro durou. Mas a médio e longo prazo, era uma relação insustentável”. Isso dito, Maurício levantou um brinde de Petit Chablis. Anatole, entrado nos 50 anos como ele, e sem um fio de cabelo, sorriu com os dentes alvos e os olhos azuis. Gilles, de quase 70, bigode amarelado do tanto que fumava, levantou os ombros. “Importante é que haverá sempre um caminho para a volta, se for o caso. Não se sabe nunca. Admitamos até que, sob muitos aspectos, vocês combinavam bem. Tant pis.” Por um minuto, ninguém sentiu vontade de falar. O vinho operava seu milagre, calando as línguas e aquecendo a alma. Julgamentos e conclusões pediam uma trégua. Mesmo porque não estavam num lugar qualquer. Maurício, em especial, amava o “Le duc”.
III
Maurício frequentava o “Le duc” desde os anos 1990, quando fora levado a pesquisar alternativas que agradassem o paladar difícil de seu ex-chefe, um banqueiro que costumava se recolher cedo e tomar uma sopa no quarto de hotel. Um homem desses que encararam a comida até idade bem provecta como mero combustível. Com algum jeito, à custa de provar-lhe que nada se comparava a um jantar decente para que se instaurasse um bom clima entre seu confrade francês e ele próprio, o velho Lázaro Geldmacher abriu a guarda. E, temeroso de que tentar um segundo endereço fosse lhe tirar o elã recém adquirido de fazer como todo mundo e frequentar bons lugares, nunca quis trocar de endereço e tentar outra coisa. No começo dos anos 2000, pouco antes de morrer, tinha vezes que Maurício o levava lá até três vezes por semana, e era o olho atento de Christophe, o maître, que avaliava à distância se não era tempo de propor uma alternativa a seu peixe favorito, o filet de bar au basilique. Mas na grande maioria das vezes, era este o peixe que prevalecia, antecedido por uma pequena sopa de legumes frescos que não constava do cardápio, mas que Olivier providenciava na cozinha, para aplacar a impaciência do próspero comensal bissexto. Em suma, aquele restaurante sóbrio do boulevard Raspail integrava as melhores lembranças de Maurício, que ali reuniu os dois amigos mais próximos que tinha na Europa. Esbelto e quase atlético, Maurício prezava a culinária e se defendia bem em vários domínios,
IV
Um pouco à sua revelia, Mauricio se tornara o que seus amigos franceses gostavam de denominar un homme à femmes, denominação cara a Anatole em especial, homossexual assumido, e antigo diretor do banco em Paris, agora convertido em pintor. “Non, non, non” rebatia Maurício, no limite da irritação. “Há de se entender as circunstâncias da vida de cada um, mon cher ami. Como nunca fiz uma opção clara por ter família, é normal que as mulheres tentem me laçar para fundar uma. Some a isso todos esses deslocamentos, e verá que seria humanamente impossível ficar só. Mesmo porque gosto da companhia de mulheres. Aprendi a apreciar-lhes as arritmias de afeto e a labilidade de humores. Quando a cotação de uma despenca, tem outra que desponta. Você é vendedor numa ponta e comprador na outra. Ser banqueiro, você sabe bem, não é tão fácil quanto aparenta. Talvez fiquemos condicionados a dividir os riscos. Dediquei quase 30 anos de minha vida ao velho Lázaro. Digamos que elas sejam meu prêmio por bom desempenho, um bônus que a vida me deu. Mas Carla estava se tornando um ativo tóxico, do tipo junk bonds.” Terminadas as ostras, os pratos foram servidos. O turbotin grillé de Anatole não causou grande comoção. Gilles quis o fricassée de lotte à la provençale e Maurício o homard breton sauté à l´orange. Para acompanhar, um Chassagne-Montrachet branco. Gilles assoviou: “Essa separação nos está rendendo algumas alegrias. Este será sempre meu vinho preferido. Ao primeiro gole, acho sempre que vou chorar.”
V
Maurício morava em Palermo, uma espécie de mundo à parte no coração da única cidade em que poderia viver ao sul do Equador. “Vejam, não é porque nasci lá, mas Buenos Aires é imprescindível para minha alma”, costumava dizer. Faltando dois dias para viajar para a Europa, ele convidara Laura ao “Sottovoce”, que era seu local preferido, e comunicou-lhe que a história deles não podia continuar. Ela só chorou. “Tenho 56 anos, cariño. Não tenho o direito de estragar a primavera de sua vida, bem no auge de seus 35 aninhos. Vivo o outono, qualquer hora dessas será inverno. Você vai achar alguém à sua altura e vai esquecer o velhinho aqui. Alguém que te leve para ver Elton John em Las Vegas. Arco com as consequências, não pense que é fácil para mim, mas é só uma questão de decência.” Laura Gris insistiu em que a vida a dois lhes faria bem, que ela cuidaria bem dele, que não era mais nenhuma deslumbrada com noitadas e extravagâncias. “Por você eu abro mão de ter um bebê, pronto. Se é este o problema, ele já não existe. Pensando bem, não sei se já te disse, mas tenho ovário policístico. Está feito o trato. E vou cuidar da casa e de você. Pode até dispensar a Dolores que eu reorganizo sua vida para melhor. Vamos caminhar em…” Emocionado, ele interrompeu-a. “Nada será empecilho para que você tenha um bebê tão lindo quanto a mãe. Mas não será comigo, que não tenho vocação para a tarefa. Fazer até que é bom. E depois? Vá reatar com seus amigos e viver a vida. Tivemos uma bela história, mas ficaremos por aqui. Quero que me deixe ser seu amigo.” Se não foi rigorosamente com essas palavras, foi quase.
VI
Era fim de verão em Paris, quase outono, e os amigos saíram caminhando pelo boulevard Raspail. A noite esfriara desde que eles tinham entrado no restaurante, mas ainda estava bastante agradável. Anatole fez a proposta que não podia faltar. “Vamos tomar um gole daquele belo uísque japonês no ´Le Select` antes da dispersão. É o mínimo que posso oferecer depois de semelhante festim. E lá você nos contará sobre a mulher que está por trás disso tudo. Não me diga que essa faxina não se prende a outra. Te conheço.” Maurício passou a mão na testa e sorriu. Sorvendo Miyagikyo 12 anos, sua marca favorita, tudo o que ele não queria era decepcionar os amigos. Mas tampouco pretendia chocá-los. “Bem, se vocês querem saber, antes de sair de Buenos Aires, rompi com uma vizinha de bairro que quase me enlouquecia de tão bela. Mas por razões bem diferentes das que me levaram ao fim do relacionamento com a Carla, a Laura também merecia coisa melhor.” Piscando o olho para Gilles, ainda brincou. “Acho que vou pedir ao Anatole que me leve a uma balada com a turma dele. Talvez minha vocação seja mesmo desbravar o meu lado gay adormecido.” Os três riram. “Em outros tempos, eu teria dado tudo para ouvir isso. Mas sei que não é seu cup of tea, como gosta de dizer. Bem, está melhorando. Mas ainda não estou convencido. Minha mamushka russa costumava dizer que quando a gente cai na água, a chuva já não nos faz mais medo. Vamos lá, meu lado KGB diz que a história ainda está incompleta.” Mas por ali ficaram.
VII
De volta do jantar no “Sottovoce” com Laura, Maurício foi direto para a casa de Ida Shtick. Era agosto e fazia frio. “E então, como foi? Já sei: ficou tudo por isso mesmo, você teve peninha dela e desistiu de romper. Te conheço.” Dora, a filha de Ida, fingia assistir televisão e espichava o ouvido para a conversa. “Pegue uma dose daquele meu uísque. Faça, por favor, o de sempre: dois dedos de bebida, três pedras de gelo e três dedos de água.” Ida passou pela sala, sussurrou algo. Dora fulminou-a com os olhos de lince, levantou-se em um pulo e bateu a porta do quarto com estrépito. Arqueando as sobrancelhas, Ida trouxe o uísque e, como se estivesse falando para si mesma, murmurou: “Ainda preciso ter uma conversinha séria com essa aí.” Ida morria de medo da filha e, por uma razão que Maurício só podia atribuir à culpa, o pavor vinha ganhando corpo. “Dentro do possível, correu tudo bem. É claro que eu fiquei triste. Especialmente por vê-la tão decepcionada. Não, não ria, não ria. Só um sádico não se apiedaria. A Laura tem um lado meio infantil e admito que eu talvez gostasse disso. Mas ficou para trás. Agora vamos deitar que amanhã o avião sai no meio da tarde e eu ainda preciso passar em casa. Terminamos de conversar na cama.” Excitada com o que ouvira, Ida foi toda entrega. “Se há um caminho de volta entre nós, vamos encará-lo. Que mal pergunte, e aquele seu outro rolo da Europa?” Maurício lhe percebia as pupilas dilatadas, a ansiedade, alguma taquicardia e um cheiro diferente. “Se eu não for a Londres, ela virá a Paris, ora. O fim lá também está escrito, Ida. No que depender de mim, você não terá uma só razão para nos sabotar. A menos que a fabrique.” Maurício procurou evitar interpretar aquele calafrio como premonitório. Mas sabia lá no fundo que era.
VIII
Desde a sua ruidosa separação de um comerciante do Once chamado Jacó, o pai de Dora, Ida aceitara conversar com a Dra. Monica Fronzi, que lhe recomendara um antidepressivo. Continuariam a se ver regularmente para ter sessões de terapia, mas não custava testar a droga para aplacar alguns dos dramas candentes que a paralisavam. Apesar de não ter mais qualquer resquício de amor por Jacó, Ida perdia horas de sono pensando no que o teria levado a viver com Malka Hirsch nem bem saiu de casa. Será que já era um caso antigo? Deveria ter pedido mais dinheiro? Se não dera certo com um homem tido e havido como exemplar, com quem haveria de terminar seus dias? Por que não sabia rir como todo mundo? Por que era tão vulnerável aos caprichos de Dora, que se recusava a crescer, apesar de seus 24 anos? Por que não desocupava o imenso apartamento na torre Kavanagh, e não se mudava para um lugar menor? Qual era o propósito de sua vida? Ficaria pelo resto de seus dias como reserva de mão de obra para arrecadar dinheiro para causas vagas, enfronhada num mundo de diletantismo disfarçado de benemerência? Seria ela também uma eterna adolescente, à mercê da conveniência política alheia? Nascera para uma vidinha menor e ficaria à espera de que Dora lhe desse um neto? A Dra. Fronzi achava que todas essas questões eram das mais pertinentes a uma mulher de 55 anos, e talvez foi a única pessoa fora da família com quem ela conversou sobre Maurício, o sujeito que conhecera num voo para Punta del Este logo depois da separação, e que exalava luxúria. A essa altura, já iam pelo terceiro ano.
IX
No mesmo dia em que voltou da Europa, Maurício teve que passar no escritório para rever a posição financeira do fundo e conversar com gente do mercado. O pior de suas expectativas estava se materializando. Seu xará e amigo Macri, o presidente, pagara nas urnas pela tibieza política, e o dólar estava nervoso. Só se falava dos clássicos pacotes de contingenciamento de compra de divisas e ele tinha que transformar a volta da ópera-bufa portenha em oportunidade de lucro – razão primeira, única e última de seu fundo, um dos mais rentáveis do mercado. Era quinta-feira. Encontrara o apartamento em desordem. Ao abrir um WhatsApp desconhecido, viu que era do filho de Dolores. A mãe ficara doente e estava hospitalizada. No domingo, trataria de lhe fazer uma visita e perguntou ao rapaz se precisava de alguma coisa. Ao telefone, ainda brincou com Ida. “Cá estou, mais solteiro do que nunca. Por onde começamos?” Ida acompanhara cada passo de seu desfecho com Carla Whitehill, mas fez questão de lhe dizer: “Você deve ter deixado uma portinha aberta. Te conheço” Magoado, quase irritado, ele não passou recibo. “Quer ver a Victoria Sambuelli no La Scala de San Telmo?” A música era uma das poucas coisas que a destravavam seriamente. “Amanhã tenho que ir com a Dora comprar um presente para a namorada do melhor amigo dela. À noite, ela quer que eu faça um bolo. No sábado, aliás, a Débora quer que eu a acompanhe à manifestação de apoio a Cristina Kirchner. Sei que você não gosta delas, nem da Debby nem da Cristina, mas não vou negar isso à minha irmã.”
X
A ruptura de duas relações amorosas de que Ida era consciente desde o começo, há de tê-la deixado duplamente perturbada. Primeiro por achar que agora a responsabilidade recairia sobre ela própria. Até a Dra. Fronzi brincou, provocativa. “Parabéns, é muito prestígio para quem já não tem trinta anos. Vá fundo, dale.” Em segundo lugar, a componente da traição deixava de existir. “Acho que era mais reconfortante saber que ele estava bem suprido de sexo por aí. E que a mim caberiam só os concertos.” Quando a Dra. Fronzi perguntou por que ela nunca lhe dissera que preferia que as coisas fossem assim, Ida disse a primeira frase que lhe ocorreu. “Ele iria achar bom, e a situação de ser a suplente da suplente iria se perpetuar.” Não, não era bom argumento. Na noite da sexta-feira, à sombra de sua imagem projetada pelas velinhas acesas na penumbra do apartamento, ela ligou para Mauricio. “Amanhã quero ir dormir cedo, logo depois do concerto. A gente pode sair daqui de casa, se isso não te incomoda. No domingo, preciso ir à Matzeivá de Júlio Feldon, que foi sócio de Jacó, aquele que você também conhecia dos tempos do banco.” Victoria Sambuelli fez uma apresentação impecável e foi aplaudida por dez minutos em cena aberta, bem de acordo com a tradição da cidade. Ida estava sonolenta, não vinha dormindo bem e cochilou várias vezes. Chegando à Torre Kavanagh, estavam a rigor pela primeira vez a sós desde que ele voltara da Europa. Dora se entretinha com amigos em torno da mesa, como se todos tivessem doze anos. No meio, um vaso enorme cheio de chocolates de leite e açúcar. Os gritos ecoaram até tarde. “Amanhã temos que sair cedo para La Matanza. Parece que o rabino Polakoff vai. Tinha prestígio o Júlio.”
XI
No dia seguinte pela manhã, Ida já saíra da cama e apareceu tão vestida como se já fosse tarde. Será que dormira? “A gente pode comer alguma coisa no caminho, não é? Não quero fazer nada na cozinha porque a amiga da Dora que ficou para dormir, detesta cheiro de ovo frito. Parece que tem alergia. Depois da Matzeivá, teremos aqui uma reunião com o pessoal da Débora que me pediu para receber os amigos do comitê justicialista. Nada bom para você a presença de tanto peronista, não é? Mas não posso dizer não à minha irmã, que não tem lugar de reunião aqui na região de San Martín.” Maurício levou o tablet para o banheiro e deu uma olhada no noticiário enquanto ouvia rádio. De frente para o espelho, remexeu os remédios que ficavam na prateleira do meio, e viu a caixa de Citalopram, o remédio que Ida tomava. Colocou uma cartela sobre o balcão e voltou às fotos tiradas na última semana de agosto. Estava claro. Desde sua partida, há quase 3 semanas, Ida tomara apenas dois comprimidos, da dosagem que deveria ser diária. Ela suspendera a medicação. Mesmo que o movimento tivesse sido feito de comum acordo com a Dra. Fronzi, o certo é que talvez não tivesse sido aquele o momento idôneo para se submeter a experimentos, justo quando coisas mais importantes estavam em jogo. Já não era a primeira vez que ela fazia isso. Não fora por acaso que ele próprio estranhou que sequer uma centelha de desejo lhe tivesse perpassado o espírito. Mas evidentemente, nada falaria a respeito. Se dissesse alguma coisa, seria o primeiro a ouvir que ele a preferia dopada, porque assim ela cedia a seus caprichos e ficava vulnerável.
XII
“Yitgadal v´yitkadash sh´mei raba b´alma di-v´ra chirutei v´yamlich malchutei b´chayeichon.” As palavras do rabino ecoavam solitárias na manhã fria. Finda a cerimônia, depois que um dos irmãos Feldon fez uma apreciação da vida do pai no mínimo ambígua, Ida se afastou e caminhou cabisbaixa até o túmulo do ex-procurador Alberto Nisman, que ela conhecera bem, e colocou uma pedrinha em cima da lápide. Na hora de lavar as mãos, com o motor do carro ligado, ela se saiu com a mais extemporânea das ideias. “Não tem quase nada de comida em casa. E como vamos receber o pessoal do comitê político, pensei que talvez você quisesse ir visitar sua empregada e comer alguma coisa por aí. Estou tão sem cabeça para fazer alguma coisa. Acho que preciso de um cochilo. Mais tarde, a Dora quer que eu vá com ela comprar lingerie nova – que ela tem vergonha de dizer à vendedora que é para ela.” Maurício só guiava e tentava se distrair com a beleza da paisagem. Chegando ao perímetro urbano, viu pleo retrovisor que ainda estava de quipá, que tirou prontamente. Naquele instante, uma avassaladora sensação de cansaço de apoderou dele. Pobre mulher, pensou. De repente lhe pareceram tão mais terrenas as súplicas adolescentes de Laura para que se despojasse na cama. E como ignorar a ternura incondicional de Carla Whitehill, que àquela hora talvez estivesse na porta de um teatro do West End londrino. Na recepção do Kavanagh, ele foi telegráfico. “Vou sim visitar a Dolores e depois vou para casa descansar. Amanhã o dia será longo e ainda não me refiz do fuso totalmente.” Era fim de linha para Ida Shtick. Na verdade, o pai de Maurício bem que teria sorrido desse sobrenome. Antes de chegar ao hospital, as mensagens neurotizantes começaram a chover pelo celular. E, com um sorriso, ele entrou no quanto de Dolores, tentando esquecer que Ida existia. “Que passó, cariño?” Dolores riu com um só canto da boca quando o viu entrar com um grande buquê.
*
Como romancista bissexto, aprendi com João Rego que não se deve tentar explicar a ficção. Mas como recebi por e-mail alguns comentários (acreditem ou não, muita gente nem sabe o que é Facebook, como eu próprio não sabia até pouco mais de 3 anos), gostaria de dividir com vocês o conteúdo de um deles que me chamou a atenção. Uma de minhas mais caras leitoras, mulher cultíssima, irreverente e de gostos variados, se sentiu incomodada com o sobrenome do banqueiro. Embora em nenhum momento seja dito que ele é judeu, há bons indícios de que o seja. Pois eis que o sobrenome com que o batizei é “Geldmacher”, que significa uma espécie de “fazedor de dinheiro”, ou o que os americanos chamam de “money maker”. Gentilmente, ela me chamou a atenção para o fato de que está cansada de ver os judeus ser apontados como gente invariavelmente próspera, como se não houvesse aqueles pobres, que fazem fila para receber donativos, aqui mesmo em São Paulo.
Expliquei a esta amiga, que é judia, que minha licença poética buscou um efeito jocoso, à la Dickens, que gosta de unir nomes que juntam substantivo com um verbo de ação, ou mesmo batizá-lo do ofício do personagem – “Gravedigger”, “Plumpicker”etc. Não foi por outra razão que denominei “Shtick” a personagem feminina, palavrinha atípica mas que, em jargão iídiche, ao que me consta, pode significar uma espécie de mania, de um TOC, de um padrão recorrente de neurastenia, forma de camuflar um transtorno num traço divertido para os iniciados. Na longa conversa que se seguiu, implodimos alguns sobrenomes judaicos característicos tanto na linha oriental, dita sefaradita, quanto na europeia, dita asquenazita. A necessidade de refazer a vida ao cabo de perseguições, fez de vários povos poupadores agressivos, à margem do sistema bancário, especialmente as minorias. Daí os sobrenomes com ouro, prata, diamante e pedras preciosas – Gold, Goldman, Goldfarb, Silver, Zylberstajn, Rubinstein, Saphyr, Zaphir, Diamant, Diamond etc. Na área mediterrânea, Joia, Safira e Fortuna são só mais alguns. Outros tantos – até de especiarias como açafrão (Safra), pimenta (Pffefer), ganharam formas traduzidas.
“Dourado” – peixe e metal – pode até ser um deles. Logo, eu não estaria nem um pouco disposto a dar um tiro no meu próprio pé. Mas, aqui vai meu apelo à amiga: não traga das fileiras do “politicamente correto” a censura à irreverência e à licença poética, mesmo que no limite do tolerável. Nem eu nem você estaremos mais aqui para ver. Mas a vida nessa Terra está ficando absurdamente chata. Pela primeira vez, começo a entender a inevitabilidade da guerra e a necessidade de irmos viver longe do planeta, como preconizava ilustre astrofísico inglês recentemente falecido. Portanto, o nome do banqueiro é mesmo Geldmacher. E no desenvolvimento do roteiro, se um dia o fizer, sem dizê-lo explicitamente, farei dele um banqueiro húngaro de origem germânica, que nada tem de judeu. Não por medo da patrulha, mas por amor à literatura e às pistas nem sempre acuradas. Obrigado pelo seu comentário. Espero que você leia este resumo.
Um abraço,
Fernando