Fui, em Pernambuco, o primeiro jornalista a entrevistar o recém-chegado Arcebispo de Olinda e Recife, dom José Cardoso, indicado ao Vaticano pelo Cardeal-Arcebispo do Rio de Janeiro, dom Eugênio Sales, e prontamente nomeado pelo Papa João Paulo II, para substituir dom Hélder Câmara, que completara 75 anos, e enviara ao Pontífice a carta-renúncia, prontamente aceita pelas autoridades eclesiásticas de então. O mesmo não aconteceu ao próprio Dom Eugênio, que completou a idade-limite e permaneceu no cargo por vários anos mais, “até partir desta para uma melhor”. Já Dom Hélder, visto num Papado conservador como o “Arcebispo vermelho”…
Mas voltemos a Dom José, um religioso da Ordem Carmelita, que vivia em paz e quase anônimo numa diocese inexpressiva no Interior de Minas Gerais. Eu era Diretor de Redação do Jornal do Commercio do Recife, e quando solicitei a entrevista, não era para ser feita por mim – e sim pela repórter Nara Lúcia, profissional experiente que cobria o setor e tinha um ótimo relacionamento com dom Hélder, bem como com as diversas lideranças de todas as demais religiões no Estado. O novo Arcebispo, no entanto, exigiu que a reportagem fosse feita pelo Diretor de Redação do Jornal, e que o texto final fosse submetido à sua apreciação, antes de ser publicado. De início, pensei em cancelar a entrevista, não tinha cabimento essa exigência. Mas, depois, ponderei que – a não ser por um precedente que eu não pretendia abrir – não tinha por que negar a Dom José acesso ao texto que seria publicado: eu não iria modificar uma palavra que ele falasse ou deixasse de falar, não iria cortar ou acrescentar qualquer informação, por isso terminei por concordar em submeter à sua apreciação o texto que eu ainda iria escrever, da entrevista que ainda faria.
Eram os primeiros dias do novo Arcebispo no posto – mas mesmo nesse curto espaço de tempo ele já havia fechado duas instituições criadas por Dom Hélder, transferira alguns párocos de suas paróquias, encostara outros e começava uma queda de braço com o padre Reginaldo Veloso, o carismático vigário que há muitos anos conduzia a festa de Nossa Senhora da Conceição, em Casa Amarela, um dos eventos do calendário da Igreja Católica mais expressivos do Estado, reunindo centenas de milhares de pessoas a cada comemoração. O Padre Veloso era um dos vigários mais próximos ao ex-Arcebispo. Ao mesmo tempo, o estilo conservador de Dom José patrocinava uma divisão entre os católicos, com uma parte ainda saudosa das pregações de Dom Hélder, de cunho social, e a visão da Igreja difundida pelo seu substituto, conservador e atento apenas às palavras do Evangelho. Em resumo: em muito pouco tempo o novo Arcebispo de Olinda e Recife havia “rachado” a Igreja local, e lutava para apagar qualquer lembrança que levasse ao seu antecessor. Foi nesse “angu de caroço” que, sem querer, eu fui enfiar minha colher.
No texto que eu iria escrever, não pretendia subtrair ou acrescentar uma palavra na entrevista que seria feita –mas também não pretendia deixar de interrogar Dom José sobre tantas medidas polêmicas e tantas decisões que apontavam para um desmonte de tudo aquilo que havia sido construído por Dom Hélder, inclusive duas instituições diretamente ligadas à Arquidiocese, definitivamente fechadas pelo novo Arcebispo.
Nesse mesmo tempo, na Redação do Jornal, nós déramos início à publicação de uma série de reportagens, a cada domingo, cujo título era exatamente “O Desmonte da Igreja”, assinada por Juracy Andrade, um dos nossos editorialistas – mas, igualmente, um experiente repórter, ex-dominicano com cursos concluídos em Roma e anos de estudo e reflexão num monastério francês. “Nêgo Véio”, como carinhosamente Juracy era tratado na Redação, era ligado a Dom Hélder, tinha várias fontes entre os seguidores do ex-Arcebispo, antecipava-se, divulgando informações sobre os passos futuros de Dom José. Quando cheguei para a entrevista, previamente acordada, deu para sentir que o clima não era bom. O novo Arcebispo questionou algumas daquelas informações publicadas por Juracy, disse que não eram verdadeiras, que o autor da reportagem era “um homem que traíra os votos que fizera e deixara a Igreja pela vida mundana”. Tentei argumentar que o jornalista era um profissional sério, ético, cuidadoso na apuração – e que o jornal estava à total disposição do Arcebispo para contestar todas as informações. Nesse clima, fiz a entrevista. Redigi o texto e, como prometido, levei os originais para que Dom José lesse, cuidadosamente, e depois devolvesse para que a entrevista pudesse ser publicada na edição do domingo. Lembro bem que ele fez apenas uma modificação no texto original: quando perguntei como Dom José Cardoso se sentia, chegando em Pernambuco para substituir uma figura carismática o quanto era Dom Hélder Câmara, ele respondeu com uma frase bíblica, pronunciada em Latim, – o que não era minha praia. Na sua resposta, ele dizia: “eu não cheguei para substituir Dom Hélder; eu sou aquele que vem depois” . Feitos os ajustes, o texto foi publicado, ele ficou feliz por um lado e indignado por outro: na mesma edição, estava lá, na página seguinte à entrevista de Dom José Cardoso, mais uma matéria assinada por Juracy Andrade, dentro da série “O desmonte da Igreja”. A partir daí, não houve mais trégua nem diálogo, entre o Jornal do Commercio e a Arquidiocese de Olinda e Recife.
Padres conservadores de algumas paróquias pregavam na missa contra o Jornal do Commercio, aconselhavam os assinantes a cancelaram suas assinaturas, eram apoiados por uma parte dos fiéis, que ampliavam a campanha contra a liberdade de informar. Do Rio de Janeiro, recebi um telefonema de Dom Eugênio Sales, pedindo que eu “ajudasse a Igreja de Cristo” – que Dom José Cardoso carecia de apoio e compreensão. Deve ser dito que a série iniciada por Juracy Andrade dava sinais de exaustão, já não havia fatos novos a serem abordados, até em nome do bom senso era hora de parar. E paramos.
Nesse clima convulsionado, eis que se anuncia, na portaria do Jornal, um dos bispos auxiliares da Arquidiocese, Dom João Terra, que me pedia para recebê-lo. “Lá vem mais bronca”, pensei comigo mesmo – e mandei o religioso subir para o meu gabinete, no terceiro andar do edifício-sede.
O arcebispo auxiliar, apontado com um homem de vastíssima cultura, especialista em línguas antigas, como o hebraico e o aramaico, chegou à minha sala, deu boa tarde e, quando esperei que ele também viesse registrar mais queixas contra as reportagens de Juracy Andrade, para minha surpresa disse que estava indo embora: era muito ruim o clima na Arquidiocese, e pior ainda a sua relação com Dom José Cardoso e com a irmã do Arcebispo, uma espécie de tutora e guardiã do Arcebispo. Ouvi, surpreso, aquele rosário de críticas – e mais surpreso ainda quando Dom João Terra afirmou: “O senhor pode publicar tudo isso que eu estou lhe dizendo. Não estou pedindo reserva nem falando em off..”
Agradeci a Dom João Terra pela confiança, mas não publiquei: o clima entre o Jornal e a Arquidiocese já era ruim – divulgar publicamente tudo aquilo que o Arcebispo Auxiliar afirmara era jogar querosene na fogueira e, até mesmo em função do cargo que exercia, era hora de atuar mais como bombeiro do que como incendiário. O tempo passou, Dom José Cardoso moldou, durante sua gestão, a Igreja do Recife e OIinda à sua semelhança, alguns párocos que se mantiveram fiéis à “escola de Dom Hélder” não puderam ser removidos, como o Padre Edvaldo Gomes, da Paróquia de Casa Forte, por exemplo – “aquele que veio depois” também completou 75 anos, renunciou e recolheu-se a um convento carmelita – que era sua Ordem.
Quando Dom José Cardoso ainda ocupava a Arquidiocese, estava às vésperas de completar 75 anos e enviar ao Vaticano a carta-renúncia, eu escrevi um longo artigo num jornal alternativo, cujo título era exatamente “Ninguém Escreve ao Arcebispo”. No texto, eu dizia que ele ia deixar a Arquidiocese “órfão de seguidores e viúvo de amizades” – e que sua gestão à frente da Igreja do Recife e Olinda, era uma página que em breve seria esquecida. Hoje, eu não escreveria isso: Dom José Cardoso chegou a Pernambuco para cumprir uma missão, delegada por seus superiores – desmontar uma igreja progressista – e como um homem disciplinado, trabalhou por isso enquanto teve saúde e esteve no seu posto.
Finda sua gestão, teve a dignidade de recolher-se silencioso, não deu uma única palavra sobre o seu substituto e, hoje, sua história lembra um pouco a do Papa Bento XVI: a gente sabe que está vivo, mas ninguém vê.
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