Clemente Rosas

Vladimir Carvalho- by Sergio Amaral.

XI – Vladimir Carvalho

O “Fest-Aruanda”, festival de cinema paraibano que vem sendo realizado há alguns anos, proporcionou para mim a oportunidade de rever Vladimir Carvalho, velho companheiro de lutas estudantis em João Pessoa, hoje cineasta famoso, talvez a maior figura do filme documentário no Brasil.

Conheci Vladimir no início dos anos 60 do século passado.  Nascido em Itabaiana, era estudante pobre, que tinha de trabalhar para ajudar a família em dificuldades, pela perda prematura do seu chefe.  Eram anos de liberdade, esperança, e muita efervescência nos meios universitários.  Eu estudava Direito, e ele, confesso, não lembro mais o que.  Mas “agitávamos” bastante, nas manifestações políticas da UEEP – União Estadual dos Estudantes da Paraíba, e eu acompanhava experiências dele com teatro e cinema.  Comunista, como o pai o havia sido, a partir de um certo tempo começou a convidar-me para ingressar no “clube”.  E eu, apesar de ter antecedentes na família (um tio, grande admirador de Prestes), relutava: o PCB não era legalizado, embora fosse, naquele momento, “tolerado”.

Até um dia em que, tendo sido designado para representar a UEEP em um seminário de estudos sobre educação, promovido pela UNE – União Nacional dos Estudantes na Bahia, recebi dele uma carta de recomendação para o coordenador dos “comunas” no certame: o militante piauiense Moacir Andrade (que depois converteu-se em grande jornalista carnavalesco no Rio).  A carta dizia que eu era “um companheiro novo no Partido”.  E eu, sem ter sido consultado antes, aceitei passivamente a condição definida pelo meu recrutador.

Da nossa militância em João Pessoa, quero recordar um episódio pitoresco.  Chegara à cidade, vindo de capitais do Sul, o grupo de teatro de um movimento autointitulado “Rearmamento Moral”.  Afirmavam seus pregoeiros ter o apoio de personalidades ilustres, como um neto de Ghandi e o velho general Juarez Távora, tendo como proposta a mudança social a partir das consciências individuais: uma clara alternativa às propostas socialistas e revolucionárias.

Quando a encenação da “peça” foi anunciada para o tradicional Teatro Santa Rosa, resolvemos produzir um manifesto contrário, começando por dizer que a hora não era de “rearmamento”, mas de “desarmamento” (estávamos em plena “Guerra Fria”).  Mas alguns companheiros mais sectários resolveram perturbar o espetáculo, espalhando no saguão do teatro um pó que provocava espirros e tosse nos assistentes.  E a coisa teve o seu efeito, pois quando os espectadores, ainda tossindo e espirrando, passavam, na volta do teatro, pelo “Ponto de Cem Réis” (o coração da cidade), ouvíamos as imprecações:

– Os comunistas safados botaram pimenta!

Tranquilo, Vladimir ria, e continuava a distribuir os panfletos do nosso manifesto…

Mas a militância estudantil acabou por levar-me a uma das cinco vice-presidências da UNE, e me desloquei para o Rio. Vladimir permaneceu em João Pessoa, dedicando-se ao cinema e participando da concepção de “Aruanda”, o documentário pioneiro da cinematografia paraibana.  Produziu e dirigiu depois, com João Ramiro Melo, “Romeiros da Guia”, outro curta-metragem ainda hoje bem referido pela crítica especializada.

Passa-se um ano e, concluído o meu mandato na UNE, após uma longa viagem pelo mundo socialista (URSS, Polônia, Romênia, Checoslováquia, Iugoslávia), eu me vejo de volta a João Pessoa, no justo momento da famosa crise dos mísseis soviéticos instalados em Cuba, em que se temia a invasão dos “marines” e o fim da experiência socialista na ilha – a grande referência da juventude latino-americana na época.  Era preciso, mais do que nunca, “agitar”.  E a UEEP, então sob a presidência do estudante de medicina Amilton Gomes, convocou uma manifestação para o Ponto de Cem Réis.

Normalmente, não se pedia autorização para esses “comícios relâmpagos”, que não representavam grande perturbação da ordem pública.  Mas, daquela vez, alguém teve a infeliz ideia de pedir.  E o Secretário de Segurança negou, alegando falta de tempo para “garantir a nossa segurança”.

Quixotescamente, resolvemos fazer a manifestação “na marra”.  Mas eu tive a feliz ideia de deslocá-la para a Praça João Pessoa, onde estavam, lado a lado, o Palácio do Governo e a Faculdade de Direito. Do portal da Faculdade, fomos arrancados pelos policiais: Amilton, orador do momento, eu, que estava ao seu lado e tentei impedir-lhe a “remoção”… e Vladimir.  Ele que me perdoe, mas nem vi o que estava fazendo para ser arrastado também.

De maneira inusitada, os policiais militares nos levaram para o quartel do 15º Regimento de Infantaria do Exército, onde fomos trancafiados.  Mas por poucos minutos: os colegas manifestantes invadiram o Palácio do Governo, e o Chefe da Casa Civil, meu professor e amigo de família Luiz de Oliveira Lima, mandou o delegado Chico Maria resgatar-nos.  Desculpas, esclarecimentos, e no dia seguinte fizemos a manifestação, com o beneplácito das autoridades competentes.

Após 1964, Vladimir emigrou para Brasília, onde se afirmou como professor da Universidade e cineasta.  Eu já estava no Recife, como técnico da SUDENE, e também paguei o meu preço pelo passado de militância estudantil.

Recordo estes fatos porque meu homenageado, na fala de apresentação do seu belo documentário “Giocondo Dias – Ilustre Clandestino”, no citado “Fest-Aruanda”, fez questão de revivê-los, ao manifestar sua alegria pela minha presença e pelo nosso reencontro.  Pois, nesses quase sessenta anos, eu só o tinha visto de relance, embora acompanhando, de longe, sua trajetória de sucessos.  Que em nada o afetaram: nem no falar, bem paraibano, nem no seu compromisso social e político, nem nas relações humanas.  Só os cabelos embranqueceram, como os meus.

Guardo, com carinho, o álbum feito pelo Centro Cultural Banco do Brasil, em homenagem pelos seus 70 anos, que uma amiga residente em Brasília apanhou para mim, com o oferecimento abaixo transcrito:

Clemente,

Que bom que seja pelas mãos de nossa comum e querida amiga Cinira que eu lhe passo este resumo de vida vivida.  Melhor portadora não poderia ser: companheira de nossas lides políticas, nos gloriosos anos 60.  Saudades também dos bons tempos da poesia e dos feitos da “Geração 59”, você à testa com Vanildo e Bezerra.  Me emociono só de recordar.

Seu de sempre admirador e amigo

Vladimir  – 25/12/o8