Paulo Gustavo

Anthony hopkins e Jonathan pryce – em Dois Papas.

Filmes sobre os bastidores da Igreja Católica sempre têm uma dose de saudável voyeurismo. O Vaticano, cioso dos seus segredos, todos muito humanos, excita a nossa curiosidade, o que não é pecado, embora seja uma forma de gula, sobretudo para os olhos. O exemplo mais recente é o excelente “Dois Papas”, de Fernando Meirelles, protagonizado por Jonathan Pryce e Anthony Hopkins que encarnam, respectivamente os papas Francisco e Bento 16. Ambos dão um show de interpretação, em especial quando não são verbais: olhares, tiques nervosos, sorrisos, gestos aparentemente simples, tudo o que é signo de distinção entre personalidades tão diferentes. Também merece destaque o roteiro de Anthony McCarten, que foca numa interlocução permanente e instigante entre os tipos humanos que estão por trás dos dois sacerdotes.

Num tempo de polarização acirrada, assistir ao filme de Meireles é um apaixonante exercício de crença no diálogo. A Palavra é que é a grande protagonista do filme, a agente da verdadeira mudança. O fato é que a polarização Bento-Francisco é um segredo de todos conhecido: naquele, enquanto cardeal e papa, braço direito de João Paulo 2º, estampa-se, até nos detalhes mais supérfluos, um conservadorismo incontornável; este, de formação jesuíta, cardeal argentino de larga prática social, logo foi identificado com a renovação, as mudanças e a atualização da Igreja. O primeiro, um alemão metafísico, um teólogo e intelectual de gabinete, sem maior vocação pastoral; o segundo, ainda que fruto da disciplina jesuítica, um pastor voltado para o social, capaz de renovar e atrair mais fiéis a um rebanho já minguante e desmotivado.

Eleito à sombra de João Paulo 2º, Bento 16 parece deslocado no trono de Pedro. O pragmatismo, tão inimigo de qualquer metafísica, repele o teólogo arguto: estar à frente da Igreja é um fardo, requer outras habilidades que não as suas. Ratzinger, alemão, apodado, não sem motivo, de “o rotweiller de Deus”, mal esconde seu espírito autoritário e um tanto ríspido. No filme, isso é bem marcado desde os primeiros instantes em que se encontra a sós com o então cardeal argentino Jorge Bergoglio. Este, por sua vez, enquanto personagem, vai crescendo à medida que insufla a dúvida nas certezas do outro. É, a princípio, no retiro de Castelgandolfo que se inicia a longa e secreta conversa entre ambos. Enquanto lá fora, crescem em série os escândalos da Igreja…

Se é evidente que o filme é explicitamente pro-Francisco, também é de se notar como uma sacada de mestre que nem por isso Bento 16 sai diminuído ou antipatizado, até porque, com sua renúncia, expõe-se a ser outro: mais humilde e mais compreensivo. A rigor, com sua renúncia (pelo menos no filme), ele prepara o caminho que mais parece ter um dia temido: o da mudança. A jovialidade de Bergoglio, dono de uma expansiva personalidade, termina por seduzir o alemão e torná-lo mais humano. Bento renuncia contra todos os protestos do cardeal Bergoglio, seu opositor, e este, por sua vez, que já fora bem votado no conclave que escolheu Ratzinger, termina, como se sabe, por ser eleito.

“Dois papas”, com seu enredo enxuto, é surpreendente ao prender nossa atenção sem cair no sensacionalismo e no proselitismo. A própria vida de Bergoglio, tal como evocada pelo filme, não é uma história sem mácula. Os anos de chumbo da ditadura argentina, tão terríveis e cruéis, deixaram-lhe cicatrizes profundas e feridas por fechar. Visto como “colaboracionista”, tem “culpas em aberto” como diria Guimarães Rosa pela voz de Riobaldo. Com sobriedade, o filme nos lembra a violência, a tortura e a morte no país vizinho, mostrando que Bergoglio fez o que pôde para defender as ações sociais da Igreja e, para tanto, teve que fazer concessões e conversar com os monstros de plantão.

Em suma, o belo filme de Fernando Meirelles é a história de um encontro que, bem menos que religioso, é um documento humano e poético, em que conflito e convergência correm lado a lado. Ver o outro, imaginar-se em seu lugar, ter empatia, conversar sem buscar domínio, eis as lições de tolerância que ficam e que nem sempre vêm com a prática religiosa, mas sobretudo com homens de boa vontade.

Paulo Gustavo