Clemente Rosas

Parque Ecológico de Pipa (RN).

Aos “trilheiros” do Parque Ecológico de Pipa (RGN)

Não sei bem o que me motivou, há quinze anos, já com 65 de idade, a encarar a Trilha Inca, em demanda de Machu Picchu, a cidade sagrada dos peruanos.  É verdade que, vinte anos antes, eu havia enfrentado uma aventura quase irresponsável: vir andando de Ponta de Pedras, em Pernambuco, até a Praia Formosa, na Paraíba, empreitada que me tomou dois dias, e me fez passar fome e sede no trecho de litoral entre Pitimbu e Jacumã, quase completamente deserto naquele tempo.  Mas havia sido uma experiência temerária, isolada, que não tive condições práticas ou disposição de reeditar.  No caso de Machu Picchu, foi talvez o fascínio da História, e a sedução de uma cidade perdida por três séculos, sobre a qual li numa revista de turismo de aventuras, que me atraiu.

Desta caminhada deixei registro em seis crônicas, publicadas no Jornal do Commercio de Pernambuco (10.9, 11.9, 17.9, 18.9, 24.9 e 26.9 de 2005).  E foi uma experiência inesquecível: pelo desafio das íngremes escadas de pedra, pela altitude (4.215 metros no ponto mais elevado), pela beleza exótica da paisagem, pelo acolhimento carinhoso dos peruanos, quase todos índios.  Depois tomei gosto, e me incorporei a um grupo de andarilhos do Recife, os “Retirantes Urbanos”, fazendo com eles várias trilhas domingueiras, quase todas em montanhas: Mata do Bitury, Vale do Catimbau, Mata do Zumbi, Belém de Maria e São Benedito do Sul, em 2006.  Serra do Ponto, Serra Negra e Mata do Aparauá, em 2007.

Em 2008, a convite do meu filho Eduardo, que mora em Brasília, andei lá pela Chapada Imperial.  Em 2009, fizemos, eu, ele e parentes, duas caminhadas pelo litoral norte da Paraíba: da Baía da Traição à Praia Formosa (dois dias) e de Barra de Mamanguape a Formosa.  Em 2010, conheci a Trilha das Cachoeiras, em Bonito (PE), e voltei à Mata do Zumbi.

Mas foi só em 2012, mais uma vez com meu filho e “escudeiro”, organizador de tudo, que voltei ao exterior, na Patagônia Chilena, percorrendo os caminhos nevados do parque ecológico de Torres del Paine.  Desta empreitada dei também depoimento: Jornal do Commercio, 11.11, 23.11, 25.11, 27.11 e 02.12.2012.  Seguiu-se um longo intervalo de seis anos, sobretudo porque eu não conseguia fazer a atrativa subida da serra de Taquaritinga, nove vezes cancelada ou postergada por motivos diversos: guia indisponível, “quórum” insuficiente, mau tempo, problemas familiares meus…

Já em 2018, a convite de minhas sobrinhas, resolvi revisitar a serra da Caxexa, no município de Casserengue, região do Curimataú paraibano, que ficava no limite da fazenda do meu pai.  Já havíamos, muitos anos antes, com filhos ainda pequenos, escalado a serra.  Mas a trilha organizada pela Secretaria de Turismo da Prefeitura era violenta: quase dez quilômetros sobre corcovos de serra pedregosa, coberta apenas de macambiras, croas de frade, urtigas e xiquexiques.  Exausto, com os solados das duas botinas despregados, amparado pelos sobrinhos, desisti diante do último corcovo, e derivei por um grotão até o vale do rio, de onde fui levado de carro até o ponto terminal da caminhada. No ano seguinte, voltei lá, para rever, mesmo de longe, numa colina à margem do rio Curimataú, a casa de fazenda do meu pai, onde havíamos passado tantas noites felizes de congraçamento familiar, regadas a vinho acompanhado de queijo de cabra de produção própria.  Mas desta vez tomei apenas uma trilhinha para idosos, mais curta e mais plana.

E eis que agora, em janeiro de 2020, meu filho Eduardo me convida, como a todos os parentes, para conhecer o Parque Ecológico de Pipa, no Rio Grande do Norte.  Segundo ele, tratava-se de caminhada leve, quase totalmente no plano, dentro de um bosque sobre a falésia da famosa praia.  Apenas uns quatro quilômetros.  A adesão foi geral, incluindo meu outro filho, neta, sobrinhas e amigos, num total de 22 pessoas, entre adultos e crianças.

Bem, a trilha foi razoável, embora com algum desconforto, pelo solo arenoso e pelo mormaço resultante da rala cobertura dos arbustos, apenas suavizado pelos pés de mangaba e caju que encontramos, e nos mitigaram sede e fome.  Além do que, havia dois trechos em desnível, servidos por escadas toscas: um menor, logo no começo, para acesso a um mirante, outro maior, no final, quando se descia a barreira para um banho de mar.  Sendo a falésia mais elevada do que as que eu conhecia, no Cabo Branco e na Barra do Gramame, na Paraíba, qualquer queda seria fatal, e por isso a escada era guarnecida por cordas, dos dois lados.

Na primeira escada, encontramos outro grupo de caminhantes, e fui interpelado por um rapaz:

– Me desculpe a pergunta, mas quantos anos o senhor tem?

– Setenta e nove.

– Como é o nome do senhor?

– Clemente

E ele voltou-se para as moças que o acompanhavam:

– Estão vendo aqui?  “Seu” Clemente, com 79 anos, está encarando bem a trilha, e vocês aí com moleza, se queixando…

E na volta do percurso, quando eu subia lentamente a escada maior, apoiado com uma das mãos na corda lateral e a outra no cajado inca, que comprei no caminho de Machu Picchu, e me tem servido em todas as trilhas, desde então, surpreendi-me ao vê-lo no topo, como para conferir a minha performance:

– Olhem aí!  Ele aguentou!  Palmas para “seu” Clemente!

Guardo desta trilha a visão das paisagens mais belas que lembro ter visto, a partir dos seus mirantes: as falésias vermelhas, em desenho sinuoso, traçado pelas enseadas, tendo aos pés o mar azul, bordado de espumas brancas.  E, como é de se esperar dos idosos, não tenho ilusões em relação aos aplausos recebidos: podem ser entendidos como aqueles dados aos velhos atores que se despedem dos palcos.  A confirmar.