Fernando Dourado

Paris, margens do Sena.

A jornada começa com um despertar que não vinga. Por força do hábito, pela idade, e agora pelo estado de alerta que permeia os tempos de coronavírus, acordo às 6 da manhã, muitas vezes antes – quando no Brasil ainda é 1 hora, se tanto. O que posso fazer de bom tão cedo? A essa altura da primavera, ainda faz frio, e as temperaturas só subirão mais tarde, perto do meio-dia. Volto então para a cama e engato um sono raso, de inegável função reparadora, apesar de entremeado de sonhos. Então, pouco antes das dez horas, penso com apetite num croissant comprado de véspera, com uma xícara grande de capuccino solúvel, que é dos melhores. No banheiro, faço uma verificação geral das condições do corpo, e, até hoje, vi uma versão levemente melhorada do que esperava. É essa autoindulgência que me ajuda a segurar a onda.

Às dez horas, abro a janela para espantar com ar puro e claridade os remanescentes virais que estejam espalhados em tapetes, solas de sapato e sacolas de compra. Os vizinhos se saúdam como jamais fizeram em tempos de paz e todos querem saber da enfermeira de reanimação como foi o longo plantão de 48 horas. Ela só responde com um sorriso triste e aponta o céu. “Il fait beau aujourd´hui, n´est-ce pas?” Então todo mundo se despede com um até amanhã, os mais carentes dirão até mais tarde, e os vizinhos que não vejo, que estão no mesmo prédio, são reconhecíveis audivelmente: o de cima é o rouco, com voz de fumante. Do mesmo andar que o meu, vem a voz esganiçada de uma mulher carente, que reluta em acabar o papo como se temesse a solidão. Eis um rito de verificação sagrado nesses tempos. Estaremos todos presentes amanhã?

Antes de sentar à mesa, alongo os braços para desempenar a coluna, quase a ponto de ouvir um estalo. Respiro fundo e conto por quantos segundos consigo segurar o ar. Se não chegar a 15, é melhor ligar para o hospital e torcer para ser entubado – expressão execrável que em francês, forçosamente, lembra a portuguesa. Geralmente fico na faixa dos 40 segundos. Estou bem. Não conseguiria segurar até 1 minuto por conta da asma, mas, com esforço, chegaria a 50 segundos. Como parei de roer as unhas porque elas podem ser morada de vírus, elas estão grandes como jamais. O que diria mamãe? O que fazer? Talvez comprar uma lixa. Ou então, desinfetá-las longamente para depois roê-las, como faço desde os 15 anos. Os cabelos também estão espaventosos. Ao fim do confinamento de Wuhan, os chineses admitiram que cortar o cabelo era aquilo com que mais sonhavam.

Então começo a trabalhar. Sem planejar muito, ataco as prioridades à minha maneira, por impulso. Escrevo artigos, leio um pouco, respondo os e-mails e vejo o que entrou pelo celular – de longe as mensagens mais chatas, invasivas e inócuas. Terminado o primeiro par de horas, começa a se operar o ritual do almoço, um dos momentos altos do dia. Isso na França é puro prazer. Apesar dos tempos terríveis, prevalece um comércio de qualidade na vizinhança, e encontra-se praticamente tudo do que se precisa para a boa culinária. O que é nauseante é que todos os dias são iguais. Logo a sopa de lagosta que poderia singularizar o almoço do sábado, está ali tão disponível quanto esteve no jantar da segunda-feira. A banalização dos prazeres, que se aplica aos bons vinhos, dá a medida do quanto a privação de liberdade de ir e vir é mortal. Sem ela, a vida perde o sal, fica inodora, quase incolor.

Ontem percebi mais indícios de que as pessoas estão mesmo enlouquecendo. E eu também – se é que ainda tenho espaço para piorar. Minha saída para essas situações sempre foi caminhar. Mas agora, nem isso posso, salvo por uma hora em que tenho outras obrigações a cumprir. Então preencho um formulário de saída e escapo para as ruas do bairro. Pego a sacola de mantimentos, coloco a máscara e as luvas, e me obstino em cumprir a meta dos cinco mil passos em uma hora, prazo em que viro sapo. Nas pracinhas, gralhas e corvos estão cada vez mais desenvoltos. Agora fazem rasantes sobre nossas cabeças sem qualquer cerimônia, esquecendo que nós, os estranhos humanos, podemos sempre ser mais perigosos do que eles. Não é qualquer pisada firme que espanta um pombo de sua baguete hoje em dia. Nunca o filme Birds me pareceu tão palpável.

Os jovens também estão sorridentes, como se gozassem de imunidade irrestrita a tudo. Aproximam-se acintosamente, especialmente se você está junto do caixa automático. Com medo de morrer, sempre pode escapar uma cédula. É como se entre si, eles dissessem: “Você chega perto de um velhote desses e ameaça falar-lhe diretamente, olhando-o nos olhos. Dentro de uns dias, eles vão lhe dar o que tiverem nas mãos com medo de levar um espirro no meio da testa.”  Quem também galgou um novo patamar de soberania nas ruas foram os mendigos. É deles a inciativa do “bonsoir, Monsieur”. O tempo primaveril e a vida ao ar livre os exime da chateação do confinamento. Dotados do que consideram uma imunidade universal, dada pelo tinto e o relento, chegam perto, ensaiam estender a mão, enfim, agem como se fossem nossos anfitriões.  Logo vão exigir um pedágio.

Na farmácia, compro solução hidroalcoólica, uma cartela de remédio para a faringite e sempre tento cavar alguma coisa sem receita médica, visto que as normas estão meio desmoralizadas. Foi assim que consegui sem “ordonnance” uma bombinha contra asma. Já estou com duas em estoque, eu que devo ter usado duas a vida toda. Na padaria do metrô há sempre uma fila espaçada, mas constante. Há mais duas padarias na mesma quadra, mas é aquela que tem a preferência geral. Pudera. Tudo o que se compra lá é “croustillant” – o pão, o palmier e os croissants. Tivesse uma distinção mais nítida do que é fim de semana e o resto, compraria um mil folhas. Mas assim explodo. Ontem, aliás, precisei tirar uma selfie para uma revista. Nunca meu rosto esteve tão redondo. O editor achou-a ótima. Ele não dirá, mas pensou que combina bem com o obituário. “Faleceu ontem em Paris, aos 62 anos,…”

No que diz respeito às compras, sempre fui meio francês mesmo. Evito supermercado e só levo o essencial para o consumo do dia, no máximo para dois. Nunca tive o fetiche brasileiro da compra de semana, e da compra de mês muito menos – a última data de 40 anos. Por fim passo na banca para pegar os jornais. Compro o Le Figaro e o El País, mas pouco toco neles. Sabê-los ali me dá uma sensação de segurança. Demais, há coisas que não caducam como os cadernos literários. No começo do confinamento,  era surreal ler os anúncios de filmes e peças de teatro em cartaz. Quantas estreias abortadas. Quantos sonhos não foram parar no beleléu. Por outro lado, quem estava assolado por dívidas, vive dias felizes, como não imaginava mais possível. Se o mal é geral, ninguém está mal. Um amigo do Brasil se regozija: “Afinal, consegui ligar o foda-se. Foi um ganho terapêutico.”

Às 20 horas, vai ao ar meu noticiário favorito. Antes gostava da France 2, mas percebi indícios de que estavam requentando matérias. Já a TF1 conta com um âncora mais simpático e com um médico que vive dias de glória. Com respostas rápidas e objetivas, consegue o feito de colocar a bola no chão e superar as tentações da prolixidade. Mas isso só pode fazer quem tem café no bule. Quem não tem, tenta ritualizar, esboça contextualizações e, no final, sucumbe ao próprio ridículo da pomposidade. Já os bons, estes voltam no dia seguinte. O fim do noticiário, lá pelas 9 horas, assinala também o fim do jantar e da garrafa de tinto da noite. Então me volto para o noticiário brasileiro. A sensação que tenho é que comemora-se um grande baile da ilha Fiscal. O capitão é a grande atração dessa farândola. Ele é o insuperável momento cômico do dia – tão torpe, tão caótico, tão imaturo. Obrigado, PT.

Vou então ao Facebook e dou uma olhada nos humores nacionais. Sempre tem alguém que apreciou minhas “trouvailles” parisienses, mas já não tenho cabeça nem tempo para rebater os comentários, alguns até divertidos. Por que? Ora, como todo mundo está com tempo sobrando, ai de quem der trela para um mínimo de discussão. Quando menos esperar, o debate estará conflagrado e a você, o dono da casa, só restará se retirar do recinto. Tem gente que politiza até mugido de vaca. Se falo do tédio do confinamento parisiense, tem uns que dizem que é por conta da política laxista francesa vis-à-vis os imigrantes. E lá embaixo, concluirá com uma patacoada de louvor ao capitão. Às vezes me ocorre que o filho mais novo dele o ameaça de morte ostensivamente. Saber o que eles vão urdir para o dia seguinte pode ser divertido. Nessas horas, vale a pena ler os “wise cracks” do Twitter, onde o narcisismo impera.

Lá pela meia-noite, tomo banho. É quando entra em vigência a tarifa mais barata. Preparo a cama para dormir, mas sei que o momento ainda está longe. Tomo um Lexotan para desaquecer as turbinas e espero que faça efeito. No Brasil, a noite apenas começa. Sofro por nada poder fazer por mamãe, salvo ter uma conversa ou outra por telefone, quase sempre entrecortada pelas interferências de meu irmão. Estivéssemos juntos, teríamos assunto de sobra e tenho certeza de que daríamos risadas e nos apoiaríamos. Privada do convívio da neta, ela perde boa parte do tempero do cotidiano. Ao telefone, não vai poder contar uma história como gosta, com a gesticulação enfática que é tão sua. E ainda tem a questão da comida. Quem aguenta comer essas rações de restaurante. ela que é tão refinada? Ontem disse que queria fatias douradas e banana frita. É a infância aos quase 90. Isso me aniquilou.

Quando vou para a cama, durmo logo. Repasso mentalmente as situações de risco a que posso ter ficado exposto. As moedas são as grandes inimigas da higiene da ponta dos dedos. Se eu pegar esse troço, terá sido por conta delas. O silêncio que vem da rua é espesso. As alterações de humor da calefação me chegam com nitidez e hora certa. Nunca imaginei que um radiador falasse, é como se fosse dotado de uma vida íntima, como se ali morasse um Poltergeist. Fecho os olhos e sinto o sono me envolver e levar. Mal tenho tempo de pensar nos jardins de Notre Dame, a uns quinze minutos de caminhada daqui. Tenho alguma saudade de minha rua em São Paulo, que dizem estar deserta. Penso em Boa Viagem, nas ondas cheias de espuma. E no filho celerado do presidente que lhe diz: “Olha lá, hein. Não te mete a comunista não que eu te furo, hein.” Então, sorrio.

De certeza mesmo, só que amanhã é domingo.