Paulo Gustavo

Há dez anos, uma pesquisa no Brasil revelava que o brasileiro toma muito banho (às vezes até três por dia) e lava pouco as mãos. Num país ensolarado e tropical, o banho, como sabemos, não é só higiênico como lúdico, além de herdeiro daqueles banhos dos indígenas que tanto encantaram os visitantes estrangeiros do Brasil colonial, o que por sua vez não escapou ao olho  sempre atento de Gilberto Freyre. Banhos de rio, de lagoas, de arroios. Refrescos ante os meios-dias ardentes. Também ao olho de Pero Vaz de Caminha não passou batida a higiene indígena, como sabemos por sua minuciosa e até indiscreta carta laudatória. Enfim, no capítulo dos banhos, temos a quem puxar. Isso é líquido e certo.

Mas o que dizer das mãos que, como bons primatas, usamos a torto e a direito, e às vezes mais a torto que a direito? Infelizmente, a História não é lá muito limpa, e a higiene, mais recente que gostaríamos de supor, e não só no Brasil. Mas lavar as mãos, não há como negar, é um gesto civilizatório (o adjetivo está na  moda, e não por acaso como o atestam doutos colunistas). Ainda crianças, aprendemos a lavar as mãos, embora muito a contragosto, por obrigação, para satisfazer nossos pais. Fernando Pessoa que, no seu grande “Poema em Linha Reta”, falou na “preguiça de tomar banho”, poderia também ter  falado de uma preguiça de lavar as mãos… Essa preguiça é mais comum do que se pensa, e muitos de nós já sofremos a sua pecaminosa sedução, inclusive médicos da melhor cepa. Há dois lustros, um notável médico de São Paulo, no rastro da pesquisa acima citada, dizia em entrevista à “Folha de S.Paulo” que, por incrível que pareça, há uma resistência de diversos médicos a lavarem as mãos… dentro dos hospitais… São crianças grandes driblando a vigilância dos pais… Mas com esse pecado podem nos arrastar para o inferno de uma infecção…

Ah o inferno. Falemos de santos. No caso, de um santo médico pouco conhecido no Brasil e a quem devemos o avanço civilizatório (difícil escapar agora a esse adjetivo) da lavagem das mãos como indispensável assepsia para médicos e não médicos. Refiro-me ao húngaro Inácio Filipe Semmelweis (1818–1865) que, antes de Pasteur, afrontou às infecções e à morte com a singela sugestão de que seus colegas e estudantes de medicina lavassem as mãos! Simples assim, como diríamos hoje. Mas que revolução fantástica! Não sem violência como costuma ocorrer com as revoluções! Não sem incompreensão! Não sem sacrifício. Eis o longo caminho para a simplicidade. Quem conta essa história e a conta muito bem e emocionadamente é outro médico — Louis-Ferdinand Destousches, que outro não é senão o grande escritor Louis-Ferdinand Céline, o célebre autor de “Viagem ao fim da noite”, o maldito antissemita e colaboracionista, mas igualmente o escritor que deslumbrou críticos e leitores em geral com uma prosa inconfundível, exaltada, metafórica, poderosa.

Semmelweis, como diz Céline falando do seu biografado, “era o fogo”. Poderíamos acrescentar: o fogo que veio para purificar. Médico estudioso e brilhante, ele observou que nove de dez operações terminavam com a morte por infecção da vítima, esta geralmente uma parturiente manipulada por mãos que vinham, sem qualquer higiene, da manipulação de cadáveres. Eis a razão da então frequentíssima febre puerperal. “De tanto se manifestar — anota Céline — [a febre das parturientes] parecia ser da ordem dessas catástrofes cósmicas, inevitáveis…”.

Acompanhando sua intuição e atento às suas observações, o obstetra húngaro recomenda a lavagem das mãos com uma solução de cloreto de cal a estudantes e colegas. Uma medida que, como bem observa seu biógrafo, “[…] não correspondia a nada do espírito científico da época”. Por sua vez, o próprio Semmelweis registrava com simplicidade sua revolucionária descoberta: “As mãos, por seu simples contato, podem ser infectantes”. A medida causou revolta e incompreensão, arrastando Semmelweis para um campo de ódio, intrigas e ataques que, à luz de hoje, nos parece de uma amarga ironia. Apesar disso, com sua “estranha” medida, a mortalidade das parturientes despenca… Ainda assim, o bravo húngaro é martirizado por colegas, superiores e pelo preconceito do seu tempo. E assim, pasmemos nós, foram “[…] necessários nada menos do que quarenta anos para que os melhores espíritos admitam e apliquem enfim a descoberta de Semmelweis”.

Eis muito resumidamente o drama do “precursor clínico da antissepsia”. O drama completo, o leitor encontra na biografia “A vida e a obra de Semmelweis”, um pequeno grande livro de Céline, traduzido por quem tem íntima convivência com a linguagem e o estilo do autor francês: Rosa Freire D’Aguiar.