Paulo Gustavo

Em “Tigres no Espelho”, o grande e recém-falecido crítico literário George Steiner faz uma bela e densa resenha da obra “Spandau: o diário secreto”, de Albert Speer, o célebre arquiteto de Hitler. Não só arquiteto como também ministro de armamentos e produção de guerra. Como se sabe, Speer, após a Segunda Guerra Mundial, passou vinte anos na tristemente famosa prisão de Spandau, em Berlim, onde fartamente escreveu sobre sua experiência no regime nazista. Não terá sido o primeiro nem o último homem a ter o espírito livre e desimpedido no confinamento prisional.

Um dos trechos do livro de Speer, citado por Steiner, bem nos parece uma ilustração de parte da cena política brasileira. Diz ele, referindo-se a Hitler: “Todos os militares tinham aprendido a lidar com uma grande variedade de situações incomuns. Mas estavam totalmente despreparados para lidar com esse visionário”.

Sem querer estabelecer correspondências diretas, que seriam temerárias e simplistas, ou seja, guardando as devidas diferenças, compartilhamos com os leitores a seguinte inquietação: estarão nossos militares preparados para lidar com Bolsonaro, considerando digamos, num eufemismo, as excentricidades do presidente da República? Aqui também valeria lembrar o que disse Speer acerca do seu chefe: “Ele realmente vinha de outro mundo.” Bolsonaro também parece vir de outro mundo, ou melhor, de um submundo, quer por sua própria história militar (“um mau soldado”, como disse o General Geisel), quer por uma ideologia que não ousa dizer seu nome, mas que faz adeptos quase religiosos entre aqueles que por Hannah Arendt foram muito bem conceituados como “escória”.

Como muita gente, penso que os militares se acercaram de Bolsonaro com o ânimo, de resto justificável, de por assim dizer temperá-lo, moderá-lo, como se o capitão e ex-deputado merecesse uma derradeira e necessária correção (ao que tudo indica, estão malhando em ferro frio…) Por sua vez, sabendo-se fraco e de alguma forma ciente do seu anacronismo ideológico, o próprio capitão reformado voltou-se para os militares, não obviamente para eles o tutelarem, mas para blindar-se de alguma forma com os fantasmas da força e da bandeira já desbotada e rota do anticomunismo. Enfim, um encontro de mútuas convergências no qual não faltou a bênção de fortes lideranças militares. Como fugir à missão de servir à pátria num momento de tanta turbulência? Este, o canto de sereia, tanto mais doce quanto mais sabem os militares que toda a República foi tutelada por eles próprios, seus fundadores. Mas o canto leva a conhecidos abismos, pois onde já se viu misturar política e militares, misturar duas ordens tão distintas! Bons militares sabem do perigo que é a contaminação política dos quartéis. Bons militares, como sugeriu o citado ex-presidente Geisel, são anônimos para o resto da sociedade. Por sua vez, aos bons políticos (não é o caso do presidente) repele a característica formação castrense, na qual ordem e hierarquia são valores com outra e potente conotação.

Mas nem civis nem militares parecem “preparados” para um presidente que refoge a parâmetros de qualquer racionalidade. Os primeiros, os civis, junto com as instituições, já sofrem diariamente o estresse do bonapartismo presidencial; e os segundos temem a contaminação política no seio da tropa. E com toda a razão. Por outro lado, os afagos obsessivos de Bolsonaro aos militares é mais um carinho de gato: os afagados mal sabem que o gato se afaga a si mesmo. Em suma, pode-se dizer que o presidente a toda hora testa os limites da ordem – eis a sua neurose fundamental. Neurose que, a essa altura da sua vida, já não há psicanálise que atenue.

Enfim, a essa insegurança de um despreparo geral ante as ações de um líder completamente desqualificado para o cargo — vale dizer: um líder que não lidera, que apenas manda, e cuja noção de norma nada vale para si mesmo —, só resta opor o vigor da ordem institucional que, embora pareça desunida, é no fundo o que resta ao Brasil para salvar sua democracia. Quero crer que nesse ponto militares e civis estão falando a mesma língua. Com as sombrias e contornáveis exceções de praxe.