A hipocrisia é aquela homenagem que o vício presta à virtude. A frase é do grande Machado de Assis, e me vem à memória em razão dos recentes acontecimentos políticos nacionais. Não podia imaginar que o mais lídimo exemplo dessa falsa devoção viesse logo do nosso supremo mandatário.
Para ombrear-se aos bons, honestos e generosos, o atual presidente do Brasil sempre se apresentou como um dos tais. Na campanha eleitoral, nos pronunciamentos logo após a eleição, e nas redes sociais em que ora prodigaliza aos seus devotos pérolas de obviedades: não às nomeações de natureza puramente política, não às concessões a partidos, prevalência do critério exclusivo de mérito na administração, Brasil acima de tudo e Deus acima de todos. Mas a prática vem desmentindo tão elevados proclamas. E a sua imagem, tanto para os acólitos quanto para os que por ele optaram como alternativa única ao PT, vem-se degradando, assim como o retrato de Dorian Gray, no romance de Oscar Wilde.
Em primeiro lugar, pelo fenômeno que um brilhante cronista pernambucano chamou de “síndrome de Caim”: alijando do seu governo quem se destacava pelas suas qualidades, como o ministro Henrique Mandetta. Depois, tentando acobertar, de todas as formas, os crimes de familiares e amigos, descartando os que se opunham a isso, como o ministro Sérgio Moro. Finalmente, em atitude que parecia inconcebível neste século XXI, desprezando a ciência e escarnecendo das pobres vítimas que nela depositam suas esperanças, no presente caso da pandemia que assola o país.
Mas faltava um ponto culminante em sua “homenagem à virtude”, a cereja no bolo, pela sofisticação e pelo maquiavelismo: o caso do Projeto de Lei Complementar nº 39/2020, que trata do apoio financeiro do Governo Federal aos Estados para o combate à Covid-19, e das exigências para tal.
A proposta original incluía a suspensão dos aumentos de salários para os funcionários públicos, federais e estaduais, até o fim de 2021, o que disponibilizaria, segundo os cálculos da área econômica do Governo, R$ 130 bilhões para o combate à hecatombe da pandemia. O que resultaria doloroso para os servidores estaduais, mas não deixa de ser racional. No entanto, como era de se esperar, o projeto foi mutilado no Congresso, com o apoio dos líderes do Governo, através da criação de exceções à regra para diversas categorias de servidores, de poderosos “lobbies”, reduzindo-se a economia projetada a magros R$ 43 bilhões.
Esperava-se – e este foi o apelo do ministro Paulo Guedes, em seu ingênuo e obstinado ultraliberalismo – que o presidente vetasse tais alterações. Mas o que fez o presidente? Esperou, sem definir-se, quase um mês. Nesse meio tempo, sabedores da espada de Dâmocles sobre suas cabeças, e de olho nas próximas eleições, governadores (entre eles, o da minha terra) concederam aumentos aos seus funcionários. E só então, tardiamente, o supremo mandatário anunciou seu veto.
Como se vê, uma jogada ardilosa. O que me leva a insistir: nunca a virtude foi tão homenageada em nossa triste República…
Muito bom.
Desse ser desumano nada vem de bom. Só tem isto: a inteligência dos ardis.
Saudações pela volta!
Muito bom, Clemente. Infelizmente é a pura verdade.
Vamos adiante.
Excelente como sempre, Clemente.
Obrigado, amigos, pelos honrosos comentários.
Clemente Rosas, ainda bem que você escreveu sobre o assunto, você tem razão, neste caso a proposta original de Guedes era mais correta do que aquela que o Congresso aprovou. Mas o Presidente boicotou, p’ra variar, seu Ministro da Economia. Pois é, ficamos todos tão indignados com as provocações antidemocráticas do PR que não enxergamos que mais o Executivo está fazendo ou tentando fazer. Pedir ao funcionalismo que ajude no sacrifício imenso que outros setores estão dando não é “ultraliberal”, é apenas questão de justiça. O que o Ministro da Economia devia ter feito era tratar diferentes de maneira diferente, isto é, defender um corte e um congelamento de salários diferenciado, em que contribuíssem mais os funcionários de salários mais altos. Conforme explicado em artigos de Sérgio C. Buarque aqui na “Será?”: “E a receita?” 20/03/2020 e “O Estado e a Covid-19” 27/03/2020.
https://revistasera.info/2020/03/e-a-receita-sergio-c-buarque/
https://revistasera.info/2020/03/o-estado-e-o-covid-19-sergio-c-buarque/
Agora anda acontecendo o contrário: alguns funcionários de salários mais altos são mais articulados, têm mais vitamina R (Relações) e estão aproveitando as circunstâncias para pressionar pela aprovação de vantagens em causa própria, naquele velho jogo dos tapinhas nas costas e da troca de favores: eu apoio você, e você me apoia.
Clemente Rosas, ainda bem que você escreveu sobre o assunto, você tem razão, neste caso a proposta original de Guedes era mais correta do que aquela que o Congresso aprovou. Mas o Presidente boicotou, p’ra variar, seu Ministro da Economia. Pois é, ficamos todos tão indignados com as provocações antidemocráticas do PR que não enxergamos que mais o Executivo está fazendo ou tentando fazer. Pedir ao funcionalismo que ajude no sacrifício imenso que outros setores estão dando não é “ultraliberal”, é apenas questão de justiça. O que o Ministro da Economia devia ter feito era tratar diferentes de maneira diferente, isto é, defender um corte e um congelamento de salários diferenciado, em que contribuíssem mais os funcionários de salários mais altos. Conforme explicado em artigos de Sérgio C. Buarque aqui na “Será?”: de /03/2020 “E a receita?” 20/03/2020 e “O Estado e a Covid-19” 27/03/2020. Agora anda acontecendo o contrário: alguns funcionários de salários mais altos são mais articulados, têm mais vitamina R (Relações) e estão aproveitando as circunstâncias para pressionar pela aprovação de vantagens em causa própria, naquele velho jogo dos tapinhas nas costas e da troca de favores: eu apoio você, e você me apoia.
É como você diz, Helga. Seu comentário enriquece meu artigo.
Meus agradecimentos.
E quanto ao “liberalismo à outrance” do ministro Guedes, a ele não me referi por conta da proposta específica do congelamento dos salários, mas à sua “filosofia”. Como social-democrata, não sou partidário da “hagiologia” do mercado. Mas este é assunto para uma conversa mais longa.
Abraço amigo.