Clemente Rosas

«Squelette arretant masques» (1891) by  James Ensor

A hipocrisia é aquela homenagem que o vício presta à virtude.  A frase é do grande Machado de Assis, e me vem à memória em razão dos recentes acontecimentos políticos nacionais.  Não podia imaginar que o mais lídimo exemplo dessa falsa devoção viesse logo do nosso supremo mandatário.

Para ombrear-se aos bons, honestos e generosos, o atual presidente do Brasil sempre se apresentou como um dos tais.  Na campanha eleitoral, nos pronunciamentos logo após a eleição, e nas redes sociais em que ora prodigaliza aos seus devotos pérolas de obviedades: não às nomeações de natureza puramente política, não às concessões a partidos, prevalência do critério exclusivo de mérito na administração, Brasil acima de tudo e Deus acima de todos.  Mas a prática vem desmentindo tão elevados proclamas.  E a sua imagem, tanto para os acólitos quanto para os que por ele optaram como alternativa única ao PT, vem-se degradando, assim como o retrato de Dorian Gray, no romance de Oscar Wilde.

Em primeiro lugar, pelo fenômeno que um brilhante cronista pernambucano chamou de “síndrome de Caim”: alijando do seu governo quem se destacava pelas suas qualidades, como o ministro Henrique Mandetta.  Depois, tentando acobertar, de todas as formas, os crimes de familiares e amigos, descartando os que se opunham a isso, como o ministro Sérgio Moro.  Finalmente, em atitude que parecia inconcebível neste século XXI, desprezando a ciência e escarnecendo das pobres vítimas que nela depositam suas esperanças, no presente caso da pandemia que assola o país.

Mas faltava um ponto culminante em sua “homenagem à virtude”, a cereja no bolo, pela sofisticação e pelo maquiavelismo: o caso do Projeto de Lei Complementar nº 39/2020, que trata do apoio financeiro do Governo Federal aos Estados para o combate à Covid-19, e das exigências para tal.

A proposta original incluía a suspensão dos aumentos de salários para os funcionários públicos, federais e estaduais, até o fim de 2021, o que disponibilizaria, segundo os cálculos da área econômica do Governo, R$ 130 bilhões para o combate à hecatombe da pandemia. O que resultaria doloroso para os servidores estaduais, mas não deixa de ser racional.  No entanto, como era de se esperar, o projeto foi mutilado no Congresso, com o apoio dos líderes do Governo, através da criação de exceções à regra para diversas categorias de servidores, de poderosos “lobbies”, reduzindo-se a economia projetada a magros R$ 43 bilhões.

Esperava-se – e este foi o apelo do ministro Paulo Guedes, em seu ingênuo e obstinado ultraliberalismo – que o presidente vetasse tais alterações.  Mas o que fez o presidente?  Esperou, sem definir-se, quase um mês.  Nesse meio tempo, sabedores da espada de Dâmocles sobre suas cabeças, e de olho nas próximas eleições, governadores (entre eles, o da minha terra) concederam aumentos aos seus funcionários.  E só então, tardiamente, o supremo mandatário anunciou seu veto.

Como se vê, uma jogada ardilosa.  O que me leva a insistir: nunca a virtude foi tão homenageada em nossa triste República…