Paulo Gustavo

Mulheres e crianças a caminho de Auschwitz, onde seriam incineradas nos fornos crematórios do nazismo.

Quando o decano do Supremo Tribunal Federal, ministro Celso de Mello, afirmou, numa rede privada, que o ambiente político nacional lembrava, guardadas as devidas diferenças, o da Alemanha pré-nazista, talvez não tenha passado longe da verdade. Ou a verdade não tenha passado longe dele. Este breve artigo, logo se verá por quê, leva água ao moinho do ministro. E água cristalina, pois vem de uma fonte profunda e insuspeita: Hannah Arendt.

Tentarei expor alguns pontos característicos do totalitarismo, tais como comentados por Arendt em seu clássico “Origens do Totalitarismo”. Parto do pressuposto de que o projeto político de Bolsonaro vai além do já muito observado autoritarismo. Seu projeto, para grande desafio de nossas forças democráticas, dá mostras de que sonha com um ambiente totalitário ou muito próximo disso, o que, na prática, vem a dar quase no mesmo. É o que parece ver o decano do STF e é o que, nestas linhas, eu gostaria de provar.

Segundo observa Hannah Arendt, em sua clássica análise, os movimentos totalitários “[…] só podem permanecer no poder enquanto estiverem em movimento e transmitirem movimento a tudo o que os rodeia”. Isso é de sua essência e é o que assistimos na, por assim dizer, permanente inquietação de Bolsonaro. Tanto do ponto de vista da comunicação quanto da instabilidade governamental.

Outro ponto para o qual Arendt chama a atenção é para a propaganda que precede um regime totalitário. Essa propaganda, diz ela, “[…] é invariavelmente tão franca quanto mentirosa”. Parece contraditório, mas não é. No caso dos bolcheviques, estes “diziam não reconhecer os padrões morais comuns”. Ora, a essa altura a maioria dos brasileiros já percebeu o quanto o atual governo se baseia na mentira. Esta merece inclusive um “gabinete de ódio”. Além disso, os registros da mídia evidenciam à farta que o chefe do Executivo mente de uma maneira tão cínica quanto espontânea. Com isso, corrói a credibilidade das instituições e aumenta o movimento interno e inflamável dos seus grupos de apoio

Hannah Arendt também considera a mórbida atração que o mal exerce sobre a ralé, citando a percepção aguda de Robert Ley ao afirmar que “Atos de violência podiam ser perversos, mas eram sinal de esperteza”. Aqui seria redundante evocar o quanto de violência demonstra todo o credo (senão toda a prática) de Bolsonaro, um espectro que vai da apologia ao coronel Brilhante Ustra ao empoderamento com armas do homem comum. A ralé exulta com tais audácias.

Um ponto que a filósofa chama simplesmente de “desconcertante” para o sucesso do totalitarismo “é o altruísmo dos seus adeptos”. Não se trata simplesmente de uma convicção inabalável no que toca à destruição dos inimigos, “mas o fato espantoso é que ele [o altruísmo]  não vacila quando o monstro começa a devorar seus próprios filhos”. Creio que aqui os leitores lembrarão de nomes que já foram com a maior naturalidade descartados pelo presidente. De resto, como na receita fascista original, o líder não pode ficar à sombra. Seu brilho deve ser incontrastável. Por sua vez, como lembra Arendt, “[…] os membros fanatizados são inatingíveis pela experiência e pelo argumento; a identificação com o movimento e o conformismo total parecem ter destruído a própria capacidade de sentir, mesmo que seja algo tão extremo como a tortura ou o medo da morte”. Logo se está sob a força do lema, criado por Himmler, da SS nazista: “Minha honra é a minha lealdade”. Simples assim, mas de funestas consequências para a governança democrática do país.

Organizador de massas, e não de classes, os movimentos totalitários, a exemplo do que vem sendo sinalizado pelo governo Bolsonaro, apoiam-se numa espécie de desilusão com a democracia e com a política. Uma das ilusões dos democratas, apontada por Hannah Arendt, foi a de que “o povo, em sua maioria, participava ativamente do governo e todo indivíduo simpatizava com um partido ou outro”. Engano nada ledo. “[…] as massas politicamente neutras e indiferentes podiam facilmente constituir a maioria num país de governo democrático  e que, portanto, uma democracia podia funcionar de acordo com as normas que, na verdade, eram aceitas apenas por uma minoria”. Outra ilusão foi a de que tais massas “eram realmente neutras […] um silencioso pano de fundo para a vida política da nação”. O totalitarismo logo conseguiu convencer “[…] o povo em geral de que as maiorias parlamentares eram espúrias e não correspondiam necessariamente à realidade do país”. Não por acaso, fechar o Parlamento e o STF é uma pauta prioritária para o bolsonarismo. Em seguida, claro, redigir uma nova Constituição, etc.,etc.

É entre esses pontos tão bem elucidados por Arendt que parece se acomodar o quadro político do Brasil, onde reina de longa data a fragilidade dos partidos. Dessa forma, o autoritarismo não vem, ele já está entre nós, estressando, com insana obstinação, as instituições e consequentemente confundindo a opinião pública.  Por outro lado, esses pontos que trouxemos da clássica análise de Arendt (há vários outros!) sinalizam o que muitos, de boa-fé, não querem ver ou acreditar: o ovo da serpente já está posto. Basta ligar os pontos. O presidente tem um projeto claro que vai além do autoritarismo e é mais perverso do que se imagina porque dá claros sinais de ser distópico e totalitário. Qual seu objetivo? Hannah Arendt nos dá uma resposta: “O verdadeiro objetivo do fascismo era apenas a tomada do poder e a instalação da ‘elite’ fascista no governo”.

O ministro Celso de Mello, “quod erat demonstrandum”, com certeza não estava exagerando. E com certeza leu e conhece Hannah Arendt.

 

Paulo Gustavo