Helga Hoffmann[1]

 

Comecemos pelos antecedentes. Sem isso não dá para entender os novos conflitos institucionais na adoção das atuais medidas de combate às queimadas na Amazônia. As queimadas estão banidas por 120 dias (salvo exceções). Mas junto com a proibição das queimadas está sendo modificada a maneira de medir queimadas e desmatamento.

O Conselho Nacional da Amazônia Legal, segundo o novo formato estabelecido no decreto 10.239 de 11/02/2020, já não é mais subordinado ao Ministério do Meio Ambiente (MMA), como era antes, desde quando fora criado no governo Fernando Henrique Cardoso. E já não inclui representantes dos estados da região, como antes. Aliás, os governadores dos estados amazônicos reclamaram da mudança, em fevereiro, mas foram ignorados.

O decreto, no seu título, “transfere o Conselho Nacional da Amazônia Legal do Ministério do Meio Ambiente para a Vice Presidência”. Mas é muito mais que isso.

O Conselho da Amazônia agora é constituído por 14 ministérios, inclusive o MMA, mas incluindo também Economia, Agricultura, Defesa e outros, bem como a Casa Civil, a Secretaria Geral da Presidência, a Secretaria de Governo e o Gabinete de Segurança Institucional da Presidência. Em suma: é bem mais centralizador agora o papel da Presidência da República no Conselho da Amazônia. E sua presidência e coordenação passaram ao Vice-Presidente da República, General Hamilton Mourão.

O uso das Forças Armadas no combate às queimadas já havia sido decidido por decreto anteriormente, em agosto do ano passado. Inicialmente previsto para durar 60 dias, desde que solicitado por governadores, foi sendo de fato prorrogado e adquiriu novo formato com a criação do Conselho da Amazônia. Na última reunião do Conselho, em 15 de julho, o Gal. Mourão disse que o governo pode manter a chamada operação GLO (Garantia da Lei e da Ordem) na Amazônia até o fim do mandato do Presidente Bolsonaro.

Ao contrário, na entrevista coletiva em paralelo à reunião, o General Mourão surpreendeu: “Nós precisamos ter um planejamento para a recuperação da capacidade operacional dos órgãos de fiscalização, porque eles perderam pessoal por aposentadoria, estão com seus efetivos reduzidos. Nós precisamos aumentar a capacidade deles de modo a que liberemos as Forças Armadas do emprego constante em atividade as quais elas não estão, não é a atividade precípua delas”. Curioso é que só agora tenha percebido a importância dos fiscais do IBAMA. Não chega a ser um reconhecimento de que os fiscais do IBAMA, antes, tinham mais credibilidade que os que estão na “atividade que não é precípua deles”. Parece que está batendo a preocupação com a imagem das Forças Armadas. E com o fantasma do chefe voluntarista: “esses números não baixam, pô?!”

Já no discurso de inauguração do novo Conselho o Gal. Hamilton Mourão, quando falou da análise de imagens de satélite, mencionou, ao lado do INPE, o CENSIPAM, que é do Ministério da Defesa. CENSIPAM é a sigla do imponente Centro Gestor e Operacional do Sistema de Proteção da Amazônia, cujo objetivo expresso, em algum momento, foi o de apoiar ações de prevenção do PrevFogo do IBAMA. Ainda terá que ser melhor investigado de que modo foi exercido esse apoio ao IBAMA, pois mais de uma vez foram noticiadas ações em que o trabalho dos fiscais do IBAMA foi de fato boicotado e desautorizado. Não foi apenas o caso mais notório do fiscal do IBAMA que foi exonerado ano passado do cargo de Chefe do Centro de Operações Aéreas da Diretoria de Proteção Ambiental por ter, em 2012, flagrado e multado o Deputado Jair Bolsonaro em pesca ilegal em área protegida.

Nos últimos meses circularam rumores de que estava sendo desenvolvido um sistema de monitoramento paralelo dos incêndios na floresta, diferente do DETER (Sistema de Detecção de Desmatamento em Tempo Real) do INPE. Isso foi mais de uma vez desmentido pelo Diretor do INPE, Darcton Policarpo Damião. Contudo, no site do Ministério da Defesa no dia 10 de julho de 2020 informou-se que o CENSIPAM estava desenvolvendo uma nova metodologia para monitoramento de queimadas. No mesmo dia 10 de julho o DETER, do INPE, o antigo, apresentou dados de que em junho de 2020 o desmatamento foi 10,6% mais alto que no mesmo mês de 2019.  Poucos dias depois é destituída Lubia Vinhas, a encarregada do monitoramento de queimadas do INPE, para uma anunciada reestruturação do órgão. Sim, a vida é sempre cheia de coincidências…

O Ministro Marcos Pontes, da Ciência e Tecnologia, ministério que também está no Conselho da Amazônia, e onde está o INPE, disse que a transferência de Lubia Vinhas se deu em momento que chamou a atenção “… menos eu que não tinha prestado atenção no que tinha acontecido” (sic). Tais declarações foram feitas em paralelo ao anúncio do novo sistema de monitoramento DETER Intenso, logo depois do afastamento de Lubia Vinhas, e apareceram em ampla reportagem de Giovanna Girardi no jornal O Estado de S.Paulo, 15/07/2020, p. A22. E, no entanto, conforme o seu interessante currículo, Marcos Pontes voltou da nave espacial em abril de 2006.

O Ministro Pontes disse também, agora, que a demissão do diretor do INPE Ricardo Galvão, cientista com reconhecimento internacional, e sua substituição interinamente por um militar, Darcton Damião, coronel da FAB, nada teve a ver com discordância sobre dados. Pelo visto uma falha de memória, pois o mundo todo registrou na época, há um ano, em julho de 2019, como o Presidente Bolsonaro e seu Ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, classificaram de mentirosos dados do DETER, do INPE, que mostraram aumento do desmatamento de 2018 para 2019. É tanta mentira e dissimulação que acompanhar o que acontece neste governo já ficou meio com cara de investigação de detetive.

É grande a expectativa em relação aos dados que vão ser apresentados no futuro por esse novo DETER Intenso. Darcton Policarpo Damião, que continua na interinidade apesar de um currículo respeitável que inclui até passagem pelo ITA, já começou a explicar que haverá um novo satélite fornecendo novas imagens de uma mesma área a cada três dias, que é impossível aumentar a frequência de monitoramento para toda a Amazônia, e que assim foram delimitadas quatro áreas de máximo interesse com o IBAMA, nas quais serão colocadas mais imagens.

Ninguém, por enquanto, tocou no assunto da comparabilidade na série de dados. Deveria haver ao menos algo como uma “transição estatística”, por assim dizer, alguns anos de medição pelos dois sistemas, o antigo e o novo, e esses anos de superposição permitem que tecnicamente seja possível depois encaixar uma série de dados na outra. Comparabilidade é essencial para avaliar se as medidas têm efeito, se o desmatamento será contido.

Comparabilidade será necessária, também, para que os pesquisadores, dentro ou fora do Brasil, possam dizer se o desmatamento nesse governo é ou não maior do que em governos anteriores. A desmoralização da imagem do Brasil mundo afora não será melhorada se houver suspeita sobre a medição. A credibilidade não será reconstruída simplesmente passando de DETER para DETER Intenso.

Claro que concorrência comercial existe, claro que há interesses comerciais que podem favorecer acusações contra a produção agropecuária brasileira (como vem martelando o Ministro da Economia Paulo Guedes). Mas pretender que seja esse o motivo principal da destruição da boa imagem que o Brasil já teve na área ambiental é ignorar tudo o que aconteceu no movimento ambientalista no mundo todo nas últimas décadas, é ignorar a agenda ambiental nos programas de governo e nas eleições da maioria dos países que compram ou deixam de comprar produtos brasileiros. E dos que ainda não compram também.

[1] Ex-Diretora de Meio Ambiente e Desenvolvimento da CEPAL (1995-1998).