Deixei para escrever meu artigo para a “Será?” nesta própria sexta-feira, 31, apesar de correr o risco de não conseguir mandá-lo a tempo de ser acolhido por nosso operoso editor, que pode já estar na terceira etapa de sua jornada, quando eu terminar de escrevê-lo. Os motivos para esse descaso aparente são prosaicos. Ontem à noite, meus primos se conectaram comigo pelo Zoom, fazendo com que eu participasse da reunião familiar que acontece há quase 30 anos. O evento raro, não por falta de iniciativa deles, e sim pelos meus horários, me deixou excitado, e demorei muito a adormecer na sequência. Recapitulando o conversado, lembro mais da forma do que do conteúdo. E, especialmente, de meu afã em conversar, em falar despudoradamente, me expondo a ser repreendido pelos vizinhos de prédio parisiense, para quem não se grita diante de uma tela de telefone numa madrugada. Nessas horas, vê-se a falta de treino. O falar em cascata, frenético; a necessidade de ouvir minha própria voz, de modulá-la, enfim, tudo isso acusa a falta de prática, e a sina algo miserável de quem só tem conversado com os comerciantes do bairro, e pouco mais.
O fato relevante deste dia que se inicia do lado daí do Atlântico, é a canícula de 40° que baterá seu auge lá pelas seis da tarde daqui. Para tanto, as janelas serão mantidas fechadas como forma de evitar que o ar quente da rua encontre seus caminhos até a sala e o quarto. Na brigada interna, um potente ventilador alemão faz as vezes de guardião do bem-estar. Para não dizer que será um dia totalmente indoors, já saí rapidamente até a padaria onde comprei uns croissants e o sanduíche de salame com pepino com que comecei o dia. Ontem a dona do café em frente disse que ainda não sabe se fechará por uns dias em agosto, e que o marido a toda hora muda de opinião. “Já tivemos tanta paralisia esse ano que dá pena fechar quando podemos estar abertos. Por outro lado, se o bairro ficar às moscas, é o mais sensato.” No terraço, os universitários que, por um motivo ou outro, ainda estão na área, se reuniam, como fazem às tardes, para jogar uma ruidosa partida de baralho. É um foco de sanidade mental num mar de gente que se distraí com o celular. Engraçado que o carteado os faz beber menos do que o telefone. Explica-se.
Ontem contei no Facebook a história de uma senhora que relutou muito em me ver para discutirmos um projeto editorial, e que só baixou a guarda quando eu disse que já não ia ao Brasil há 5 meses. O relato me valeu ódios intestinos de alguns leitores. Não foram poucos os que me disseram que, se eu também considerava o Brasil um país-pária, que ficasse por aqui e nunca mais voltasse. É incrível como, ademais da grosseria e do desrespeito para com o temor legítimo que acometia a idosa, as pessoas pensem que basta querer ficar aqui, para ficar. Como se os países não se acautelassem contra idosos enfermiços que viessem a lhes onerar o sistema de saúde, e como se a Europa como um todo fosse uma casa de Mãe Joana, uma espécie de motel de rotatividade acelerada. Como se as engrenagens daqui fossem tão desencontradas quanto o ministério do capitão. Já há algum tempo recebo exortações de que deveria pedir para ser cremado no Père-Lachaise onde, toda noite, Chopin se senta ao piano para acompanhar Piaf em Hymne à l´amour. Acho que temem o que direi no dia em que o capitão dançar sobre 100 mil cadáveres.
Quarta-feira fui ao Flore e acho que lá não voltarei até setembro. É o café mais charmoso do mundo, mas nessa época as mesas são ocupadas por turistas esparsos que não têm ligação emocional nenhuma com aquele toldo lendário. A tarde estava quente e eu quase cochilei lendo o jornal. De repente, vi uma cena engraçada. Uma caipira enfiada num vestido em forma de saco de cor jerimum se pendurou no pescoço de um magricela que, pelo jeito, ela não via há anos. Estava claro que era um encontro marcado, mas o parisiense estava cheio de cautelas. Ela, que trazia nas bochechas vermelhas os ares da vida campestre e que acha que cura-se Corona com leite ao pé de vaca normanda, pareceu chocada com o gesto barreira dele, pedindo distância. Cabisbaixa e furibunda, olhou o café de soslaio, com ares de quem se pergunta se era mesmo o caso de ficarem ali, e o rapaz ficou sem saber o que dizer. Tudo piorou quando só permitiu um abraço, mesmo assim porque, sendo ela mais alta do que ele, os rostos não precisavam se tocar. Depois de acomodados, reinou um silencio cortante por minutos. Gostei. Paris permanece romântica para os matutos.
Foi muita sorte ter comprado minha passagem para a Europa por uma agência de viagem, e não por um site. Interessada em renovar meu seguro-saúde, e sendo ela uma profissional competente a dedicada, não se passa mês sem que a moça me telefone para saber se já tenho data para voltar para o Brasil. Oferece sempre muitas possibilidades de conexão, mas termina dizendo que se eu puder aguentar mais um pouco, que fique por aqui. Por outro lado, ouço vez por outra vozes tão tranquilizadoras que acho que o mundo simplesmente enlouqueceu, que está sem bússola. Entre otimistas e realistas, uma coisa que me inquieta é a vertente hematológica da doença. O sujeito tem um acidente vascular qualquer e, quando se faz a investigação aprofundada – se der tempo -, descobre que a Covid-20 passou por ali e deixou, por herança, um trombo no organismo do cidadão, que pode lhe custar a vida. Estamos isso sim à espera da segunda vaga e logo saberemos da virulência com que ela virá. Agora sim, é hora de isolamento por idade e por grupos de risco. É incrível como uma coisa simples como uma máscara pode ser tão desconfortável.
A grande manchete europeia dessa semana diz respeito aos romenos, conhecidos como “os brasileiros da Europa”. Da mesma forma que tendemos a ser estigmatizados como “impuros”, eles também, vivem dias difíceis. Com milhares de nacionais trabalhando na Itália e na Alemanha, boa parte deles passando férias de verão na Romênia. Pergunta-se: como voltar aos países de adoção depois que a Covid-19 afinal eclodiu por lá? De todas as vertentes negacionistas idiotas, a pior é a que sucumbe a seitas que também são supremacistas. No condomínio europeu, tem também aqueles que, como certos brasileiros, defendem life as usual, que se jactam de seus bons índices e de sua boa infraestrutura e que, se não receitam Cloroquina por senso do ridículo, acham que tudo é uma questão de ter uma atitude positiva, mesmo porque as demais doenças matam mais do que o vírus. Bem fizeram e bem fazem os que desviaram o foco das preocupações em tempo. Não se pode viver sob a égide do medo o tempo todo. Mas continua delicado achar o meio termo entre a prudência e o redesenho de alguma normalidade. Acredito que ainda chegaremos lá.
Fernando, você teve a honradez de manter o passaporte brasileiro até hoje, com um tarja preta em mãos sugiro reinvidicar sua ascendência sefardista ou casar-se por aí, visando as portas abertas do seu futuro.
Brasil se foi, só resta seus afetos e D.Luci.
A cena do encontro romântico entre o parisiense e a normanda revela uma das experiências da pandemia: a desigualdade de riscos. A normanda, vinda do interior, talvez de uma cidade pequena e vivendo na sua casinha, encontra o rapaz da metrópole, confinado há meses sofrendo com os parcos metros quadrados de seu apartamento, controle policial e risco constante no metrô. A normanda, tranquila, nem pensa no risco, e o rapaz fará de tudo para não ficar novamente confinado.
Eis a sensação que também me ocorreu ao ver a cena. Era o idílio querendo abraçar o pavor.
Fique aí…
Muito bom, como sempre!
Excelente. Párias, sim! Aguardando o texto dos 100 mil. Falta pouco.