A crença cega em conteúdos da internet, aí naturalmente incluídas as redes sociais, lembra a crença dos pouco letrados na palavra escrita e, por extensão, nos livros e nos textos impressos em geral. A falta de familiaridade gera um respeito reverencial. Se está no livro, deve ser verdade. Se está escrito, tem automaticamente um merecimento. Assim, muitos internautas, pondo de lado qualquer espírito crítico, não se dão conta de farsas, equívocos e engodos; em suma, não se livram das chamadas “fakenews”.
Não é preciso sermos um Freud para nos dar conta de uma verdade muito humana: em face de um grande perigo e de um formidável medo, tendemos a buscar na crença a nossa salvação. Desejamos ardentemente nos salvar e por isso mesmo passamos a crer. Não cabe dúvida ou hesitação em momento de intenso perigo. Agir pode ser, e geralmente é, a própria salvação. Noutras palavras, acreditar pode nos salvar (se não na realidade, pelo menos em fantasia, com a ilusão alimentando a nossa carência).
Proust, em “A fugitiva”, nos diz que “É o desejo que engendra a crença, e se de ordinário não reparamos nisso é porque a maior parte dos desejos criadores de crenças não acaba […] senão quando nós mesmos acabamos”. Desejo e crença são inseparáveis ao longo da vida e, por sua vez, são gatilhos da imaginação. Proust, nos passos de Schopenhauer, sabe que, dessa forma, já não nos vale a esfera da racionalidade, pois estamos nas mãos da própria essência da vida, a Vontade, conforme intuiu o sábio alemão.
A crença na internet não é diferente das outras, sobretudo quando envolvida ou motivada por desejos de ordem política. No caso brasileiro da pandemia do coronavírus, politizada pelos negacionistas, em especial pelo presidente da República, a internet não é só um campo de batalha de opositores, mas também o meio que evidencia “ad nauseam” a engrenagem viva das crenças em movimento.
Aqui, como em outros tópicos ou eventos, a web não fez mais que potencializar, para o bem e para o mal, a própria realidade. Como quer que seja, de agora por diante, os estudos do comportamento das massas terão que incorporar o ciberespaço. O analfabetismo digital, à semelhança do analfabetismo real, parece responder, em grande parte, por uma atmosfera de irrestrita devoção à grande rede. Falta ao analfabeto digital a consciência crítica de distinções básicas com as quais ele poderia frear sua fome de crença. Ele é incapaz de ver que a mentira e a falsidade vêm embrulhadas em quebradiças “verdades”. Sua crença logo adere ao que lhe oferecem. Fora da Web, é claro, age da mesma maneira diante da realidade.
Por falar em realidade, vamos agora à dura e até tragicômica situação de nossos dias. Vejamos, em relação à possibilidade de cura da covid, o que vem sendo oferecido à credulidade dos internautas. Sobre esse assunto, a “Folha de S.Paulo” de 31 de julho, publicou interessante matéria intitulada “Desinformação circula nas redes disfarçada de ciência durante pandemia”, trazendo na linha fina a seguinte frase: “Publicações citam estudos e especialistas como ‘provas’ de dados inventados sobre o novo coronavírus”. Essas “provas” são o que chamei acima de “quebradiças verdades”, o verniz da mentira. O fenômeno é global. A certa altura da matéria, são apontados, para nosso pasmo, “os tratamentos supostamente identificados pela ciência”. Segue a lista: “cocaína, maconha, urina de vaca, chá-preto, óleo de eucalipto, bananas, vapor, suco de melão amargo, leite com gengibre, sêmen, enxaguante bucal, chá de limão, sangue de pessoas da Geórgia, nicotina, luz do sol e veneno de abelha”.
Examinando a lista, logo observamos que alguns desses remédios estão ao alcance de qualquer pessoa de bem, não só de bens: por exemplo, os prosaicos chá-preto, leite com gengibre, bananas e enxaguante bucal, sem falar na baratíssima e não poluente luz do sol. Não são caros, estão ao alcance de todos. Alguns, porém (Quem disse que uma tremenda cura deve ser barata?), são mais difíceis: óleo de eucalipto, veneno de abelha e, em especial, sangue de pessoas da Geórgia. Nós, brasileiros, estamos muito longe da Geórgia. Mas pior seria se fosse sangue de brasileiros antifascistas. Ufa, por ora, não corremos perigo. Difícil também é corrermos atrás de um suco de melão amargo, quando, na verdade, sempre desejamos que os melões sejam bem doces. Quanto à urina de vaca, suponho que seja um remédio para quem vive na zona rural, um remédio abundante para um mal abundante no momento em que o vírus se interioriza. Mas há um tratamento que julgo enigmático: o vapor. Não é difícil se conseguir um pouco de vapor, mas como fazer para bem aproveitá-lo? Inalando-o talvez, ficando junto do bico de uma chaleira, sabe Deus e James Watt as mil e uma utilidades do vapor. Por sua vez, o sêmen pode ser um remédio prazeroso, mas pode também ser um problemão, pois vai que, na ânsia de se livrar do vírus, pinta uma gravidez indesejada. Restaram as drogas: cocaína, maconha e nicotina. Pelo jeito, a ideia foi beneficiar todas as classes sociais! Matéria esta que deixo aos cientistas sociais e à discrição de todos.
Enfim, a acreditarmos na internet dos crédulos, o vírus realmente existe, mas dele só não se cura quem não quer. Pra que vacina? Remédios não faltam.
comentários recentes