(em comemoração a 11 de agosto)
Rio de Janeiro, 28 de setembro de 1908. Meu querido Nabuco. Espero que os ares de Hamilton, nessa fria Mass., estejam lhe fazendo bem. Junto com minha carta de 1º de agosto, mandei um exemplar do romance Memorial de Aires. Será meu derradeiro livro. Mário de Alencar fez a fineza de ler, para mim, todas as cartas que trocamos. Ele é meu filho (uma das lendas, sobre Machado, é que Mário seria filho não do amigo e escritor José de Alencar. Mas dele, Machado). Assim o considero. Tuas, contei, foram 21. Minhas, 31. Esta, que escrevo por mãos dele, será minha última. Estou morrendo.
Aproveito e faço, agora, um pequeno inventário íntimo. Começo por reconhecer que a Academia Brasileira de Letras, que ajudei a criar e onde agora vou tão pouco, só me deu alegrias. Ter sido seu primeiro presidente foi, sobretudo, um enorme prazer. Tenho saudades da nossa Panelinha (a expressão panelinha vem daí. Intelectuais se reuniam com frequência, a partir de 1901, sempre em torno de Machado. Os almoços eram servidos em uma pequena panela de prata que acabou dando nome ao grupo).
Dos fatos que me vêm, lembro especialmente de um. Por volta de 1855, deixei de ir, nos finais da tarde, à Livraria Garnier. Amigos descobriram que, nessa hora, frequentava certa casa. Muitos imaginavam tratar-se de algum amor secreto. Ou viam algum outro mistério, nessas ausências. Não sabiam é que ia só contemplar um quadro admirável do Roberto Fontana, que tem como título La Donna che Legge. Infelizmente, caro demais para minhas posses. E qual não foi minha surpresa quando o recebi, pouco depois, doado por sete amigos no Soneto Circular, Machado cita seus nomes. Pela ordem, nos versos: “Horácio, Heitor, Cibrão, Miranda, C. Pinto, X. Silveira, F. Araújo”. O soneto começa assim: “A bela dama ruiva e descansada,/ De olhos longos, macios e perdidos”. E encerra com esse terceto: “Mandam-me aqui para viver contigo./ Ó bela dama, a ordens tais não fujo./ Que bons amigos são!. Fica comigo”. Serei sempre grato a todos por tanto afeto.
Escusas para narrar um episódio curioso. De poderes a mim atribuídos que não tenho. Tudo começa pelo fato de que recebo, todos os dias, muitas cartas. Quase todas sem importância. Por não ver sentido em guardá-las, nem desejar que caiam em mãos alheias, uma vez por semana as queimo em um caldeirão de bronze (o caldeirão, e o quadro, estão hoje na Academia Brasileira de Letras). Por conta disso a vizinhança começou a me chamar de bruxo. Nada a ver com vivissecção de ratos ou sair voando por janelas (o comentário decorre de um poema de Drummond, A um Bruxo com Amor: “E ficas mirando o ratinho meio cadáver/ Com a polida, minuciosa curiosidade de quem saboreia por tabela/ O prazer de Fortunato, vivisseccionista amador…/ E qual novo Ariel, sem mais resposta,/ Sais pela janela, dissolves-te no ar”), claro. A essa designação, logo agregaram o nome da rua em que vim morar (Rua Cosme Velho 18, Rio), depois que deixamos o Catete. Passei a ser, então, o Bruxo do Cosme Velho. Acho divertida essa história. E gosto de ser chamado como tal. Deixe-se ficar, então.
Mas os tempos bons se foram. E tudo, hoje, vai de mal a pior. A epilepsia me causa cada vez mais problemas. Nunca referi essa doença para qualquer pessoa. Nem escrevi sobre ela, salvo pequena passagem na primeira edição de Memórias Póstumas de Brás Cubas. Já na segunda, onde estava “rolar pelo chão, epilética”, pus “rolar pelo chão, convulsa”. Espero que a crítica não note isso. Fosse pouco, e ando às voltas com uma úlcera cancerosa na boca. Esforço-me por não deixar os mais próximos perceber o quanto dói essa moléstia. Minha casa, nos últimos tempos, se converteu num velório a céu aberto. Com amigos, muitos. Mas também desconhecidos que aqui vêm, por mera curiosidade mórbida, só para ver onde morei. Um horror. Em sua última carta, você me deu bela lição de vida: “Não se lembre dos 70 e terá 40”. Mas é tarde, para mim. Tarde demais.
Depois que minha mulher faleceu, por pessoas próximas soube que dizia preferir ver-me morrer primeiro. Mesmo sendo cinco anos mais velha que eu. Apenas por saber da falta que me faria. A realidade foi talvez mais penosa do que ela pensava. Sua falta é absoluta. Já não tenho quem me leia jornais e livros. Ou me ampare. Ou apenas fique a meu lado. A solidão é opressiva. Melhor herança é Graziela, uma pequena cadela Tenerife que adotamos – já que não nos foi dado ter filhos. Todos os domingos vamos, juntos, ao túmulo de minha tão querida Carolina, no Cemitério de São João Batista. É onde espero ser enterrado. A seu lado (assim se deu). E se tudo acontecer como pressinto, parto amanhã.
Começo a pensar no destino de minhas obras, caro Joaquim Aurélio Barreto Nabuco de Araújo. Esta semana, alguns amigos que me vêm sempre consolar fizeram entrar, no meu quarto, um rapazinho que nem 18 anos tinha. Não disse nada. Apenas ajoelhou-se ao pé da cama, tomou minha mão e deu-lhe um beijo. Após o que, sem sequer me dirigir um olhar, foi-se embora. Fiquei emocionado pela reverência. E pedi ao José Veríssimo para saber quem era. Chamava-se Astrogildo Pereira (que, mais tarde, seria um importante jornalista). Levarei esse nome comigo. Gestos assim me fazem acreditar que, considerando tudo quanto escrevi, não serei esquecido por algum tempo. Quanto?, não sei. O futuro dirá.
O que penso ninguém sabe é que, por muitos anos, estudei as leis. Todas as noites. Apaixonadamente. A ponto de, imagino, estar habilitado a tornar-me advogado. Por essa razão, em minhas obras, empreguei numerosíssimas expressões jurídicas. No conto O Programa um personagem, Romualdo, até antecipa essa vontade ao sonhar “que seria citado algum dia entre os Nabucos, os Zacarias, os Teixeiras de Freitas, etc. Jurisconsultos”. Era de mim que falava. Meu maior desejo é que, no futuro, alguém me faça justiça. Algum advogado, talvez, que o perceba. Isso me causaria grande alegria. E, se assim for, serei sempre grato a ele.
É tudo. Você é meu maior e mais íntimo amigo, por favor creia nisso. Agora, estou cansado. A perda de C. foi um desastre. Como estou à beira do eterno aposento, não gastarei tempo em recordá-la. Irei vê-la, breve (Machado, nascido em 21/06/1839, morreria no dia seguinte ao que escreveu, em 29/09/1908). E, diferentemente das outras cartas, me despeço agora de maneira diferente. Adeus. Amº do C. Machado de Assis.
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