Inusitado que venha de um médico, Dr. Luiz Henrique Mandetta, então Ministro da Saúde, a mais interessante descrição do Forum de Davos, de como este se diferencia de modo prático de reuniões internacionais como do G20 ou da Organização Mundial da Saúde (OMS) (em que ele também estivera), até nas rígidas medidas de segurança que o impediam de entrar em seu quarto de hotel antes da varredura antiexplosivos. Pela primeira vez, de 21 a 23 de janeiro de 2020, um Ministro da Saúde do Brasil estava presente no Forum. Também estavam lá os Ministros da Saúde da Alemanha, Suiça e Nova Zelândia.

O livro de Luiz Henrique Mandetta conta, em 40 capítulos e boa dose de suspense, o seu dia a dia desde a véspera da pandemia até o momento em que o Presidente Bolsonaro demitiu um Ministro da Saúde por demais desobediente e popular. Tem o título certo: “Um paciente chamado Brasil. Os bastidores da luta contra o coronavirus” (Objetiva, 2020, 240 pp.) É um depoimento bem humorado, porém da maior gravidade. Apresenta fatos. Inclusive fatos engraçados, não fossem suas tristes consequências. Boa parte do livro é o testemunho sobre o que parece uma brincadeira de esconde-esconde com uma criança teimosa e birrenta, em que o Ministro da Saúde procura convencer o Presidente da República sobre porque é correto um dado comportamento e dada ação, o Presidente parece se convencer, faz ares de quem concordou, e volta a fazer a coisa errada, em modo provocação. O tom de Mandetta é até paternal, mas ele conta, com detalhes até agora desconhecidos do grande público, todos os episódios em que o Presidente da República do Brasil tomou riscos e pode ter irresponsavelmente contagiado cidadãos e contribuído para a gravidade da pandemia em nosso país. E mostra a complexidade de controlar o contágio, a começar pelos aviões (como o que resgatou os brasileiros em Wuhan) e navios de cruzeiro deste mundo globalizado.

No capítulo 17 há uma interpretação benévola do comportamento de Bolsonaro segundo a teoria do luto, estudada na psiquiatria. Depois da notícia ruim, o choque, vem a primeira fase, a da negação. Depois dessa vem a raiva. Frase resumo de Mandetta: “É o caso de Bolsonaro. Primeiro ele negou a gravidade da covid-19, falando que era ‘só uma gripezinha’. Depois ficou com raiva do médico, ou seja, de mim. Depois partiu para o milagre, que é acreditar na cloroquina.” (p. 96) O médico espera que Bolsonaro chegue na 4ª fase, a da reflexão. Em vão. E a raiva do Presidente não é só do médico, é raiva do mundo, raiva até de algum partidário que se recuse a tocá-lo e ser infectado.

O depoimento de Mandetta começa por Davos simplesmente porque foi lá que começou de certo modo a internacionalização do coronavirus. Davos é conhecido principalmente como o encontro de quem tem parcela importante do PIB mundial, das grandes corporações da indústria e dos serviços. Mas, de repente, a economia de todos os países iria depender de como os ministérios da saúde e governos conseguiriam reduzir a rapidez de difusão do coronavirus. Pois desde o último dia de 2019 já se sabia que a Comissão Municipal de Saúde de Wuhan, China, havia identificado uma “concentração de casos de pneumonia” e um novo coronavirus. Desde 1 de janeiro de 2020 a OMS instalara “times de apoio à administração de incidentes” (IMST) em todos os seus níveis administrativos e em 5 de janeiro publicara notícia com uma avaliação de risco e recomendações sanitárias sobre a nova “pneumonia de Wuhan” conforme informada pela China. Em 13 de janeiro registrou-se o primeiro caso fora da China, na Tailândia.

Mandetta conta que logo no primeiro dia em Davos chegou a notícia de que Tedros Adhanom não iria mais a Davos: “a razão era justamente o coronavirus”. (p.14) Mandetta recordou as dificuldades da OMS em se pronunciar nos casos do H1N1, do Ebola, do Zica brasileiro. Estava na expectativa. Aproveitou Davos para diferentes articulações com laboratórios, gigantes farmacêuticos, CEOs de bancos, organizações filantrópicas como a Bill&Melinda Gates Foundation (cujo coordenador mundial é sanitarista). Queria tratar de fábricas de vacinas. Parece que o Ministro da Economia Paulo Guedes, desinteressado de questões de saúde, não conseguia atinar com motivos para a presença do Ministro da Saúde em Davos. Perguntou-lhe por que estava ali. Não percebia que era uma oportunidade de contato com CEOs da indústria farmacêutica para cooperação com o governo brasileiro.

Em toda oportunidade Guedes tratava de “discorrer sobre como sua participação nos eventos havia sido boa, como fora aplaudido e como surpreenderia o mundo” (p.24). Há outros momentos parecidos de autoelogio do Ministro da Economia, e é engraçado porque põe o dedo numa ferida: a “política de gogó” permanente de Paulo Guedes. Mas Mandetta, depois de um embate com Guedes mais tarde, sobre aumento de preços de medicamentos, acaba por mencioná-lo de modo conciliador lá pelo fim do livro. Não sem antes registrar que Guedes, mais de ano no governo, não sabia que remédios são tabelados há muito tempo. Mais uma vez, o desconhecimento de condições concretas típico de Paulo Guedes. Mas pelo menos o Ministro de Economia foi muitas vezes o único a tirar os sapatos e colocar máscara antes de entrar numa sala de gente aglomerada para algum evento ou reunião ministerial.

Ainda em Davos, Mandetta conta de uma reunião promovida pela Johnson&Johnson para alavancar recursos para os sistemas de saúde dos países mais pobres, na qual quem mais deixou todo mundo intrigado foi um milionário da China operador de bitcoins, que fez a mais alta promessa de doação. Especula: e se o chinês estivesse com o coronavirus? De nada teriam servido os protocolos contra o terrorismo. E conclui, sobre Davos: “Foi a última reunião global do mundo dito normal.” (Aliás, a de 2021 está adiada por causa do coronavirus.)

Dos registros da OMS sabemos que especialistas da organização estiveram em Wuhan 20-21 de janeiro, exatamente quando começava a reunião de Davos, e ao fim da visita emitiram uma declaração de que havia evidência de transmissão entre humanos. Na nota técnica de uma semana antes, 14 de janeiro, a OMS havia dito apenas que “parecia” ocorrer transmissão entre humanos. Uma pena que o mundo demorou tanto a perceber a rapidez dessa transmissão.

O Diretor-Geral da OMS convocou o Comitê de Emergência do Regulamento Sanitário Internacional em Genebra dias 22 e 23 de janeiro, para avaliar se o surgimento da doença constituía uma “emergência de saúde pública de preocupação internacional”. Nessa ocasião os membros independentes do Comitê vindos do mundo todo não chegaram a um consenso e decidiram reunir-se de novo em 10 dias.

Enquanto em Davos, Mandetta mantinha contato com sua equipe e era informado dessas decisões e indecisões da OMS por Socorro Gross, chefe da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) no Brasil, que ele conhecia da tentativa de pacificação das relações OPAS-Brasil quando da saída dos médicos cubanos do programa Mais Médicos. A restrição de Mandetta fora apenas à forma como eram pagos os cubanos, que ficavam só com parte do salário. Tanto é – e isso não está no livro de Mandetta – que quando começou a aumentar a transmissão local, o Ministério da Saúde abriu 5811 vagas para médicos, com contrato de um ano a partir de março de 2020, e quando uns 4000 e poucos CRM Brasil se apresentaram, cogitou-se no Ministério convocar mais 1800 médicos cubanos. (sanarmed.com/linha-do-tempo-do-coronavirus-no-Brasil)

Uma delegação da OMS dirigida pelo Dr. Tedros foi a Beijing 28 de janeiro e acordaram com o governo chinês enviar à China um time internacional de cientistas. O governo chinês já havia isolado Wuhan, um município de 12 milhões de habitantes, desde 23 de janeiro, e gradualmente estendia a quarentena a outras províncias. Na volta a Genebra o Diretor-geral convocou de novo o Comitê de Emergência e dessa vez houve consenso: em 30 de janeiro a OMS declarou a nova doença uma “Emergência de Saúde Pública de Interesse Internacional”.

Mandetta criticou essa decisão, que permitia interpretar que a emergência ocorria apenas em Wuhan, era “um emergência sanitária para a China, e de grande alerta para o restante do planeta” (p.27), algo ambíguo que não permitia suspensão de voos, nem embargos, nem paralisação do comércio, nem medidas de emergência, nem restrições a viagens.

Somente em 11 de março, alarmada com a difusão, a severidade e a falta de ação, a OMS declarou que Covid-19 devia ser considerada uma pandemia. Nesse momento havia no Brasil 52 casos confirmados de transmissão, dos quais 46 de origem externa. O Ministério da Saúde negociou com o Congresso a liberação de R$ 5 bilhões oriundos das emendas parlamentares, para ações de enfrentamento ao coronavirus. As restrições à entrada de estrangeiros no Brasil começaram em 23 de março. Nesse dia o Brasil já tinha 34 mortes por Covid-19.

Quisera descrever todas as situações absurdas, algumas surreais, com que se defrontou Mandetta e que estão no livro. Várias delas não vieram a público, que ficou com a impressão que as divergências foram relativas a isolamento social, OMS, máscaras e cloroquina. Mas não, elas vêm de antes de Davos: “Uma semana antes de viajar, meu chefe de Gabinete, Robson Santos Silva, me informou que havia recebido da Presidência uma solicitação para exonerar quatro integrantes da minha equipe: João Gabbardo dos Reis (secretário-executivo do ministério)), Erno Harzheim (secretário de Atenção Primária à Saúde), Francisco de Assis Figueiredo (secretário de Atenção Especializada em Saúde) e Jacson Barros (diretor do Departamento de Informática do SUS).” (p.28) Junto já vinham os nomes para os substitutos. Ao voltar de Davos, Mandetta foi conversar com Bolsonaro, que alegou que os quatro da equipe não eram “gente nossa” e que, por sugestão do filho Flávio, queria trocar essas pessoas. Mandetta nota que gente do Rio de Janeiro mirava o controle de mais de 80% do orçamento do Ministério da Saúde e descreve ao longo do livro o quanto de “ginástica” teve que fazer para defender sua equipe, nessa e noutras investidas.

Situações absurdas, ainda que de outra natureza, também houve no sucesso que foi o resgate dos brasileiros que estavam em Wuhan e queriam voltar para o Brasil. Trump já havia buscado os americanos. Bolsonaro inicialmente não queria buscar ninguém, afinal eram algumas dezenas de brasileiros em Wuham, enquanto havia 210 milhões aqui. Quando a pressão da opinião pública aumentou, “sem consultar o Ministério da Saúde, Bolsonaro se encontrou com o Ministro da Defesa”. (p. 38)

O Ministério da Defesa comandou a operação, como descrito nos capítulos 4 a 8: uma série de trapalhadas até cômicas que mostram o despreparo assustador dos militares em assuntos de contaminação e quarentena. Para trazer 34 pessoas foram usados 4 aviões e 120 pessoas para resgatá-las. A impressão que fica no livro é de um pandemônio sem critérios. Mandetta verificou que tinham deixado fora da quarentena as tripulações e outros participantes quando o piloto de um dos aviões procurou o hospital apresentando sintomas. Não havia como testá-lo no hospital do que foi oficialmente chamado pelos militares de operação Regresso à Pátria Amada Brasil. Depois de finalmente testar negativo, o piloto foi para a quarentena, com os militares pedindo sigilo sobre o ocorrido. Como diz Mandetta: “No final, os militares colocaram em prática o que chamei de quarentena à brasileira: bem intencionada, mas sem participação dos técnicos do Ministério da Saúde.” (p.53)

O alívio, no fim, foi que todos os participantes testaram negativo. Deus é brasileiro – às vezes. Mas antes o Ministro teve que garantir a base legal para a operação, ou os resgatados de Wuhan simplesmente poderiam ir para casa contaminar todo mundo. Como o Ministro da Saúde funcionou para conseguir aprovar em 24 horas a lei de quarentena vale o livro. Como disse Mandetta em sua introdução, é preciso “que as pessoas entendam que, por mais bem intencionadas que sejam em seus trabalhos, a política é necessária”. (p.10)

Mais absurdos o leitor buscará por si mesmo. Um deles, por exemplo, as confabulações em estilo bruxaria, com vazamento deliberado, de Onyx Lorenzoni e Osmar Terra. É tudo assunto demais. E não quero dar “spoiler”. O livro é excelente e da maior seriedade nas ironias. Confirma que os fãs de Luiz Henrique Mandetta têm razão.