Eu me considerava amigo do deputado. Tinha trabalhado com ele na Secretaria da Fazenda e mesmo que ele não quisesse falar comigo, eu queria que ele soubesse de meu apoio. Como todo mundo, fiquei muito abalado por ele e doido para apurar melhor aquela conversa. Ora, a versão que corria na praça era que a filha mais velha dele tinha sido sequestrada por um traficante. Será que estavam negociando um resgate? Uns diziam que o carro dela tinha sido achado na Cidade Universitária. Outros que estava no aeroporto. Foi aí que eu fiquei surpreso quando o deputado atendeu. Pensei que a secretária fosse só registrar a chamada, mas ele fez questão de falar comigo. Então eu fiquei de pé, ajustei a gravata, mesmo estando eu no Recife e ele em Brasília, e nós dois ficamos em silêncio, sentindo o momento. Um sertanejo entende o outro, não é? Aí eu falei que ele contasse comigo, que a família estava orando para que tudo acabasse bem. Se eu pudesse ajudar, era só dizer. Eu conhecia gente da regional da Polícia Federal e eu mesmo podia me empenhar em alguma operação com meu cunhado, que já tinha trabalhado na repressão ao tráfico, para achar a moça e neutralizar o sequestrador. Mas ele foi conciliador. Disse que tinha levado um susto, o momento era difícil, tinha tido atendimento médico, mas estava bem. Que ela tinha ligado rapidamente na noite do desaparecimento e tinha falado com a mãe. Que pelo jeito tinha sido um devaneio de juventude, mas que tudo ia se resolver. Naquele sufoco todo, ele ainda perguntou por meu pai que não ia bem de saúde na época. Lembro que eu disse à minha mulher quando fui almoçar em casa: não está com jeito de que foi criminal não. Por outra fonte, ela já tinha sabido que o rapaz tinha sido da mesma faculdade que a moça sequestrada. Tudo é possível, mas se ele era universitário talvez não fosse um meliante comum. Então me arrependi de não ter perguntado ao deputado se aquilo não podia ter uma conotação política. Com a volta da esquerda, a Anistia, essas coisas, o que não faltava era gente querendo manipular uma moça bem nascida. Lembrei daquela milionária Hearst dos Estados Unidos que se uniu aos bandidos. Será que não era o caso? A guerrilha tinha dado um sossego. Mas sabe-se lá se não tinha ficado um foco no Araguaia?

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Eu fiquei numa situação danada, mas não foi por falta de aviso. O sequestrador, se você quiser chamar assim, tinha almoçado comigo num restaurante chinês de Boa Viagem menos de uma semana antes do ocorrido. Todo mundo sabia do romance deles. Mas eu sinceramente achava que tinha acabado, que a mãe dela tinha conseguido isolar a filha de uma relação que a família considerava muito fora da curva, como se diz hoje. Eu gostava dele e até o admirava. Ele chegou na faculdade bem depois do semestre ter começado e todo mundo estava curioso porque diziam que era um cara que já tinha morado fora, tinha boas ideias, e que, de tão confiante, não tinha nem esperado o resultado do vestibular para sair pelo mundo. Ele chegou do Egito na véspera das primeiras provas. Egito, imagine. Tinha gente na nossa classe que o conhecia de outros carnavais, da escola onde ele tinha estudado, que era muito boa. Quando ele chegou, todo mundo quis ficar amigo. Pelo menos a turma de maior evidência da classe, os dez que se destacavam por alguma coisa. Era um cara diferente dos outros, não há dúvida. Já o pai dela, o deputado, era muito amigo do meu e a gente tinha uma certa proximidade. Eu percebi que eles fingiam se ignorar, mas que aquilo era uma espécie de disputa de espaço de influência. Os dois eram vaidosos, se bem que ela tivesse um séquito diferente do dele. O dela era formado por admiradores, por pessoas que sabiam que o pai era um homem de influência. Até o professor de Ciência Política fez um elogio de corpo presente ao deputado e quem não sabia quem ele era ficou sabendo. Já ele que seria meu amigo pela vida, era nitidamente de esquerda. Era dessa esquerda motorizada, que vivia bem, que viajava, mas era claro que ele tinha uma birra com as pessoas da família política dela, com qualquer político da ARENA. Era aí é que estava o ponto de atração entre os dois. É uma história longa, marcou minha juventude. Eu sei que ele já estava morando em São Paulo quando um dia veio ao Recife e a gente almoçou no chinês. Ele me falou que ia explodir uma bomba na semana seguinte, mas que não podia me contar o que era. Ele tinha um sangue frio incrível, considerando a pouca idade. Quando a bomba estourou, fiquei calado, mas vibrei. Então era isso, eles tinham fugido. Dois dias depois, meu pai veio me perguntar detalhes, como quem não queria nada. Eu desconversei e o velho admirou que eu guardasse o segredo de um amigo.  Eu só disse que bandido ele não era. Doido, provavelmente.  Ele só riu.
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Fazia já uma semana que eles estavam fora e ninguém sabia direito onde. Todo dia eu perguntava à minha mulher se tinha chegado alguma novidade do Recife. Então uma noite tocou o telefone. Era ele que queria falar comigo: o sequestrador, digamos assim. Eu não nego que me senti muito distinguido porque eu era apenas um amigo da família e sequer no Recife morava. Muito menos em São Paulo que é onde ele vivia. Nós tínhamos estado juntos algumas vezes no Rio quando eles ainda eram namorados. Nessa época eles vieram jantar uma noite lá em casa. Eu sou gaúcho, para mim tinha aquela coisa épica de roubar a moça e sumir nos pagos para assumir um amor proibido. Fui conhecido do Érico, do Mozart, do Viana Moog. E amigo do Flores. Eu acho que ele percebeu isso e me designou negociador, o intermediário daquela confusão. Ele falou que eles estavam fora e eu não perguntei onde. Então disse que chegariam ao Rio em poucos dias e que me ligariam do hotel. Eu não podia acreditar que aquele rapaz tinha só 22 anos. Então eu tranquilizei a família no Recife e disse que não contassem comigo para cenas policiais, cambalachos nem nada parecido. Que eu ia ver o jovem casal de boa fé e que respeitaria os códigos de quem tinha depositado confiança em mim. Eles estavam lindos, pareciam bem felizes. Fomos ao Álvaro´s tomar um uísque, havia certa emoção no ar. Era uma história de amor que me eletrizava, eu não tinha como negar. Ora, a família dela tinha começado a implicar com o namoro. Ele até tinha tentado reatar com a namorada de São Paulo, e tinham até achado outro namorado para ela, mas aquele ano de separação forçada só tinha reforçado os sentimentos. O que se poderia fazer? Aí eu disse a eles que a família reconhecia que tinha cometido um erro, que a gente não estava mais na Idade Média. Mas que faria muito gosto que casassem direito, segundo as crenças religiosas da família da noiva, digamos assim. Eles estavam de mãos dadas e eu já tinha percebido a aliança. Era praticamente só ele quem falava, como se o casal tivesse um porta-voz único, o que me pareceu acertado. Aí ele disse: nós vamos morar em São Paulo, onde me estabeleci. Lá ela termina os estudos que foram interrompidos já duas vezes. Vou achar um apartamento em poucos dias porque eu moro numa república. Depois que passar tudo, a gente casa. Sem pressa nem cara feia. Adorei, tchê. Demos um longo abraço e eu cochichei no ouvido dele: tens aqui um amigo e um fã.
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Eles só se casaram uns meses depois da tal fuga. Acho que no finalzinho de novembro. Deram uma recepção muito digna, numa capela do Morumbi. Eles não queriam fazer casamento no Recife porque aí teria gente de cara feia e o tal sequestro seria o principal assunto, mais do que a felicidade dos noivos. Meus pais ofereceram um jantar para os familiares dele e dela que tinham vindo do Nordeste. O clima já era bem legal entre as famílias. Ele alugou um apartamentozinho  atrás da fábrica de chocolate, no Itaim Bibi, que ficava pertinho do nosso. Lembro que ele trabalhava em Osasco e começou a viajar muito. Ela terminava a faculdade e trabalhava numa loja de móveis, dessas grifes chiques que estavam surgindo na Oscar Freire no começo dos anos 80. Eles viviam uma vida aparentemente boa. Nós íamos ao clube de campo juntos e ele ficou grande amigo de meu marido na época. A sensação que dava era que o negócio deles era viver meio sem planos, com muitas idas ao Nordeste. Eu tinha projeto para engravidar, vivia segundo um mapa mais ou menos traçado. Como ele dizia, era uma questão cultural. Falando daquele jeito dele, dizia que no Nordeste se improvisava mais. Até que um belo dia, ela apareceu grávida. Há quanto tempo eles estavam casados? Menos de um ano. E logo ela que tinha ouvido do médico que teria problemas para engravidar. Antes da filhinha deles nascer, e mesmo depois, a relação deles era um pouco atípica. Eles gostavam de ter discussões em público, o que para São Paulo era anormal. Ela defendia as posições políticas da família, ele sentava o pau nos militares e vivia dizendo que até gostava do pai dela, mas que não daria nunca o voto pessoal dele a um político conservador. A gente ria para descontrair o ambiente, mas era meio gratuito dizer aquilo. Era provocação mútua, não é? Digamos que fosse o folclore deles, uma marca identitária do casal. Um dia eles nos contaram como planejaram sair do Recife. Foi uma história bonita. Ele disse que ela não trouxesse nem uma peça de roupa. Que entrasse no avião e fosse para a última fila. Como morava gente da família dela em São Paulo, ele temia um encontro em Congonhas, que era de onde saíam os voos para fora. Então ela foi para o Galeão. E de lá eles foram para a Argentina. Mas isso foi só o começo. Bom mesmo é ouvi-los contando de viva voz, cheios de sotaque nordestino. Assim a cru não tem graça.
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Planejei o que pude como pude. Não podia dizer a ninguém o que ia acontecer. A gente achou que uma resposta dura era a única forma de deixarem que vivêssemos nossa vida. Nenhuma conversa adiantaria àquela altura. Fui para o Galeão esperá-la. Eu tinha dado instruções precisas. Viaje com seu sobrenome menos conhecido. Sente no fundo. Fique atenta à escala em Salvador, onde pode entrar algum familiar. Prenda o cabelo; solto, ele é muito vistoso. Deixe o carro estacionado numa área remota do aeroporto ou mesmo na faculdade. E acredite em mim. Assim ela fez. Por muito que eu viva, jamais vou reprimir uma certa emoção. Ela chegou de coração aberto e confiou no seu raptor apaixonado. Lá vinha ela de jeans, com uma bolsa chique, sapato baixo e uma boneca de pano feiosa que tinha desde criança. Era o amuleto da sorte, a companhia silente que escolheu para aplacar a solidão da viagem que nos marcaria pelo resto de nossas vidas. Ela quis ir à capela rezar. Eu esperei fora, tomando um Bell´s no bar. Minha soberba era grande demais para que eu reconhecesse a intervenção divina naquele momento. E no entanto, deveria. À saída, ela se disse reconciliada, em paz. Acontecesse o que acontecesse, jamais se arrependeria. Cinéfila inveterada, ela tinha senso de drama e acho que eu também. Pegamos um avião para Buenos Aires. A escala em São Paulo não me preocupava porque ficaríamos a bordo. Pedi à aeromoça que botasse uma garrafa de champanhe no gelo e que me devolvesse a um sinal combinado. Sobrevoávamos o Sul do Brasil quando abri a caixinha com as alianças e brindamos a uma felicidade em que acreditávamos. Éramos dois jovens cujos corações clamavam por paz depois de um massacre, de uma guerra de calúnias e sabotagens de toda ordem. Ao chegar à Argentina, nos alojamos no hotel Rochester, na rua Esmeralda, que lá está até hoje. No começo dos anos 80, tinha só um arremedo de recepção, um serviço de quartos precário e os encantos da calle Florida ali perto, um trecho onde passavam homens engravatados cheirando a Lancaster, de braços dados com mulheres fatais de casaco de pele. Ainda tinha lojas abertas e ela foi comprar um mínimo de roupa e uma escova de dente. Para mim, embora já um pouquinho rodado de mundo, era uma experiência nova. Mas nada excedia meu zelo em aconchegá-la, o que não era fácil. Éramos muito jovens. O destino nos levara ao trapézio e não havia rede para aparar uma eventual queda. Se não desse certo, nós cairíamos na laje lá do alto. No hotel, eu sabia que o Recife ardia em chamas. Era o preço da liberdade. Eles tinham sido péssimos estrategistas e algozes terríveis. Eu tinha horror ao autoritarismo em geral. Mas essa história é feita de infinitos detalhes, não acaba aqui.