Naquela época eu estava no mestrado na USP e tinha achado uma espécie de república onde morar. Ficava ali na Onze de Junho, na Vila Mariana, perto da estação Santa Cruz, na frente da delegacia. Eu era dos poucos que tinham um quarto individual, o grande que ficava embaixo da escada, e meu melhor amigo era um cearense bonachão de nome Edilson que trabalhava na Ciba Geigy. Com os demais moradores eu não tinha muita proximidade, mas nos cumprimentávamos à hora de ver televisão. Então certa noite Armando, que era o dono da pensão, me disse que tinha chegado um conterrâneo meu. Que parecia ser um cara agradável e que iria dividir o quarto com Ezequiel, que a gente chamava de Formigão, um vendedor de Enciclopédia Barsa boa praça. O cara não era conterrâneo meu, que sou paraibano, mas para Armando, que era paraense, dava tudo na mesma. Ele era grandão, boa pinta, e tinha carro. Tudo na vivência dele parecia meio nebuloso, mas talvez fosse porque eu nunca tivesse conhecido um sujeito tão novo com uma trajetória daquela. Quantos anos ele podia ter na época? Uns 23, se tanto. Eu sei que na Domingos de Moraes tinha uma dessas casas de esfiha enormes porque dali até o Jabaquara o que mais tem é comércio sírio. Conversamos um pouco durante o noticiário e eu cá comigo queria que Edilson chegasse para a gente ir até lá comer um quibe e tomar um chope, como fazíamos fazia toda sexta-feira. Quando Edilson chegou, vimos que a bancada nordestina estava reforçada. Ele mesmo, o novato, perguntou se não se tomava um chope ali perto. Então subimos os três e começaram as descobertas. Ele disparou a falar e eu trocava olhares com Edilson que diziam tudo: achamos um dos nossos, os dias nessa república não serão mais os mesmos, ele era um bom copo. Voltar para casa virou um genuíno prazer. No dia seguinte, já fomos no carro dele ouvir música num lugar chamado Barracão de Zinco, ali por Moema. Ele bebeu bem e se agarrou com uma crioula que dava dois dele em tamanho e em animação. No domingo, fomos tirar a ressaca na Casa da Esfiha. Então ele disse que no dia seguinte iria procurar um emprego porque as reservas estavam perto do fim. Contou que pretendia trabalhar com comércio internacional, que queria rodar mundo. A gente ainda perguntou: já não basta o que você viu? Ele disse que aquilo tinha sido só o começo, que queria ver chegar o dia em que exportaria para o mundo todo. Parecia que o sonho dele era ser uma espécie de Marco Polo. Mas bom mesmo era quando ele falava dos amores. Minha intuição disse que nesse terreno tinha uma coisa que o incomodava. A gente não precisa saber de tudo na primeira semana, não é? O tempo iria revelar a verdade. Então certa noite ele revelou a história interrompida dele com a filha do deputado. Achei bacana, aquilo não acabaria por ali.

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Quando conheci nosso amigo, fiquei tentado a chamá-lo para trabalhar comigo. O cara era boa pinta, motorizado e gostava muito de ler. Nessa época eu tinha parado de beber porque a bebida tinha estragado minha vida no Rio, eu tinha feito cenas desagradáveis na frente de meu filho e minha mulher me mandou puxar o carro. Mas a gente se gostava muito e queria voltar um para o outro. Mas para isso eu tinha que provar a ela e a mim mesmo que estava recuperado, que tinha conseguido botar a vida material minimamente em ordem. Eu não sou carioca da Zona Sul, entende? Nego acha que carioca ou mora em Copacabana ou em Ipanema. Eu venho de Bento Ribeiro e minha mulher do Méier. Mas vamos voltar ao tema. Uma semana depois da chegada dele, alguma coisa tinha mudado naquela casa. Não é que ele tivesse ficado amigo dos doze que moravam lá, mas era como se ele tivesse estabelecido um pequeno vínculo com cada um. A gente passou a saber mais uns dos outros graças a ele. Uma noite eu fui ao bar encontrar com ele e com os dois nordestinos de quem tinha ficado mais próximo. Até tomei um chope, mas no segundo me segurei. Botei a bolacha em cima do copo. Era mais do que eu tinha bebido em quase dois anos. “Vamos trabalhar comigo, rapaz. A comissão é boa e com o tempo eu posso te dar um setor inteiro para comandar. Pelo que você falou aí, você é mais bem relacionado do que todos nós juntos. Uma Barsa que você venda por semana, eu não vou dizer que dá para casar, mas a depender do padrão, pode até ser.” Foi uma brincadeira, uma provocação para ver se ele mordia a isca. Ele foi super gentil, disse que na verdade ele queria mesmo era comprar uma Barsa para ele logo que estivesse estabelecido porque esse era um sonho antigo. Eu não era de ter muita camaradagem ali, mas sei que a gente se acostumou a conversar à hora de dormir. Ele dormia na cama de solteiro do meio do quarto e eu perto da parede. Depois Armando colocou uma terceira cama para acomodar um argentino. Mas ali naquelas noites de frio eu contei a ele os dramas que eu tinha vivido por causa da birita, as dívidas de jogo e a corrida de recuperação. Então ele me contou a história dele. Era tudo bem encaixadinho, mas tinha alguma coisa faltando. Como é que um cara daquele tinha vindo parar numa pensão? Como é que ele ainda não tinha a casa dele? Eu farejei que pudesse ter algum problema, a gente que trabalha com vendas desenvolve esse faro. Então ele disse que tinha uma namorada firme que tinha ficado proibido de ver. Que eram coisas típicas do Nordeste, agravadas por problemas políticos entre famílias. Meses mais tarde, quando ele sumiu por duas semanas, o paraibano me contou o que tinha acontecido. Pois não é que o cara tinha sequestrado a moça?

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A questão para a gente era muito simples. Ele não aceitava o fato de que o namoro tivesse terminado. A gente brincava: vira o disco, rapaz, essa aí já foi, trata de arranjar outra. Quando ela, a raptada digamos assim, começou a namorar com um delegado de polícia lá de Pernambuco, um cara que era também historiador famoso, ele quis dar a entender à gente que era namoro arranjado, da conveniência da família dela. A gente insistia para que ele parasse de ser ingênuo, que ela não era nenhuma débil mental. Ele estava com o orgulho ferido, só podia ser, para não enxergar as coisas com clareza. Nosso amigo da Bahia ainda dizia que esse era o pior tipo de corno. Era chifrado a céu aberto, com nota de jornal e tudo, e ainda queria insistir. Ele ria, mas a autoestima dele tinha trincado. Era como se a vida profissional tivesse passado para segundo plano. Todos os projetos que ele tinha estavam agora a reboque daquele sofrimento. Então nas férias de janeiro ele foi embora para São Paulo. Disse que tinha falado com o pai e que tinha desistido de ir para o Instituto Rio Branco. O velho não tinha gostado, naturalmente, porque parece que esse era um sonho caro ao pai, mas se animou quando ele disse que ia viver em São Paulo. A gente sabia que ele tinha uma namorada lá, uma polaquinha como ele dizia, uma judia que tinha ido passar férias no Recife e por quem ele tinha se apaixonado. A gente pensou que ele estivesse indo atrás de um prêmio de consolação. Já trabalhando, ele voltou a  Brasília uns meses mais tarde, ficou numa suíte do hotel Nacional, onde só moravam senadores da velha guarda. Estava solene, de paletó e gravata. Pensando naquele momento depois, parecia mais que ele tinha vindo fazer um anúncio, avisar que uma coisa grave iria acontecer. Talvez nem ele soubesse, mas o inconsciente dele já estava armando alguma coisa. Não vou dizer uma vendeta que até então não era uma palavra que combinasse com ele. Mas se não era, era parecido. Ele parecia disposto a não deixar barato para ninguém a proibição de se verem. Vou resumir senão a gente não vai acabar nunca. Um belo dia estou na Câmara. Saí do gabinete de Thales por um minuto para tomar um café e fumar um cigarro. Foi lá que escutei um zum zum da boca de Tarcísio Holanda. Ele disse que a filha do deputado tinha sido sequestrada e que a presidência da Casa se ofereceu para pedir ajuda à Polícia Federal para esclarecer. Quando perguntei quem era e ouvi o nome do deputado nosso conterrâneo, à noite eu falei para minha namorada: ele tinha razão, ela gostava dele. E se eu já gostava dele antes, agora gosto duas vezes mais.