Carlos Gardel costumava dizer que havia nascido em Buenos Aires aos dois anos de idade. Uma blague, mas também uma verdade, se nos dermos conta de que nascer é também tomar consciência de si mesmo, e não simplesmente abrir os olhos pela primeira vez para um lugar do mundo. Assim, não será incorreto se dissermos que a agora centenária Clarice Lispector, de fato, nasceu no Recife. Foi na cidade, como se sabe, que viveu até quase seus treze anos. No Recife, como diria Guimarães Rosa, ela “recifez-se”, formando sua personalidade e experimentando sentimentos e emoções que jamais esqueceria.
No livro póstumo “A descoberta do mundo”, que reúne suas crônicas originalmente publicadas no “Jornal do Brasil” entre agosto de 1967 e dezembro de 1973, encontramos “Restos do Carnaval”, um texto evocativo de sua infância no bairro da Boa Vista. Vale a pena destacá-lo como página antológica que poderia constar de sua própria ficção. É um conto da própria vida. E é uma obra-prima. Vejam se concordam comigo.
Logo no primeiro parágrafo, ela abre um tempo de longa duração, à guisa de nos situar num Recife pulsante e num mundo transformado pela magia dos carnavais. “E quando a festa ia se aproximando, como explicar a agitação íntima que me tomava? Como se enfim o mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate.” Essa imagem por si só já dinamiza o nosso imaginário e o prepara para o que virá adiante, pois a metáfora da rosa vai dominar a narrativa. “Como se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas.” A prosopopeia nos diz, em poucas palavras, da intensa comunhão da cidade com a festa, da plena sintonia do evento com sua paisagem urbana. Que belo elogio à cidade do frevo!
No parágrafo seguinte, Clarice faz um contraponto entre a alegria carnavalesca e a melancolia da menina que era. “No entanto, na realidade, eu dele pouco participava. Nunca tinha ido a um baile infantil, nunca me havia fantasiado.” Em compensação, “deixavam-me ficar até umas 11 horas da noite à porta do pé de escada do sobrado onde morávamos, olhando ávida os outros se divertirem”. E conta que ganhava um lança-perfume e um saco de confete e os economizava para durarem os três dias da festa. “Um quase nada já me tornava uma menina feliz.” No parágrafo subsequente, a breve reflexão da mulher madura face a uma das impressões mais fortes do Carnaval: “E as máscaras?”. Elas sugeriam à criança que “o rosto humano também fosse uma espécie de máscara”. “Até meu susto com os mascarados era essencial para mim.”
Logo adiante, o contraponto à expansão e à diversão do Carnaval é acentuado. Ficamos sabendo que o clima doméstico não era nada bom, pois toda a família estava preocupada com o estado de saúde de sua mãe. Mas mesmo sem se fantasiar, ela ansiava “pela saída de uma infância vulnerável” e se pintava com batom e ruge, virava uma moça, “escapava da meninice”. Até aqui, leitoras e leitores, o que acima chamamos de “longa duração”, na qual se fundem vários Carnavais…
“Mas houve um Carnaval diferente dos outros”. A mãe de uma amiguinha, ao fazer para a filha, uma fantasia de “rosa” em papel crepom, fez para ela, Clarice, com os restos que sobrara, uma fantasia igual. “Pela primeira vez na vida eu teria o que sempre quisera: ia ser outra que não eu mesma”. É como se Clarice se apossasse a um só tempo material e simbolicamente do próprio espírito do Carnaval, mas não sem uma nota de súbita e triste racionalidade: “Quanto ao fato de minha fantasia só existir por causa das sobras de outra, engoli com alguma dor meu orgulho que sempre fora feroz e aceitei humilde o que o destino me dava de esmola”.
Mas eis que sobrevém um anticlímax, que, analisando retrospectivamente, lhe parece imperdoável ainda em sua própria maturidade. Já vestida de “rosa”, vê o estado de sua mãe piorar. Tem que ir à farmácia correndo em meio a serpentinas e confetes: “A alegria dos outros me espantava”. Mesmo depois, com a melhora da mãe e os ânimos domésticos mais serenos, sente-se, como nas histórias de fadas, “desencantada; não era mais uma rosa, era de novo uma simples menina”, corroída pelo remorso em face da doença da mãe.
Ao concluir, ela nos surpreende mais uma vez. Na porta de casa, surge um belo e desconhecido menino que, “numa mistura de carinho, grossura, brincadeira e sensualidade”, cobre-lhe os cabelos de confete. Por um momento se encaram felizes e sorridentes. “E eu então, mulherzinha de oito anos, considerei pelo resto da noite que enfim alguém me havia reconhecido: eu era, sim, uma rosa.” Viva Clarice!
Somente você, meu caro Paulo Gustavo, com seu texto iluminado, poderia atenuar a minha má disposição com a autora enigmática e “empulhativa” de “A Maçã no Escuro”, ou a pessimista sombria, à maneira de Proust, Musil e Kundera, de “A Hora da Estrela”, livros de Clarice Lispector que conheço. Não são livros para a luz e o calor dos nossos trópicos, ou a dimensão dramática dos nossos problemas sociais. Critiquei a sua homenageada no artigo “Marília e Clarice”, publicado há algum tempo nesta revista eletrônica, que o convido a ver – ou rever.
Por enquanto, observo que há uma outra Clarice – a das crônicas, dos contos, dos registros de memória – que posso reverenciar.
Grande abraço. E continue valorizando a nossa “Será?”
Mestre Clemente,
É um prazer compartilharmos, cada qual a seu modo, o legado de sensibilidade da escritora.
Muito grato por suas palavras que tanto me honram.
Abraço do leitor e admirador,
Paulo Gustavo
Sim, Mestre. Bem me lembro do seu excelente artigo, com o qual parcialmente concordo. Acho Clarice melhor contista que romancista.
Muito grato pelo generoso comentário.
Abraço
Paulo Gustavo
Não conheço o texto de Clarice. Vou lê-lo talvez um pouco atrasado depois de ler o seu, Paulo. De qualquer modo, uma pessoa como Clarisse ter tido sua infância no Recife para, mais tarde, florescer com a escritora e poeta que é, nos dá, como recifenses, um orgulho arretado. O seu texto, junto ao de Clarisse, é quase um roteiro de um curta-metragem: Recife, Carnaval, Clarisse.
Há intenções de restauração da casa em que Clarisse viveu hora circulando na imprensa – sempre circulam ideias assim toda vez que alguém se lembra da existência dela e da importância de sua antiga moradora. Não sei se dessa vez trarão algum resultado. Mas, como ocorreu e em ocasiões anteriores, o grau de degradação do entorno urbano põe dúvida sobre o alcance da iniciativa.
Necessário restaurar a casa, a rua, a praça linda em frente… A dignidade das pessoas. Necessário restaurar a cidade!
Obrigado, Montenegro.
É isso mesmo. Vamos ver se agora a coisa vai.
Obrigado por sua leitura.
Abraço fraterno
A crônica de Paulo Gustavo é linda. Apesar de Clarice – desculpem o que pode ser considerado blasfêmia pelos adoradores da escritora misteriosa e confusa. Pois por Clarice Lispsetor, depois de algumas poucas páginas, não tenho interesse. Nem consigo entender o grande reconhecimento que ela obteve.
Prezado Paulo Gustavo,
De fato, essa história do Carnaval cala fundo na alma de nós recifenses. Mas apesar de meus esforços, nunca consegui ir além da décima página em quaisquer dos romances dela. Aliás, tirando uma legião de entusiastas da literatura que se apaixona pela paixão que deveras sente, mais do que pelo objeto da dita cuja, eu não conheço um só leitor que goste realmente do que ela escreve. Certa feita um camarada muito ilustre em São Paulo me falou que eu deveria ser condescendente. “Ela dava caixas e mais caixas de bilhetinhos e anotações a Fauzi Arap e era ele quem costurava tudo como podia para resultar num livro, coitado. Não se queira qualidade literária disso.” Fui tomado por grande alívio quando ouvi isso. Adoro embarcar no mitificação da Lispector. Gosto dos olhos dela, da Ucrânia, da voz sensual, da dama em flerte com a morte, da crônica de Carnaval e da praça Maciel Pinheiro. Como não gostar dela? Mas por aí ficam meus muitos afetos. Não descem às paginas. Abraço.