Paris na pandemia.

 

Em 2021, o dia doze de janeiro bateu recordes de nulidade. É pouca a base de comparação, mas sequer em 2020, ano famigerado e medíocre, tive mais que cinco dias tão negativos quanto foi a terça-feira. Não que esperasse muito dela. Na verdade, nem podia. Acordei despedaçado com a morte de Alberto Bertolazzi, amigo há 38 anos. Embora preparado para o pior, o dia conseguiu se revelar mais nulo do que se anunciava. Então saí ao entardecer para desanuviar. A chuva era grossa e a temperatura ordinária. Um inverno a 8° nessas latitudes significa que está pelo menos 4° acima da média da estação. É péssimo porque, segundo os iniciados, as pessoas se resfriam e o universo microbiológico gosta da umidade e do aguaceiro. Frios secos e implacáveis fazem com que os bichinhos recuem e se apequenem. E isso nunca foi tão importante quanto agora. Andei pelos dois lados do Boulevard Saint-Michel e tudo o que se vê é uma espécie de negação da vida. A chegada da variante inglesa da Covid-19 pode multiplicar por muitos os infectados até o fim do mês. Só uma família francesa residente no Reino Unido, que teve o desplante de vir passar o Natal em casa, teria infectado centenas. Estes, a essa altura, já infectaram milhares. Não tardará para que sejamos milhões, como gostam de dizer os propagandistas de credos e ideologias. A bouillabaisse da família nostálgica valerá cruzes, meias-luas e estrelas de David sobre alguns túmulos. Espero que uns mexilhões estragados lhes tenham embrulhado as tripas na manhã seguinte.

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Não se ganha uma guerra fazendo o que todo mundo faz. Não se ganha uma guerra sem contrariar a sabedoria convencional. Ganha-se uma guerra da concertação de mentes disruptivas que desafiem as lógicas estabelecidas e detonem o inimigo no contrapé, surpreendendo-o ao fazer o que ele não espera que você faça. Não se ganha uma guerra com pieguice, pensando nas câmaras. Se você é Ministro da Saúde, não importa que tenha 40 anos e seja um atleta. Você tem que se deixar vacinar porque você não pode contrair uma doença que o alije por 3 semanas do front de luta. Você não pode dar bola para a maledicência do amanhã, quando disserem que você passou na frente de uma velhinha. De sua ação, depende a vida de milhares de velhinhas. Sua vida não é sua, é um ativo do Estado. Demais, diga a seu chefe que não se ganha uma guerra refastelado num palácio presidencial, meditando nos jardins e retocando discursos. Você pega esse mesmo jardim e manda instalar um hospital de campanha para 100 leitos com apetrechos de reanimação. E então você começa seu dia por lá. Você não ganha uma guerra sem a conjugação harmônica de paciência, pressa e pressão. Há alguma coisa inexplicável na forma como se afrontam os desafios no mundo de hoje. Ninguém dá o primeiro passo, ninguém se expõe ao fogo da metralha. Macron ignora Carl von Clausewitz ou Sun Tzu. Mas evocou Le petit prince no discurso natalino, até na entonação. E pensar que a rainha Elizabeth II dirigia ambulância nos escombros de Londres.

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Ninguém tem ilusões de que os hospitais estarão abarrotados em fevereiro. Já para uma pessoa ser vacinada, há uma infinidade de protocolos a cumprir e de formulários a preencher. Há também uma profusão de discussões sobre as vertentes éticas até de um certo passaporte verde que entrará em vigência em Israel, que garante ao vacinado regalias de acesso e viagens. Ora, o efeito prático disso é óbvio. Mas a simples ideia de que medida similar pudesse ser adotada aqui já causou rebuliço. Mais do que depressa, os gilets jaunes tiraram a poeira dos coletes e convocaram uma passeata de advertência entre a Bastilha e a République, por considerar uma simples medida de bom senso como atentatória às liberdades individuais. Aqui, eu já tinha percebido, manifesta-se no vazio. Je suis venu manifester…eles dizem. A causa é o que menos importa. O verbo existe sem objeto, no vácuo. Mal comparando, é como brincar para crianças. Pode ser esconde-esconde, pular corda, andar de bicicleta. Tudo é brincar. Aqui é manifester. É como comparecer a um velório de estranho ou ser penetra simpático em festas de casamento. Um passaporte verde? Scandaleux. Equivale a profanar o túmulo de Voltaire, a ultrajar Montesquieu em praça pública. Agora morrer é livre. Congestionar as UTIs idem. Nem a morte de meu amigo me chocou tanto quanto as cenas televisionadas de uma consulta de vacinação. Mais parecia um chá de Madame De Geoffrin. Discute-se longamente sobre a história das vacinas. É como se o médico fizesse a corte à velhinha que, compreensivelmente, deve estar se deleitando. Desde que um alemão tentou seduzi-la na Ocupação, ela nunca tinha merecido tanto paparico.

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São diferentes as guerras de hoje das guerras que se travavam em outros tempos. Percebi isso no verão de 2017-2018, no Brasil. Tínhamos no âmbito do partido, em São Paulo, uma luta insana a travar contra um adversário determinado e de peso. A trégua Natal-Ano Novo era ideal para uma ação política de corpo a corpo com os delegados do partido onde quer que eles estivessem, visto que era um pleito majoritário. Alargar a base dos convencionais era a única forma de se ganhar uma luta dificílima. Demais, havia listas a triar, dinheiro para levantar, estratégias a discutir e ação, muita ação a tomar. De repente, vi que todo mundo estava saindo de férias. Como férias? Como vi que ficaria sozinho, salvei dez dias de viagem na Lapônia para dar uma satisfação à minha família, mas voltei correndo para São Paulo. Aí vi que a maioria das pessoas não considerou as férias de Natal como férias, e tirou as férias das férias. Com um governador que era um aliado tíbio, mais voltado para si do que para o partido, é claro que chegamos a março exangues, anêmicos, sem ferro. Ora, os malandros do partido se prevaleceram de nossa indolência para fazer valer a sabedoria convencional. Desde então, jurei para mim mesmo nunca mais enfrentar uma guerra com quem coloca as férias como direito sagrado, como se fosse tarefeiro de beira de cais. Na guerra, o conflito é a própria diversão. Quem pensa assim, sai na frente. Falando em guerra, vive le protocole. Para ser vacinado aqui impõe-se o preenchimento de uma ficha – um cartapácio que prevê até o braço em que o cidadão quer ser picado – que equivale a um daqueles formulários de Harvard em que se listam atestados de trabalho voluntário, cartas de recomendação de seu Senador e histórico escolar desde a alfabetização. Em caso de anciãos, ele tem até 4 dias para se arrepender da decisão de ser ou não vacinado. Em boa parte dos casos, eles já nem se lembram do nome completo. Isso é ou não uma doença?

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Querem ganhar a mais difícil das guerras com palavras de efeito, olhares estudados e canapés de foie gras enquanto se produzem resmas e mais resmas de instruções normativas. O papel de qualquer estadista digno do nome é reunir as cabeças da indústria farmacêutica mundial e examinar todos os processos e possibilidades para alocar mais equipamento para filtrar, centrifugar, envasar, conservar e expedir vacinas. É mandar agentes de informação para todos os cantos do mundo onde haja possibilidade de aprovisionamento de equipamento, seringas, oxigênio, medicamentos e antibióticos. É colocar uma pressão insana nos presidentes das empresas farmacêuticas. É revirar a questão para analisá-la sob todos os aspectos. Ao diabo as próximas eleições. O que são mais uns caraminguás diante de um rombo superior a trilhões de dólares nas finanças globais? Que outra prioridade pode sobreviver de pé diante de tanta calamidade? Mas o que fazem? O que dita lógica de poder? Ora, nomeiam-se conselhos e comitês. Convocam-se assembleias, reuniões e comissões em que, aliás, todo mundo já sabe o que vai ouvir e o que se espera que diga. É um desperdício. Com a alavancagem do setor público, você faz a iniciativa privada se superar, faz brotar o melhor do gênio humano. Política é só isso: fazer trabalhar o gênio humano em favor da coletividade – obsessivamente. E, depois, repartir seus frutos com o mínimo de intervenção. Mas eles querem vencer a guerra degustando bandejas de petits fours e fazendo benemerências com o dinheiro alheio. Sempre de olho na eleição. Não bastasse termos um homicida no Brasil, temos parlapatões enquistados na burocracia europeia. É escandaloso. O noticiário é um momento hilário sobre como não se devem fazer as coisas. Se eles trabalhassem numa indústria, se tivessem que sustentar a família com o suor do rosto, não durariam seis meses.

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Durante a caminhada, pensei nas cenas da consulta médica. Que desespero me deu. Tudo é detalhe. Que sentido faz, por exemplo, distinguir médico liberal de médico de hospital? Que paciente está preocupado onde o sujeito atende? Acaso o coronavírus teme mais um do que o outro? As codificações do poder conspiram para o atraso, a ensebação, a procrastinação, o faz-de-conta. Nada lembra tanto os tempos soviéticos. Quem trabalhava mais rápido era repreendido pelos outros porque o mesmo padrão seria exigido dos demais. Portanto, todo mundo fazia de conta que trabalhava. E quem fiscaliza, fazia de conta que acreditava que eles estavam trabalhando. Não parece que seja uma guerra. Eles pautam o trabalho pelo olhar de um auditor do futuro. “Como é que minha ação de hoje vai ser avaliada quando o dossiê COVID-19 na França for analisado à luz das derrapadas? O que posso fazer hoje para me safar amanhã da responsabilidade no caso das máscaras, do álcool, do relaxamento das medidas de verão, das falhas de comunicação, da estratégia errada da compra da vacina e do ritmo escargot da própria vacinação?” É uma corte, não um situation room. Tudo se resume a evitar questionar a verdade estabelecida. Mais vale respeitar os protocolos de enterro do que salvar vidas. É um minueto em que os cavalheiros dançam em sapatos apertados e as damas espremidas em espartilhos sufocantes. Mas todo mundo sorri. É uma imensa estatal. Se a agonia se prolongar, distribui-se dinheiro. Que, a seu turno, pode valer como pecúnia eleitoral mais adiante para os generosos de hoje. Acaso o dinheiro é deles? Os comerciantes balançam a cabeça em descrença.

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A falta de vacina é mais do que um erro de planejamento ou uma falta de audácia. Ela traz benefícios. Se ela estivesse disponível aos milhões, o que seria do burocrata que preenche um anexo ilustrado de 62 páginas para os farmacêuticos sobre como aplicá-la? A produção de parágrafos verbosos, alíneas, adendos e considerandos é o nirvana da estrutura estatal, é sua razão de ser. Um adjunto do Ministro da Saúde olhou um repórter dos pés à cabeça por conta de uma pergunta sobre a vacinação. “A logística não é mon affaire.” E lavou as mãos. É muito chique mesmo esnobar uma disciplina tão reles e operacional, tão indigna do padrão Grandes Écoles. Aqui qualquer chefequete produz papel com a profusão de um Primeiro Secretário do Quai d´Orsay. A gestão é uma loucura, uma espécie de sobremesa extravagante, um merengue recheado com marron glacé. Um bate-entope indigesto. Carlos Ghosn disse com razão que os conselheiros dessa nomenklatura são meros estafetas de recado do Elysée, que vivem uma realidade paralela dissociada do fazer e do acontecer para valer. Não dá para guerrear sem se desgastar, sem perder o sono, sem se ferir, sem se expor, sem ousar, sem contrariar, sem colocar em risco o capital político. Eles querem o nemawashi japonês para tudo. O consenso total, nem que seja na superfície. O medo de desagradar é uma patologia. Será que nunca ouviram que toda unanimidade é burra? As lideranças do mundo estão doentes, estão anêmicas, estão manietadas. O iphone, a sociedade em rede e o politicamente correto emascularam o mundo. Estamos emparedados entre homicidas e libélulas. Entre o pão com leite condensado do capitão criminoso e o canapé de queijo trufado dos blasés. Estamos mal. O queijeiro me disse: “Eles trabalham para eles mesmos, monsieur. Uma hora vamos invadir a Assembleia. Não vamos vestidos de pele de castor, mas fantasiados de Astérix. Voilà.”

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Alguém dirá: mas você conhece esse país há 47 anos. Trabalha com ele há pelo menos 35 em quatro setores bastante diferentes. Será que só agora descobriu isso? Respondo: é que minha vida nunca esteve em jogo antes. Agora está nas mãos deles. Perdoem se isso muda tudo. Mas se este fato fundador não tivesse a força de mudar, o que teria?